O filho que vingou: ou a relativização da necessidade em “Pai contra mãe”, de Machado de Assis

Por Joaquim Serra


© Marcos Bontempo


A chamada segunda fase da obra de Machado de Assis (1839-1908) é marcada por seu estilo irônico. O conto “Pai contra mãe”, de 1906, publicado nas Relíquias da casa velha, dois anos antes da morte do autor, pertence a essa fase da sua obra.

O autor de Quincas Borba (1891) aproveitou-se tanto de temas e estilos do romantismo e do naturalismo, como também não se deixou encaixar em nenhum desses métodos – ou escolas –, de representação. Criou até um defunto autor para tratar de temas materialistas, de cunho histórico, da vida da classe alta do Brasil escravocrata do século XIX.

Em “Pai contra mãe”, Machado de Assis usa de um procedimento que entrelaça comentário e ação, e impacta diretamente a relação de distância na narrativa, o que Theodor Adorno chamou em “Posição do narrador no romance contemporâneo” de: distância estética (seu exemplo mais extremo é a narrativa kafkiana em que essa distância praticamente inexiste). No conto em questão, o narrador intruso dá um dado social ao falar das máscaras, a coleira de ferro para escravos fujões e outros instrumentos da escravidão, para depois, aproveitar-se desse comentário e colocar uma ação em cena. É dessa forma que ele introduz a história de Cândido Neves, Clara e Mônica.  

O narrador diz com ironia que os escravos fugiam porque eram muitos e que “nem todos gostavam da escravidão” (p.363). Augusto Meyer chama Machado de Assis de “maníaco da ironia” (p.86), pela tendência de análise do escritor que muitas vezes reduz a espontaneidade de uma ação ou personagem. Isso faz com que o escritor destrua aquilo que afirma e, por meio de um riso incômodo, desvele as tensões e contradições históricas e sociais do Brasil do século XIX, mas que permanecem muito atuais.

Com o tema da fuga no começo do conto, faz com que ele sugira uma circularidade. Depois de terminado o conto e o leitor conhece a fuga da escrava Arminda, há essa possível volta ao tema do começo da narrativa que diz como eram tratados os escravos que tentavam fugir. Dessa maneira, instaura-se um primeiro ponto de vista sobre a violência que estava atrelada a esses instrumentos de tortura. Ponto de vista que é coberto de ironia já que enxerga o escravo sob a óptica do senhor.

Cândido Neves, depois de eliminar a possibilidade de vários empregos com a renda fixa – que ele julgava baixa –, chega ao ofício de caçador de escravos. Mas há um dado social importante que o narrador chama a atenção, diz ele que “pegar escravos fugidos era um ofício do tempo”, e completa, “ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos” (p.364). Isso coloca Cândido Neves em um lugar social específico. Cândido não para em emprego algum, e é descrito como alguém orgulhoso para ofícios que julga pequeno, quando não, requer o lucro rápido e fácil. Caráter que o fez acumular dívidas mesmo depois de casado com Clara.

Cândido Neves é pobre, genioso, não tem por onde se elevar “acima da obscuridade comum” (p.91), como o querem muitos personagens machadianos, mas é o que deseja. Não aceita qualquer emprego, mas não é o filho da classe alta que o pai ensina sobre a manutenção da vida social baseando-se no Príncipe, de Maquiavel. Tampouco é o jovem Damião, que não quer ser padre e busca a ajuda da influente e caprichosa Sinhá Rita, amante do padrinho, porque tinha “umas ideias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar” (p.365). Cândido Neves é diferente, apesar de branco, é pobre, sofre com a iminência do despejo, com a falta do dinheiro para o filho. 

Já Mônica, tia de Clara, não deixa de ter características das personagens machadianas manipuladoras. Permite o casamento de Clara com Cândido porque é “amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi” (p.366), ou seja, tem interesse na festa de casamento. Assim como não só tenta manipular a situação para fazer com que Cândido abandone o filho na roda dos enjeitados, como também, quando são despejados, não o avisa que já encontrou lugar para ficar. Com isso, Mônica tentava forçar Cândido Neves a arrumar um emprego fixo.

Cândido e Mônica também carregam uma característica em comum com Sinhá Rita; a da cordialidade. Quando Mônica discute com Clara sobre a falta de emprego de Cândido, este vai conversar “muito menos manso que de costume” (p.367), ambos conversam, mas logo caem na risada. Cândido por fazê-la rir e, de certa forma, manipular a queda de Mônica, “que previa uma patuscada no batizado”, a seu favor.

Enquanto Clara, com medo de ficar sem onde morar e sem o filho, repete quase mecanicamente que “Deus nos há de ajudar”(p.366). Não deixa de existir uma similaridade com “O caso da vara”, (1891), quando Sinhá Rita diz a Damião que “tudo se há de arranjar” (p.327). Mas clara não é Sinhá Rita, e não tem por onde acomodar sozinha a situação, apesar de o desfecho de ambos os contos ser parecido no que toca à necessidade de alguns, dos que podem tê-la, em detrimento da de outros.

Para o desfecho do entrave que é criado, Cândido Neves recorre à violência que é naturalizada como parte de seu próprio ser. Toma conhecimento de uma escrava fugida que vale um bom dinheiro e, com isso, vê a possibilidade de ter mais tempo de convencer tia Mônica a ficar com a criança.  Cândido Neves encarna o que Augusto Meyer diz que os personagens machadianos revelam: “o homem, autômato irresponsável, movido a frio pelo egoísmo e pela estratégia dos instintos, girando sempre em torno de si mesmo” (p.86).

A “mãe” de quem fala o título, não é Clara, mas a escrava Arminda que estava grávida, assim como Clara, e que não tem o direito de ter o filho em liberdade. Foge, por temer perder o filho diante da severidade dos castigos físicos do senhor, mas tem por azar encontrar-se com Cândido Neves já sedento por encontrá-la. Machado de Assis mostra os protagonistas de um acordo social em que uns estão dentro e partilham desse acordo – como o faz o jovem Damião, que transforma um desejo em necessidade –, e outros sofrem pela exclusão completa, que gera uma arbitrariedade nos seus destinos. A escrava, mesmo implorando a Cândido Neves, não consegue convencê-lo de sua necessidade, o mesmo acontece com a escrava Lucrécia em “O caso da vara”.

Diante do terror ao voltar para a casa do senhor, Arminda aborta o filho que carregava, diz o narrador que “o fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo” (p.374). O embate a que remete o título não é entre Clara e Cândido, mas entre este e Arminda. Para Cândido, que assistiu a tudo aquilo, quando voltou para casa não pensava no aborto, mas, conclui ele que “nem todas as crianças vingam”. Em suma, Cândido relativiza a morte do filho da escrava e a necessidade somente do seu filho em viver. Procedimento recorrente na obra machadiana, por exemplo, como acontece com Procópio em “O enfermeiro”, quando recebe a herança do homem que mata e começa, aos poucos, a aliviar sua consciência relativizando a situação para usar o dinheiro sem culpa.

Arminda – que significa aquela que detém as armas –, é a única que, ironicamente, está desarmada no conto. A única estratégia que tem a seu alcance é a fuga malsucedida. A escrava Arminda é posta em oposição a Clara e Cândido Neves até no nome. Cândido Neves tem tanto o nome e o sobrenome ligados à cor branca, além de seu nome também carregar uma possível conotação relacionada a seu caráter profissional.

Chama a atenção também o uso do advérbio naturalmente durante o conto. Os que viam a escrava se debater nas mãos de Cândido, sendo levada forçosamente para seu senhor, viam a cena naturalmente. Há uma evidente oposição em quem domina (Cândido Neves), quem é dominada (a escrava Arminda), e quem compactua com a manutenção da escravidão (os que assistem naturalmente). O outro naturalmente é a fúria com que Cândido Neves recupera o filho que havia deixado aos cuidados do farmacêutico. Diz o narrador que a fúria se assemelhava à fúria com que Cândido capturou a escrava, porém agora era uma fúria de amor. Na tragédia Medeia, de Sêneca, a Ama – que faz o papel do sábio estoico –, também percebe essa dicotomia em Medeia: “Reconheço os sinais de uma ira antiga./ Prepara-se algo de importante, selvagem, medonho, ímpio./ Vejo o rosto da Loucura” (p.62).

É como se Cândido Neves, assim como Medeia, fosse aproximado a sua natureza mais recôndita, que é movida, segundo Augusto Meyer, “pela astúcia dos instintos” (p.87). O que só responderia à sua necessidade imediata – ou aquilo que é transformado em necessidade –, e por sua sobrevivência. Medeia também evoca, na ira contra Jasão, uma fúria animalesca e várias vezes compara o sentimento de fúria com o de amor a Jasão que outrora a fez dilacerar o próprio irmão. Ambos, o conto e a tragédia, têm o final trágico em que não importa o que houve depois com Cândido Neves, Clara e Mônica, porque acontecesse o que fosse “Deus nos há de ajudar” (p.366).

Assim como em “O caso da vara”, o leitor pouco sabe sobre o que aconteceu depois do conto. Machado de Assis apresenta três protagonistas pobres que, por necessidade de sobrevivência, ajudam a legitimar o sistema escravocrata. Mas, é por meio da violência sofrida pela escrava Arminda, assim como acontece com Lucrécia, que se revelam os verdadeiros prejudicados, que estão fora de qualquer acordo social e que não têm a quem recorrer, como fez Mônica quando foram despejados.

Clara e Arminda formam um duplo em que a primeira tem a liberdade de ter o filho, mesmo sob a pobreza em que vive, e a segunda tem que recorrer à única forma viável, a fuga, para tentar ter o filho em liberdade. Porém, Arminda paga o preço da fuga e ainda, aos olhos de Cândido, e até de Mônica, ela mesma é que tem culpa, pois “quem lhe manda fazer filhos e depois fugir” (p.377). Dessa forma, há também a relativização da necessidade, que Cândido a vê como somente sendo sua, sem se preocupar com o aborto e a violência praticada à Arminda.

O narrador conta, segundo Antonio Candido em “O esquema de Machado de Assis”, com uma marca definitiva sua, “com uma enganadora neutralidade de tom, os conflitos essenciais do homem consigo mesmo, com os outros homens, com as classes e os grupos” (p.13) são revelados e saltam aos olhos, por meio da violência e da necessidade que servem àqueles que podem fazer uso delas.

***

O ponto de vista dos narradores de Machado de Assis está marcado por uma classe social específica; a classe dominante. E é através de Brás Cubas, do pai de Janjão, e de outros tantos narradores, que Machado de Assis desvela as tensões históricas de sua época.

O crítico Antonio Candido em Iniciação à Literatura Brasileira chama a atenção para, “nos refolhos da frase, no subentendido das cenas, no esforço aparentemente casual da descrição, estão escondidos o interesse lúcido pela realidade social e o sentimento das suas contradições” (p.67). O comentário de Candido à poética de Machado de Assis se encaixa nas cenas mais casuais e rotineiras, que com a precisão cirúrgica de seus narradores, Machado de Assis revela um pensamento não só de época como atemporal.

A obra de Machado de Assis sofreu uma grande influência de autores como Laurence Sterne e Xavier de Maistre evidentes em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), e na ironia que Machado de Assis carrega a partir da publicação do romance citado e dos contos de Papéis avulsos (1882). Além, claro, de suas recorrentes citações à Bíblia, aos retóricos, a Luciano de Samósata – de quem também é evidente a influência de sua sátira menipeia e no método recorrente de inserção de elementos estrangeiros com seu nivelamento ao prosaico. Há no texto machadiano, muitas vezes, o alto e o baixo que se nivelam e encontram homogeneidade. Por esse motivo, não se pensou tão discrepante o intertexto com Medeia, de Sêneca, para explicar o movimento da fúria de Cândido ao capturar a escrava e ao tomar o filho de nos braços.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, T. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas de literatura I. Editora 34: São Paulo, 2012.
ASSIS, Machado. Seus trinta melhores contos. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2011.
CANDIDO, Antonio. O esquema Machado de Assis. Disponível aqui. Acesso em 20/11/18.
CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira. 7 ed. Ouro sobre azul: Rio de Janeiro, 2014.
MEYER, Augusto. Machado de Assis. 2 ed. Edição da Organização Simões: Rio de Janeiro, 1952.
SÊNECA. Medeia. Trad. de Ana Alexandre Alves de Sousa. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013. 


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