Desaguadouro de redemunhos. Grande sertão: veredas
Por Guilherme
Mazzafera
A mudança de
casa editorial da obra de João Guimarães Rosa ocorrida em 2018 trouxe um fato
curioso: o desmembramento de seu único romance, pertencente agora ao catálogo
da Companhia das Letras, do restante do corpus, cuja publicação sob a égide da
Global teve início em março com a nova edição de Sagarana. Se as complicações
mercantis acabam por reforçar a dimensão singular de Grande sertão: veredas em
meio à obra não tão extensa do autor mineiro, há uma razão prática, jurídica,
que permite tal segregação. Os direitos do romance pertencem exclusivamente à
família de Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, segunda esposa do escritor, fato
atestado pela dedicatória presente na obra: “A Aracy, minha mulher, Ara,
pertence este livro.” A presença da dedicatória era preocupação recorrente na
correspondência de Rosa com seus editores estrangeiros, mostrando-se cioso de
manter a homenagem em cada nova língua a que o monólogo de Riobaldo era
transplantado. Como o trato entre as duas veredas de herdeiros nunca foi dos
mais amistosos, não é improvável que uma rusga mais pronunciada tenha dado as
caras na última negociação, conduzindo, assim, ao dissídio editorial.
Em termos
especificamente literários, uma nova edição de Grande sertão é algo a ser
celebrado, sobretudo em face de alguns descuidos pela editora anterior, Nova
Fronteira, e pelo contínuo malogro de uma edição crítica jamais publicada. A
edição da Companhia das Letras apresenta um novo e minucioso cotejo do texto da
última edição da Nova Fronteira (21ª) com a segunda edição, de 1958,
considerada definitiva, e a quinta, de 1967, ano da morte do escritor, feito
por Érico Melo, mestre e doutor pela USP com estudos sobre a obra rosiana e
também responsável pela pesquisa iconográfica e pela cronologia. Segundo a nota
editorial disponível no volume, a principal preocupação no estabelecimento do
texto foi a de se aproximar o máximo possível da edição de 1958 a fim de
resguardar opções estéticas específicas, de preservar “a expressividade de
sinais diacríticos, hifenização e outros pormenores morfológicos e
ortográficos” que acabaram sendo esquecidos ou alterados ao longo das
sucessivas edições, como a coexistência de um mesmo termo acentuado
diferencialmente que se nota em “buriti” e “burití”, a singularidade de acentos
os presentes em “gemêsse”, “umbùzeiro” e “urubú”, ou ainda a hifenização de
“bem-querer”, veiculadora de importantes dimensões filosóficas..
Outro
atrativo é uma cronologia minuciosa da vida e obra de Rosa, destacando, entre
outras coisas, sua variada autuação profissional, os diversos cargos
diplomáticos que exerceu, as edições de suas obras no Brasil e no exterior e,
ponto importante, suas publicações em periódicos, atividade tanto profícua
quanto intermitente com notáveis consequências para a interpretação de sua
obra, evitando anacronismos ao posicionar adequadamente os textos e não supor
repetições esmaecidas onde se tem, de fato, vicejantes novidades ainda que não
de todo lapidadas. O leitor pode se surpreender, por exemplo, com menções a
estudos de Rosa sobre o esperanto, provavelmente seus primeiros textos
impressos (1929, pouco antes de sua estreia como ficcionista com “O mistério de
Highmore Hall”); sua tradução de um breve romance sobre um pássaro, O último
dos maçaricos, a partir do original de Fred Bodsworth, publicada em 1957 pela Reader’s
Digest brasileira; e a participação do autor em obras coletivas como O mistério
dos MMM (1962) e Os sete pecados capitais (1964). É preciso, infelizmente,
apontar dois breves equívocos: ao contrário do que consta na p. 530, o IEB-USP
não possui o “Segundo rascunho” do romance que, creio, está sob guarda da
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin – as duas instituições,
independentes, localizam-se em mesmo complexo, daí a possível confusão. Além
disso, o nome correto do posfácio original de Sezão (versão anterior de Sagarana)
posteriormente elidido é “Porteira de fim de estrada” e não “Porteira de fim de
caminho”, como consta na p. 520. Nonadas que uma nova impressão certamente corrigirá.
Após a
cronologia, há uma bela série de fotos: entre outras, vemos Rosa, Aracy e seus
gatos; lembranças da viagem do escritor ao sertão mineiro em 1952, acompanhado
de Manuelzão e outros vaqueiros; Rosa contemplando os tamanduás no zoológico; o
escritor labutando compenetrado em sua mesa; o anúncio publicitário do romance
que solicita encarecidamente que “não passe adiante o seu enredo”; e, minha
favorita, Rosa ensaiando seu discurso de posse nas escadarias da ABL (imagem aqui reproduzida), visto de
cima, captando a tensão imanente à consagração de um autor dotado de uma prosa
“permanentemente emocionada”, no dizer de Alberto da Costa e Silva1.
Mosaico
crítico
A consultoria
da edição ficou inicialmente a cargo dos professores Davi Arrigucci Jr., José
Miguel Wisnik, e Murilo Marcondes de Moura, todos uspianos e grandes leitores de
Rosa. O primeiro acabou, em algum momento, por se desligar do projeto, embora
marque presença por meio de um dos seus melhores ensaios. Um dos prováveis
encargos dos consultores foi a composição de um mosaico de leituras críticas
sobre a obra, presente em fonte menor ao final da leitura, que exige algumas
observações. Como breve introito, salientando o impacto vivo da obra pouco após
o lançamento, temos uma breve troca de cartas entre Fernando Sabino e Clarice
Lispector. Ainda no meio da leitura, Sabino – que escreve apenas três dias após
a data de chegada do romance às livrarias cariocas – confidencia estar diante
de “obra de gênio” que reatualiza e supera todo um filão da prosa nacional
(“Adeus, literatura nordestina de cangaço, zélins, gracilianos e bagaceiras”) e
que, apesar do começo “meio assim-assim”, draga o leitor em seu ritmo e
linguagem particulares que “nem Gil Vicente, nem ninguém” suplanta. Clarice,
por sua vez, responde também no ínterim da travessia, alguns meses depois,
concordando com Sabino: “Nunca vi coisa assim! É a coisa mais linda dos últimos
tempos. Não sei até onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o limite do
imaginável. Estou até tola.” A escritora não menciona qualquer dificuldade de compreensão
ou travejamento; pelo contrário, a linguagem de Rosa, para ela, “é diretamente
entendida pela linguagem íntima da gente”, progênie de um escritor que
“inventou a verdade”. Clarice ainda observa que a leitura lhe está
proporcionando “uma reconciliação com tudo, me explicando coisas adivinhadas,
enriquecendo tudo”, aspectos bastante afinados com a poética rosiana de que é
preciso enriquecer a linguagem a partir da exploração irrestrita de suas
possibilidades – “E é preciso refundi-la no tacho, mexendo muitas horas.
Derretê-la, e trabalhá-la, em estado líquido e gasoso”, diz ele em carta a seu
tio escritor Vicente Guimarães2 – a fim de dar forma ao que a
intuição pervaga.
Os cinco
textos que seguem delineiam uma “trama de leituras” cuja intenção original era
a construção de um percurso claramente ordenado, principiando pelo essencial
texto de Antonio Candido, “O homem dos avessos”, passando em seguida por
estudos eminentes de três de seus mais famosos orientandos, Roberto Schwarz,
Walnice Galvão e Davi Arrigucci, chegando ao viés filosófico arguto de Benedito
Nunes (que entremeia cronologicamente Galvão e Arrigucci) e, por fim, a um excerto
de Silviano Santiago extraído de Genealogia da ferocidade (2017), obra
inteiramente dedicada a Grande Sertão e que se reporta criticamente aos textos
de Candido e Schwarz. No entanto, algum imbróglio entre a editora e herdeiros
acabou impugnando o texto de Candido, mesmo sua versão mais antiga, ausência
gritante explicitamente lamentada: “Nenhuma dessas versões pôde ser incluída neste volume.”
Do lado de
cá, conjeturo que a recusa tenha sido total, inviabilizando, inclusive, a
publicação de “No Grande Sertão”, resenha do crítico escrita no calor da hora
que já delineia alguns de seus principais argumentos desenvolvidos mais tarde e
que se encontra recolhida em Textos de intervenção (Editora 34, 2002), salvo
engano, o único livro de Candido não pertencente à Ouro sobre Azul, editora
cuja proprietária é sua filha, Ana Luísa Escorel. Curiosamente, a resenha de
Candido sobre Sagarana, compilada no mesmo volume, é parte integrante da nova
edição da Global, o que parece apontar para um problema específico entre os
herdeiros de Candido e a Companhia das Letras. Outro ponto levemente destoante
na composição da recolha crítica foi a escolha do texto de Schwarz: onde se
esperaria a leitura comparativa entre Rosa e Thomas Mann feita em “Grande
Sertão e Dr. Faustus” – um dos objetos da crítica de Santiago, ainda que não
explicitamente presente nesta edição –, tem-se “Grande Sertão: a fala”, leitura
pioneira sobre a qualificação do “monólogo dialógico” de Riobaldo, mas que
acaba enfraquecendo a leitura de Santiago ao privá-la de seus referentes
imediatos.
Apesar de tais
descompassos, a fortuna crítica presente no volume é das mais impressionantes,
congregando leituras em grande parte já canônicas cuja discussão facilmente
ultrapassaria o propósito desta resenha. Destaquemos apenas uma espécie de
vértice comum que as norteia. Tomando por base o “grande princípio geral de reversibilidade”
observado por Antonio Candido em “O homem dos avessos” (1964, reelaboração de
“O sertão é o mundo”, de 1957), que aponta para o caráter estruturante da
ambiguidade no romance, operando “uma fusão de contrários, uma dialética viva”
que permeia todas as instâncias (geográfica, histórica, sexual, existencial
etc.) e cujo ponto nodal é o estilo misturado (“popular e erudito, arcaico e
moderno, claro e escuro, artificial e espontâneo”), engendrador de “formas mais
ricas de integração no ser”3, as leituras aqui agrupadas buscam
precisar, sob variados ângulos, o fusionamento do disjuntivo em unidade mais
profunda ou, em formulação mais feliz, da lavra do autor, suas “puras misturas”4.
Em “Grande
sertão: a fala” (1965), Schwarz aponta para a mescla de gêneros (épico,
dramático e lírico), a qualificação do “monólogo inserto em situação dialógica”
e a própria segmentação sintática (predominância da parataxe e uso expressivo
da vírgula) cujo acúmulo resulta em potente “jorro verbal” que estrutura
dinamicamente o discurso do romance. Em “O certo no incerto: pactário” (1972) –,
excerto de sua pioneira tese sobre a obra, As formas do falso –, Walnice Galvão
localiza a “matriz imagética” do romance no caso de Maria Mutema, sobretudo na
imagem da “coisa dentro da outra” que se refrata profusamente ao longo da
narrativa, em veios concretos (a bola de chumbo dentro do crânio do marido de
Mutema) e abstratos (a confissão de Mutema que conduz o Padre Ponte ao
suicídio). A partir disso, a crítica qualifica a busca do narrador pelo “certo
no incerto”, culminando na ideia do pacto demoníaco como interrupção do fluir
da vida, que conduz à morte e que tem por cerne a figura esquiva do Cujo: “o
diabo na rua, no meio do redemoinho”.
Em texto
paradigmático para pensar o enlace entre literatura e filosofia, Benedito Nunes,
em “A matéria vertente” (1983), aponta para a confluência de tendências
espiritualistas em Rosa, rasamente agrupadas sob a rubrica “neoplatonismo”, e
descreve o imbricamento meândrico entre o filão do “romance de busca ou de
demanda” com o “moderno romance de introspecção”, que, por sua vez, promove a
mescla da ordem com a duração, culminando na “juntura da temporalidade” com o
“Destino” cosida por uma narrativa “em permanente balancê”. Já Davi Arrigucci qualifica,
em “O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa” (1994), a
mistura das formas narrativas (provérbios, causos, épica oral) em “relação
orgânica” entre forma e matéria, com certo desdobramento na própria trajetória
de Riobaldo, cujo “modo de ser no tempo” é marcado pela consciência
problemática do herói de romance (cf. Lukács), corporificada exemplarmente na
“Canção de Siruiz”. O crítico aponta ainda para a presença de uma linguagem
“misturadíssima”, que visa a desautomatização do leitor, e a construção de um
amálgama temporal, em que a “temporalidade histórica está presente no interior
do sertão como processo”.
Leitura mais
recente e propugnadora, o texto de Silviano Santiago, “Cabo das Tormentas”
(2017), recusa o olhar conjuntivo evidenciado nos textos anteriores – e
presente, em certa medida, na própria capa, originada por um bordado que trama
os nomes de diversos personagens, escolhidos de modo mais ou menos aleatório5
–, encarando o romance a partir de sua dimensão monstruosa, desnorteante e
excrescente. A fieira de imagens deste tipo é vasta – “beleza selvagem”; “aberração
inquietante”; “acrimoniosa e
destemperadamente varonil”; “ácido, corrosivo e principalmente intempestivo” – e
termina por aproximá-lo do Adamastor camoniano, porta-voz do “enclave selvagem”
que é o Brasil e que segrega o romance das principais manifestações artísticas
à sua volta, da poesia concreta ao plano piloto de Brasília, cuja construção é
iniciada no ano de lançamento do livro. Coerente com seu eixo metafórico,
Santiago irá criticar, nos capítulos seguintes de Genealogia da ferocidade (não
incluídos aqui), o viés domesticador instaurado pela crítica brasileira na
leitura do romance, em especial a aproximação nacional com Os sertões (Euclides
da Cunha), feita por Antonio Candido, e a internacional com Dr. Fausto (Thomas
Mann), segundo a leitura de Roberto Schwarz. E, não menos enfático, conclui: “O
doméstico (em crítica literária) é pulsão de morte: ressalta a qualidade
fantasmática do monstro selvagem morto”6 Ao contrário dos outros
textos, no entanto, o excerto de Santiago presente na edição mais adverte do
que interpreta, exigindo a leitura completa de Genealogia para plasmar o
argumento, leitura esta que põe em questão (e risco) seu próprio intuito: em
que medida é possível, para a crítica literária, resguardar o indoméstico do
seu objeto?
Cabe, no
entanto, uma pequena ressalva quanto ao caráter essencialmente uspianocêntrico
(é um uspiano que vos escreve) e mesmo “brasileiro” do mosaico crítico. No
momento em que escrevo, estão sendo preparadas ao menos três novas traduções do
romance, para o inglês, francês e alemão, sob a pena respectiva de Alison
Entrekin, Francis Utéza e Berthold Zilly, fato que, acoplado à atuação
internacional de grandes leitores como a portuguesa Clara Rowland e o italiano
Ettore Finazzi-Agrò, autores de importantes livros publicados no Brasil e
referidos na bibliografia complementar da edição, parece sinalizar que o
romance rosiano já flui em estuários distintos, algo que a própria produção de
novas leituras brasileiras não pode ignorar. De todo modo, a inclusão do
mosaico crítico é parte de um esforço instigante de ofertar ao leitor
brasileiro, em especial ao não acostumado com crítica literária, cinco poderosas
interpretações de um dos maiores romances do século XX. Caso isso não seja
suficiente, tal leitor pode recorrer à bibliografia complementar ao final do
volume, com 44 novos mapas para seguir (e fatalmente se perder) na travessia do
texto.
Desaguadouro
de redemunhos
Grande
sertão: veredas é o desaguadouro do que entendo como o segundo momento de
escritura rosiano7. Este tem início após o par Magma-Sagarana, obras
compostas nos anos 1930 e anteriores à experiência de guerra do escritor
durante sua estadia em Hamburgo (1938-42), momento no qual o autor compõe o Diário
de guerra, a primeira manifestação mais ostensiva do uso da primeira pessoa,
ângulo narrativo secundário no livro de estreia. A exploração mais assídua do
recurso irá se tornar evidente nas duas dezenas de textos publicados entre 1947
e 1954 – separados em dois momentos pelo hiato da experiência parisiense de
Rosa entre 1948 e 1951 –, nos quais se nota a passagem dos narradores confiantes
e altivos dos textos em terceira pessoa de Sagarana para os narradores em
primeira pessoa simultaneamente fragilizados pela pujança referencial dos
eventos por enformar e convictos do valor de resistência que as palavras
oferecem à matéria. Trata-se de um período de aprendizado, no qual o escopo de
sua literatura se desloca no tempo e no espaço, sendo feita desde o presente
histórico, imediato, e de lugares outros que não o seu espaço de eleição.
Estruturante
dos principais textos de do período – a tríade “O mau humor de Wotan” (1948),
“Com o vaqueiro Mariano” (1947-48, republicado com alterações em livro de
tiragem limitada em 1952) e “Pé-duro, chapéu-de-couro” (1952) – é o nó
dramático entre impessoalidade e aproximação, alçado a ângulo narrativo em seus
limites e possibilidades cognoscitivas, estratégia mobilizada pelos narradores
em sua busca pela constituição de um retrato do outro a que sempre escapa
alguma coisa e que exige um distanciamento mínimo para enxergar-lhe o todo. Tal
elemento é reposto na tensão entre a presença in situ dos narradores e sua
escrita, que, com algum distanciamento temporal, reencena essa presença já
mediada pelo crivo reflexivo. O transplante de ideias e mesmo de um léxico de
guerra de Hamburgo – experiência da qual “Wotan” é o grande texto rosiano e um
dos mais potentes produzidos por autor brasileiro sobre o assunto – para a
Nhecolândia no Pantanal em “Mariano” e, ainda que mais suavizado pelo
afirmativo da ressonância épica, para os sertões da Bahia em “Pé-duro”,
rearticula esses textos de circunstância numa espécie de alinhamento ético, em
que a linguagem é chamada a defender, pela explicitação do seu falimento, o
objeto que ela não consegue incorporar sem entraves.
Grande
sertão: veredas representa, no âmbito do ponto de vista em primeira pessoa descrito
acima, o retorno de Guimarães Rosa ao seu espaço de eleição bem como a
exploração-limite de uma nova forma narrativa: o romance. Em sua origem, o
texto integraria o ciclo novelesco de Corpo de baile, livro publicado apenas alguns
meses antes no mesmo ano de 1956, mas o seu pendor de fôlego e fluxo incutiu a
necessidade de individuação. Pode-se dizer que, a partir daqui, o núcleo do
presente não abandona mais a literatura rosiana, pois embora as narrativas de Corpo
de baile e Grande sertão: veredas estejam situadas, novamente, no passado, a
própria passagem do tempo se torna elemento significativo de sua estrutura,
seja no caráter cíclico do feixe de novelas que retoma em “Buriti” o
protagonista, agora adulto, de “Campo geral”, ou na própria fatura do romance,
que se debruça sobre os meandros do passado, misturados na memória e trazidos,
de modo dificultoso, à luz ordenadora do presente.
“Com o
vaqueiro Mariano” constitui um texto fundamental na obra de Rosa por encenar os
próprios bastidores da ficção em tensão constitutiva. Nele, temos um visitante
urbano que encontra pouso na casa do vaqueiro do Pantanal, entabulando longa
conversa noturna e, no dia seguinte, saindo a campo com Mariano e
experimentando suas lides. Salvo de um ataque de touro pelo vaqueiro, o
narrador entabula uma breve interlocução dialógica apenas no remate do texto,
em face de um casal de quero-queros que se recusa a sair do caminho dos
cavalos, protegendo empinadamente seu ninho. Com exceção do final, o texto
constrói-se pela alternância entre o discurso indireto do narrador e as falas
em discurso direto do vaqueiro, que por vezes acumulam-se, respondendo a
perguntas não enunciadas, um ensaio da técnica do monólogo dialógico aprimorada
no romance e repercutida em outras narrativas como o impressionante “Meu tio o
Iauaretê”, “O espelho” e “Antiperipleia”, nas quais a presença verbal do
interlocutor urbano é habilmente elidida. Em “Com o vaqueiro Mariano”, o não
apagamento do interlocutor, gesto que poderia ser antiquado perto do que o
regionalismo já conquistara, sobretudo em Valdomiro Silveira e Simões Lopes
Neto, acaba por reordenar o problema ao tematizar uma questão que passara
batido nessa modalidade ficcional pela entrega direta da voz narrativa: a
intransmissibilidade da experiência:
“Te aprendo
ao fácil, Zé Mariano, maior vaqueiro, sob vez de contador. A verdadeira parte,
por quanto tenhas, das tuas passagens, por nenhum modo poderás transmitir-me. O
que a laranjeira não ensina ao limoeiro e que um boi não consegue dizer a outro
boi. Ipso o que acende melhor teus olhos, que dá trunfo à tua voz e tento às
tuas mãos. Também as estórias não se desprendem apenas do narrador, sim o
performam; narrar é resistir”.8
Ao vaqueiro,
definido de partida como “bom-condutor de sentimentos” e “governador de si
mesmo”, opõe-se um narrador fragilizado, que percebe que o cerne da experiência
– a “verdadeira parte” – não pode ser desacoplada do corpo que a vive. Narrar,
portanto, não é meramente compartilhar estórias, mas (re)vivê-las corporalmente,
resistindo.
Eu é um
outro
Em Grande sertão: veredas, a voz é cedida ao personagem rústico, ao outro, mas esse mesmo
personagem passa, agora, a ter entraves constitutivos diante de sua própria
experiência. Assim, Riobaldo reúne em si Mariano e seu entrevistador: possui
portentosa estória e empenho narrativo, mas o que lhe põe a narrar não é tanto
o instigar do ouvinte, mas sim a necessidade de recontar para se entender. A
presença corpórea de um outro, interlocutor citadino, oferece-se não como
entrave incontronável, mas como possibilidade de mediação de si mesmo, daí o
anseio por ouvir o que o outro tem a dizer sobre sua narrativa: “De tudo não
falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para
quê? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho.” No
entanto, se a presença do ouvinte ajuda a ordenar e moldar a narrativa de
Riobaldo – “Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo – me escutando com
devoção assim – é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido” –, ela
não imprime fundas garantias de comunicabilidade: “Para que conto isto ao
senhor? Vou longe. Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber?
São coisas que não cabem em fazer ideia.” Parte de sua busca é a de uma tomada
de posse gradual do próprio narrar, em que mesmo o gesto mais vincado nunca é
de aderência plena, salvaguardando distâncias : “O senhor é de fora, meu amigo,
mas meu estranho”
Ato
contínuo, a despersonalização é tática válida e necessária para a
inteligibilidade mínima daquilo que está muito perto: “Por daí, então, careço
de que o senhor escute bem essas passagens, da vida de Riobaldo, o jagunço.
Narrei miúdo desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento.
O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui – porque não sou, não quero
ser. Deus esteja.” O sair de si mesmo, estratégia aproximativa, configura-se
paradoxalmente como passo necessário para o autodomínio, lição expressa com
vivacidade por Zé Bebelo ao fim do julgamento e que ecoa como síntese do
percurso de Riobaldo: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é
tomando conta dele adentro...”
(Des)Governo
A ideia de
“governador de si mesmo”, eminente no vaqueiro Mariano, parece figurar como uma
espécie de meta do percurso vivido e narrado por Riobaldo, incluindo,
evidentemente, o governo do texto, em cujo desgoverno dos fios, sobretudo no
início, reside a maestria do autor, enquanto que no decorrer da narração as
feições se tornam mais nítidas, adquirindo até mesmo o âmbito do causal e da
sucessão.
Num primeiro
momento, ‘governar’ aparece associado às “potentes chefias” de Joca Ramiro e
Medeiro Vaz, jagunços vincados pelo imaginário épico e medieval. Em seu leito
de morte, “se governando mesmo no remar a agonia”, Vaz parece apontar Riobaldo,
que afirma ter visto seu “lume no lume dele”. Já na descrição de Joca Ramiro,
Riobaldo implica ao verbo governar uma categorização ontológica, em que a
condição para o ser passa pelo governo de si: “Joca Ramiro sabia o se ser;
governava;”. É com essa predisposição, de quem sabia “represar os excessos”,
que ele rege o julgamento de Zé Bebelo: “Assim Joca Ramiro era homem de nenhuma
pressa. Se abanava com o chapéu. Ao em uma soberania sem manha de arrocho,
perpasseou os olhos na roda do povo.”
Na cena do
tribunal jagunço, Riobaldo aprecia o discurso de Titão Passos, que não cede ao
impulso violento, entendendo que cada coisa tem sua hora: “A bem, se, na hora,
a quente a gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava certo, estava
feito. Mas o refrêgo de tudo já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou
talho?” Diante dessa fala, Riobaldo percebe o ethos de homem que se governa,
que domina sua natureza, visão que lhe dá uma esperança formativa: “Coração meu
recomprei, com as palavras de Titão Passos. Homem em regra, capaz de mim.”
Afiançando o
bom proceder de seu antigo mestre-aluno, que não consente com judiação,
Riobaldo argumenta que condená-lo como “boi de corte” é ato infame que põe em
risco o próprio “sobregoverno de Joca Ramiro”, já que a guerra que “encheu este
sertão” certamente passaria às cantigas dos bardos sertanejos, eternizando,
assim, a desonra que se queria perpetrar: “Um fato assim é honra? Ou é
vergonha?” A busca pela glória, anseio caro ao herói épico, consiste, para
Riobaldo, em gesto voluntário, pensado, que converte a mênis de Aquiles na pietas
de Enéias: “Fama de glória, que primeiro vencemos, e depois soltamos...”
Complementarmente,
a tensão entre controle e essência aparece de modo expressivo na figura de
Diadorim, a quem Riobaldo descreve como “tão galhardo garboso, tão governador,
assim no sistema pelintra, que preenchia em mim uma vaidade, de me ter
escolhido para seu amigo todo leal.” Sob o aparente domínio oculta-se a negação
do natural (o sexo) e das forças agregativas (o amor) em prol do cumprimento de
violento desígnio, a vingança pela morte do pai, motivo que precipita a
narrativa em redemunho.
Pacto e
pactário
A figura do
diabo representa, em certa medida, o desgoverno, a quebra das intenções
espirituais do homem e o desvio da via-recta do ser autônomo, entrando nessa
noção o veio etimológico de diá-bolos, explorado por Marcus Mazzari com o
sentido de ‘desagregar’, ‘desunir’, e por Willi Bolle no âmbito de uma entidade
que “se interpõe”9.
Pela
aproximação da figura do demo com Hermógenes, pactário, comparece em sua
descrição o descontrole das palavras, que ditam as más ações: “O Hermógenes
tinha voz que não era fanhosa nem rouca, mas assim desgovernada desigual, voz
que se safava.” Já no julgamento notara Riobaldo as intervenções do judas
expressas “numa voz rachada em duas, torta entortada”, algo semelhante ao que
observa em sua própria voz após o pacto: “Voz minha se estragasse, em mim tudo
era cordas e cobras”.
Lutando
contra a perda da autonomia da vida imposta pelo possível pacto, vemos o pugnar
do ex-jagunço na própria descrição da cena emblemática, permeada por verbos que
indicam a concreção de sua vontade:
– “Afora eu.
Achado eu estava. A resolução final, que tomei em consciência.”
– “Ao que eu
estivesse destemido, soberbo? [...] Somente com a alegria é que a gente realiza
bem – mesmo até as tristes ações.”
– “Deus é
muito contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé, por meu querer, como fui.”
– “Esperar,
era o poder meu; do que eu vinha em cata [...]”
– “Como é
possível se estar, desarmado de si, entregue ao que o outro queira fazer, no se
desmedir de tapados buracos e tomar pessoa? Tudo era para sobrosso, para mais
medo; ah, aí é que bate o ponto. E por isso eu não tinha licença de não me ser,
não tinha os descansos do ar. [...] Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria
era – ficar sendo!” (grifos nossos)
Em resumo, a
busca de Riobaldo, que o torna personagem problemático, de romance, é o que
caracteriza Mariano desde o começo: ser “governador de si mesmo”: “Eu queria
minha vida própria, por meu querer governada”. Naturalmente, o caso de Riobaldo
se afigura mais complexo, na medida em que o verbo governar é atravessado pelos
veios do poder mandatório pessoal, que ele acaba por adquirir na esfera da
jagunçagem, como chefe do bando, e fora dela, como fazendeiro abarrancado com a
herança paterna.
Astúcias de
chefe
De seu
período na Nhanva, Riobaldo retém de modo vívido o ensinamento de Zé Bebelo de
que a importância do governar reside em não ser governado por outrem,
incitando-o a refrear seus impulsos, seja de ordem sexual (como com a neta de
seu Ornelas durante o convivium na fazenda Barbaranha) ou de violência
gratuita, do qual há um caso interessante, o do homem, da égua e da
cachorrinha.
Após perdoar
nhô Constâncio Alves, Riobaldo, chefe do bando, propõe-se a matar o próximo que
aparecesse na estrada como compensação. Mas eis que aparece um homem
alquebrado, “anunciado de pobre”, montado numa égua e acompanhado por uma
cachorrinha. Preso entre a palavra empenhada e o enjoo de ter que dar cabo de
alguém inocente, provação demoníaca, Riobaldo se recorda do antigo mestre: “Ah,
e Zé Bebelo! – repentino relembrei, as remotas vezes. Os cavalos saltando
assim, os cavaleiros bramando: recordação de Zé Bebelo; Só Zé Bebelo servia
para apurar um impedimento desses, no deslindar”. Do pervagar na memória surgem
“fortes ideias”, com as quais se exime de matar o homem por alegar ter visto
primeiro a cachorrinha e, tendo já aprendido as sutilezas, dá nova cartada ao
substituí-la pela égua. Percebendo certa manifestação de seus homens contra a
morte do animal, arrazoa que o desagravo não era com o seu pensar, mas sim “Do
demo era que eles discordavam”, e, tendo posto “palavra decidida” de que
mataria um homem, deixa livre o animal, já que “égua não é gente, não é pessoa
que existe.”
Ao permitir,
com manobras engenhosas, que a vida prossiga, Riobaldo nega o demo, mas com
dramática consciência de que tomar tal decisão para contradizer o Cujo já é, em
certo sentido, uma forma de submissão: “Verdadeiramente, com alegria, foi que
todos me aprovavam [...] e mesmo nem sabiam que essas minhas espertezas eram
cobradas da manha do Tentador. Contente, tanto, e descontente, comigo, era que
eu estava. Porque essas coisas, de certo modo, me tiravam o poder do chão.” A
lição aprendida com Zé Bebelo parece ofertar uma solução possível para esse
drama, em que pensar no demo é dar-lhe condições de existir:
“Que era:
que a gente carece às vezes de fingir que raiva tem, mas raiva mesma nunca se
de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que
se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e
o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato
é.”
Tal ideia
ganha ainda mais relevo quando perscrutamos sua fonte originária, o Jesus dos
Evangelhos, vencedor da morte e das tentações demoníacas. No fragmento 17 do
ensaio inédito “Liquidificador”, ao sugerir uma leitura viva das palavras de
Cristo como “conselhos clínicos”, o autor extrai a seguinte lição: “Não ter
raiva de outrem, por exemplo. É óbvio: sentir raiva de alguém é dar a essa
pessoa domínio sobre nosso sentimento e pensamento sobre o que temos de mais
íntimo e importante. Além das perturbações fisiológicas, úlceras gástricas,
etc.”10 A lição de Zé Bebelo faz-se dificultoso aprendizado para o
Riobaldo-chefe, que não deve colocar as desavenças pessoais acima do interesse
do bando, e para o Riobaldo-narrador, que a cada torneio frasal sabe que falar
de si é, sempre, falar de um outro, que foi ou, talvez, não chegou ainda a ser.
Veio vital
da ficção rosiana, o topos do controle da natureza humana (e do aprimoramento
do homem) como meio de encontro com seu destino pessoal atravessa a obra por
inteiro: o ascetismo violento de Augusto Matraga, desejoso de ir ao céu a
porrete (“A hora e vez de Augusto Matraga”); a visão admirada do narrador em
face de Hans-Helmut, seu amigo alemão que “cria num destino plástico e
minucioso, retocável pelo homem” (“O mau-humor de Wotan”); o raro recurso à
citação direta, por meio do Huizinga de Nas sombras do amanhã, que culmina na
percepção da “condição primordial da cultura”: “a dominação da natureza, mas da
natureza humana” (“Pé-duro, chapéu-de-couro”); o viver e o manejo do passado
como “plástico e contraditório rascunho”, prodigamente refeito por Jó Joaquim
(“Desenredo”); e o anseio vertiginoso do atormentado protagonista de “Páramo”,
texto tardio e súmula complexa da obra: “sempre foi minha ânsia querer
acumpliciar-me com o destino.”
Acrescentemos,
apenas, que intrínseco ao aprimoramento do homem é o manejo da linguagem,
perpassando todas as angústias e ritornelos de Riobaldo e subjazendo à fala
deste como desejo de forma – narrar é resistir –, que irmana autor, narrador e
ouvinte(s) no que ela tem de fluidez circunscrita, síntese provisória e encontro
iluminador: “o mais difícil não é ser bom e proceder honesto; dificultoso,
mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da
palavra.”
Ligações a esta post:
Notas
1 SILVA,
Alberto da Costa e. “Estas Primeiras estórias”. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras
estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
2 Carta
datada de 11 de maio de 1947, recolhida em: GUIMARÃES, Vicente. Joãozito: a infância de João Guimarães Rosa. São
Paulo: Panda Books, 2006.
3 CANDIDO,
Antonio. “O homem dos avessos”. In: Tese e antítese. Rio de Janeiro: Ouro sobre
Azul, 2012.
4 Incrível e
feliz achado de Sandra Vasconcelos no Fundo João Guimarães Rosa do IEB-USP e
utilizado como título no seu excelente livro Puras misturas: estórias em
Guimarães Rosa (Hucitec/Fapesp, 1997).
5 A
concepção do bordado e da capa é explicada neste vídeo.
6 SANTIAGO,
Silviano. Genealogia da ferocidade. Recife: Cepe, 2017, p. 34.
7 O leitor
interessado pode conferir o desenvolvimento completo de tal hipótese em minha
dissertação de mestrado, disponível aqui.
8 ROSA, João
Guimarães. “Com o vaqueiro Mariano”. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.
9 Ver,
respectivamente, MAZZARI, Marcus Vinicius. “Veredas-Mortas e Veredas-Altas: a
trajetória de Riobaldo entre pacto demoníaco e aprendizagem”. In: Labirintos da
aprendizagem: pacto fáustico, romance de formação e outros temas de literatura
comparada. São Paulo: Editora 34, 2010; e BOLLE, Willi. grandesertão.br: o
romance de formação do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2004.
10 Arquivo
IEB-USP, Fundo João Guimarães Rosa, documento JGR-M-21,01.
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