Treze obras da literatura que têm gatos como protagonistas
Doris Lessing |
“Mais do que
a coruja, o gato é símbolo e guardião da vida intelectual”
Carlos
Drummond de Andrade, “Perde o gato”, de Cadeira
de balanço
É possível,
tantos anos depois das primeiras narrativas que trouxeram o gato como
protagonista, estabelecer a compreensão de um modelo de prosa, à maneira como
se determina outros segmentos na literatura. Parece que o registro mais antigo dos
bichanos na narrativa literária remonta ao período grego; nas fábulas de Esopo,
o gato é retratado como um animal astuto, capaz de tudo para alcançar seus
interesses. O fabulista grego sublinha, assim, a inteligência, a astúcia e a
esperteza; se à primeira vista o gato consegue se dar bem, não deixa de cair
nas graças daqueles a que persegue, como em “O gato e os ratos” e “O gato médico
e as galinhas”. Isto é, tem lugar desde esse período a condição ambivalente que
assumirá ao longo das representações literárias.
O papel de malvado
que se apresenta nas fábulas de Esopo é um dos lados da ambivalência. Que o
diga, Plutão, o gato que na narrativa de Edgar Allan Poe se apresenta como o
sádico, violento e perverso – qual “O gato que convidou pássaros para um
jantar”. Ainda no universo das fábulas, La Fontaine, recupera o tino ardiloso e
esperto do gato. Mas, outro caráter, o de figura enigmática, terá contribuído
para a outra margem de representação dos bichanos na literatura. Em Alice no país das maravilhas, Cheshire é
o dotado da reflexão filosófica.
Foi sobre
uma e outra possibilidade que se construiu todo o imaginário literário sobre os
gatos e é talvez, por isso, que estes tenham se tornado tão próximos dos que
lidam com a palavra – esse instrumento igualmente ambivalente. Quer dizer,
justifica-se, ao menos em parte a predileção dos escritores para com esses dóceis
e malvados bichanos. Há quem diga que a aproximação entre as duas figuras se dá
por outra via: os gatos, como os escritores, são introspectivos, gostam da
quietude e do silêncio.
Se alguns
amaram tanto seus bichanos ao ponto de eternizá-los nos seus escritos, como
Doris Lessing, outros foram tão apaixonados por eles que se entregaram ao
prazer de tê-los em enorme quantidade, como Ernest Hemingway, talvez o mais encantado
de todos os escritores por essas figuras de pelo e garras. A casa onde morava o
escritor estadunidense, agora um museu, ainda tem como atração muitos bichanos,
todos descendentes daqueles que primeiro o acompanhou.
Mas, voltando
à presença dos gatos na literatura, é possível dizer que estes inauguram quase
uma categoria no interior da prosa como acontece com outros segmentos aí recorrentes.
De personagens, a narradores; de figuras fundamentais para o plot narrativo a
elementos na paisagem; de temário a louvação na poesia. Sim, os poetas amaram
ainda mais os gatos; Bocage, Charles Baudelaire, Fernando Pessoa, Pablo Neruda,
T. S. Eliot, Cecília Meireles, Mario Quintana, Vinicius de Moraes, Orides
Fontela, António Gedeão, Ferreira Gullar, Charles Bukowski, Ana Cristina Cesar,
Manuel António Pina, Donizete Galvão... Gatos, gatos e gatos. A lista é longa e
daria uma excelente antologia.
E, por falar
em lista, eis uma em que eles são exclusivos. Recolhemos títulos de variadas
formas – contos célebres, crônicas, poemas, novelas – mas em que as figuras principais
são os gatos, em sua variada forma de apresentação. A organização desta lista, como
outras publicadas por aqui, não obedece a um critério valorativo, e a ordem de
apresentação dos títulos apenas respeita um sentido, o da forma literária –
assim: começamos pelo poema, passamos pelo conto e a crônica e findamos com a
novela e o romance. Não custa redizer algumas questões das que dizemos em todas
as listas aqui publicadas: não é nosso interesse esgotar um tema tão vasto; só
o de oferecer alguns caminhos possíveis a leitores interessados ou capazes de
se interessar pelo tema. O resumo sobre as obras foi construído graças às
sinopses oferecidas pelas editoras para a divulgação dos títulos aqui
apresentados.
- O livro dos gatos sensatos do Velho Gambá,
de T. S. Eliot
Caetano
Galindo, no posfácio que escreveu para Poemas,
publicação recente em que o leitor poderá encontrar esse livro, recorda uma carta
que Eliot escreve ao seu irmão logo depois da morte do pai, em 1919; nela menciona
certos desenhos de gatos que o pai lhe dera. “Esses desenhos, essas lembranças
e um fascínio constante pelos gatos
(dotados, segundo ele, de quantidades gigantescas de duas qualidades
fundamentais: dignidade e comicidade) podem ter levado o poeta a imaginar o
projeto para crianças que ele mesmo pretendia ilustrar”. A redação desse livro
data de 1936 e 1936. “Publicado, o livro rapidamente passou por uma série de
reimpressões, e acabou se tornando um sucesso. Já em 1954 teve uma primeira
adaptação musical para o palco (de Alan Rawsthorne), e acabou sendo levado à
Broadway em 1981 por Andrew Lloyod-Webber, em seu musical Cats, que reinvento as regras do gênero e seus parâmetros de sucesso,
tendo se mantido em cartaz por mais de vinte anos, ininterruptamente.” Segundo
o tradutor brasileiro o que vemos nesse livro “é um dos versificadores mais competentes
do século usando todo seu talento para dizer ‘bobagem’ da maneira mais
interessante possível, em termos de ‘superfície’”.
- Sobre gatos, de Charles Bukowski
Não é preciso
insistir na constatação um tanto óbvia sobre a qualidade irregular da obra do poeta
estadunidense, que ao contrário de T. S. Eliot, falta talento mesmo para dizer
bobagem. Mas, pelo amor que guardou
pelos bichanos parece superar tudo: até mesmo a inclusão de seu livro nesta
lista. O escritor considerava esses animais professorais, sábios, majestosos,
potentes, inescrutáveis, sensíveis e sobreviventes; esta última qualidade é
possível que se confunda com a própria natureza do Velho Buk. A antologia aqui
apresentada foi organizada por Abel Debritto, biógrafo do autor; são textos de
forma variada, em verso e prosa que retratam os felinos muitas vezes como
ferozes e exigentes; e para sair da apenas especulação que o registro sobre os
gatos compreendia uma leitura de si próprio, o leitor encontrará nesta
antologia gatos que são seu alterego: vagabundos, lutadores e caçadores.
Figuras de olhar inquietante capazes de penetrar as profundezas do interior,
uma maneira de reafirmar outra crença de Bukowski sobre os bichanos: o de serem
forças únicas da natureza, emissários sutis da beleza e do amor.
- Os gatos, de Patricia Highsmith
Dizem que
para Winston Churchill os gatos são os únicos animais que nos olham de cima
para baixo. A estadunidense autora de romances que são um verdadeiro mergulho
na psicologia humana foi também mais uma, entre os grandes escritores, interessada
em se deixar render pelo mistério dos felinos. Tal era o valor que dava a esses
animais que, ao ouvir no rádio o famoso apelo do presidente JFK “Não pergunte o
que seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer por seu país”,
Patricia foi à cozinha e alimentou seus bichanos. Esta antologia reúne
três contos, três poemas, um ensaio nos quais os felinos ocupam papel central.
A própria autora criou os desenhos que a ilustram; em toda parte, os gatos
entram em cena provocando ou resolvendo os conflitos de cada história,
arrastando objetos suspeitos para dentro da sala, obrigando um casal a
enfrentar a dor de suas perdas, ou mesmo cometendo um crime contra um homem
impertinente e fazendo do leitor seu cúmplice.
- O gato por dentro, de William Burroughs
“Nos últimos
anos, tornei-me um dedicado amante de gatos, e agora reconheço a criatura
claramente como um espírito felino, um Familiar”. O excerto é da tradução de
Edmundo Barreiros para este livro que ao revelar o convívio do mestre Beat com
os gatos revela seu próprio eu (nas palavras da Harper’s Bazaar). Melhor que Bukowski é esta viagem sentimental e
particularíssima pelo ancestral convívio entre gatos e humanos. Escrito na
maturidade do autor, entre 1984 e 1986, o livro é um “catálogo” de inventivas e
espirituosas reminiscências e reflexões. Burroughs relembra os gatos que
passaram pela sua vida, tudo o que fizeram por ele e por sua saúde mental, e
parece concluir que, afora as particularidades físicas, pouca diferença há
entre humanos e felinos.
- Sobre gatos, de Doris Lessing
A edição
brasileira do livro em que a escritora Prêmio Nobel recorda os bichanos de sua convivência
reúne três conjuntos de histórias que foram publicadas inicialmente de forma
independente: Gatos em particular, de
1967; Rufus, o sobrevivente, de 1989;
e A velhice de El magnífico, de 2000.
Não sobram fofuras nestes textos. O primeiro conjunto que se refere ainda ao
tempo de infância na África, Doris Lessing é violenta ao relatar uma mãe que
fazia desaparecer os gatos indesejados através de métodos traumatizantes para
todos os habitantes da vizinhança, seguindo-se imagens de uma Londres repleta
de gatos. Mas é também um livro que oferece um mergulho na intimidade da escritora; um
trabalho de raro afeto e delicada compaixão, sem deixar de lado certa
mordacidade, bem ao estilo de sua escrita. O que une, por exemplo, seres
humanos e gatos? Qual é a experiência desse relacionamento sob a ótica de uma
escritora tão preocupada com a sociedade, suas perspectivas sociais e políticas?
- O
gato preto, de Edgar Allan Poe
A edição
mais graciosa desse conto foi publicada pela extinta Cosac Naify em 2004 em
tradução Bernardo Carvalho. Mas, as edições desse texto são muitas; recentemente,
para citar um só exemplo, uma tradução do conto realizada por José Paulo Paes
integra uma edição caprichada de Histórias
extraordinárias. O texto apareceu pela primeira vez no United States Saturday Post, de 19 de agosto de 1843; depois foi recolhido pelo escritor estadunidense
no volume Tales, publicado dois anos
depois. Nele, um homem narra sua
própria história que se confunde em tormenta a partir do amor, à primeira vista
indescritível pelo seu gato Plutão. O conto foi adaptado para o cinema, até
agora, três vezes: em 1934, em 1941 e em 1962.
Jorge Amado e seu gato Nacib |
- O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado
O
temperamento do Gato Malhado não era nada bom: bastava aparecer no parque para
todos fugirem às pressas. E ele não se importava mesmo com os outros, ia
tocando a vida com a indiferença habitual. Até que, chegada certa primavera, o
Gato nota que a Andorinha Sinhá não tem receio algum dele. Foi o
suficiente para que dali nascesse a amizade dos dois, que se aprofunda com o
tempo. No outono, os bichos já viam o Gato com outros olhos, achando que talvez
ele não fosse tão ruim e perigoso, uma vez que passara toda a primavera e o
verão sem aprontar. Durante esse tempo, até soneto o Gato escreveu. E confessou
à Andorinha: "Se eu não fosse um gato, te pediria para casares comigo".
Mas o amor entre os dois é proibido, não só porque o Gato é visto com
desconfiança, mas também porque a Andorinha está prometida ao Rouxinol. Jorge
Amado colheu a história desse amor impossível de uma trova do poeta Estêvão da
Escuna, que a costumava recitar no Mercado das Sete Portas, em Salvador, e a
colocou no papel com o tom fabular dos contos infanto-juvenis em 1948, quando
vivia em Paris. Não era uma história para ser publicada em livro, mas um
presente para o filho, João Jorge, que completava um ano de idade. Guardado
entre as coisas do menino, o texto só foi reencontrado em 1976. João Jorge
entregou então a narrativa a Carybé, que ilustrou as páginas datilografadas.
Jorge Amado deu-se por vencido: o livro foi publicado no mesmo ano. O texto foi adaptado mais tarde para teatro e balé.
- O gato e o Diabo, de James Joyce
A este texto
podemos acrescentar outro: Os gatos de Copenhague.
Os dois textos foram escritos pelo autor de Ulysses
para o neto Stephen. Em 10 de agosto de 1936, o avô envia uma carta na qual contava
a história do gato de Beaugency, uma cidade francesa às margens do Rio Loire
que precisava desesperadamente de uma ponte. O Diabo faz um trato com o prefeito:
construir a ponte, desde que recebesse em troca a alma do primeiro que a
atravessasse. Não é preciso dizer quem foi. Já o outro conto, teve o mesmo o
destino de aparição: foi noutra carta enviada semanas depois. Inspirado numa
viagem que o escritor irlandês realizou à Dinamarca, uma terra que ele considerou
de policiais preguiçosos e escassa em gatos. O gato e o Diabo só veio a público vinte anos depois de quando foi
escrito e a repercussão foi tanta que saiu logo em mais de dez idiomas; o
segundo título foi publicado pela Ithys Press, uma pequena editora de Dublin,
num tiragem de apenas 200 cópias.
- A gata, um homem e duas mulheres, de
Junichiro Tanizaki
Relações de
dominação e submissão sempre alimentaram a literatura desse escritor japonês. Aqui,
ele eleva à quinta potência o nível de complexidade nos relacionamentos
afetivos entre seus personagens. Narrativa breve publicada originalmente
em 1936, a novela põe a gata Lily no centro da trama protagonizada pelo casal
Shozo e a esposa Fukuko, e ainda pela ex-mulher do primeiro, Shinako. Shozo
adora mimar a gata de todas as formas possíveis, o que deixa Fukuko enciumada —
fato que já havia se dado também com a ex-esposa. Ciente da possibilidade de
que isso volte a se repetir no novo relacionamento do ex-marido, Shinako planta
a discórdia ao sugerir à rival Fukuko que se livre da bichana. É a gata Lily,
portanto, que, à primeira vista, se insinua como ponto de desequilíbrio na
normalidade dos personagens; no entanto, Tanizaki parece recorrer à
gata como metáfora para a falência dos relacionamentos humanos. A
intimidade que Shozo dispensa à Lily, como lhe dar de comer diretamente na
boca, está longe de se repetir com a mulher. A própria troca de Shinako por
Fukuko guarda uma série de interesses que evidenciam Shozo como uma figura
patética e manipulável.
- As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles
Não é que um gato seja o elemento principal neste
romance que tem como figura Rosa Ambrósio, uma atriz de teatro decadente, que passa
em revista, entre generosas doses de uísque, os amores de sua vida. Mas este é
um romance feito de alternâncias de vozes e pontos de vista entre eles um gato,
Rahul, que se assume, por vezes, narrador. Segundo Maria Aparecida Costa no
texto “No fim, o gato e eu: abandono e solidão em As horas nuas”, “trata-se de um gato irônico que traz em sua
composição um H, letra que faz referência à humanização do bichano. A função
desse narrador felino, embora insólita, é crítica, e gira em torno da reflexão
sobre a vida desregrada de sua dona, a atriz, Rosa Ambrósio. Pode-se afirmar
que a importância do gato na narrativa é quase tão significativa quanto a da
narradora e personagem principal, pois Rahul é fundamental para uma compreensão
mais completa da personagem Rosa, já que ele era a criatura mais presente e
testemunha ocular de todas as atitudes da personagem, desnudando-a em suas mais
íntimas particularidades”.
- Reflexões do gato Murr, de E. T. A.
Hoffmann
Este é o
romance precursor do tema proposto nesta lista. Data da Alemanha do início do
século XIX e é obra de grande comicidade e irreverência, em que o bichano
evocado no título, metido a erudito e cuja personalidade passa longe da
modéstia, dedica-se a produzir a própria biografia com o intuito de legar à
posteridade o registro de sua felina e brilhante passagem por esta
existência. Assim, o petulante Murr, em meio a reflexões filosóficas e
divagações mundanas, repassa ao leitor os momentos marcantes de sua vida, desde
a primeira mão humana que o recolhe para pô-lo diante de uma generosa tigela de
leite, até as danações de sua vida adulta, que incluem, por exemplo, a peculiar
amizade com o poodle Ponto; o amor malfadado pela beldade bichana Miesmies; e o
truculento acerto de contas “a dentadas” com o gatuno pintalgado que a roubou
dele. Murr também critica seus pares “filisteus”, aqueles desprovidos de
qualquer erudição – o que não deixa de ser uma ironia de Hoffmann sobre os
hábitos burgueses que ele condenava. A originalidade de Reflexões do gato Murr,
no entanto, não se resume à narrativa feita pelo gato-autor: como nos adverte o
editor da obra, um acidente de edição teria impresso, no mesmo livro, o
manuscrito de Murr e uma outra história, a do compositor Johannes Kreisler,
originalmente escrita no verso dos papéis que o gato usou como suporte de suas
memórias. A abordagem bem-humorada cede, então, à tensão da trama paralela, já
que nela acompanhamos uma série de intrigas típicas vivenciadas entre
personagens da realeza e subalternos, como amores proibidos, assassinatos e
deliciosas conspirações. A mistura improvável de gêneros e a originalidade na
forma fazem de Reflexões do gato Murr um livro de inventividade ímpar e frescor
cômico atemporal, assinado por um dos mais clássicos autores da história
literária alemã.
- Relatos de um gato viajante, de Hiro
Arikawa
O gato Nana
está viajando pelo Japão. Ele não sabe muito bem para onde está indo ou por
que, mas ele está sentado no banco da van prata de Satoru, seu dono. Lado a
lado, eles cruzam o país para visitar velhos amigos. O fazendeiro durão que
acredita que gatos só servem para caçar ratos, o simpático casal dono de uma
pousada que aceita animais, e o marido abandonado pela esposa que ama animais. Mas
qual é o motivo dessa viagem? E por que todos estão tão interessados em Nana e
Satoru? Ninguém sabe muito bem o que está acontecendo e Satoru não diz nada,
mas quando Nana descobrir o motivo da viagem, seu pequeno coração passará por
uma das mais difíceis provas de suas sete vidas. Narrado em vozes alternadas,
esse romance emocionante e divertido nos mostra um jovem de grande coração e um
narrador-gato muito esperto, numa amizade que desafia as fronteiras de um país
e da própria vida.
- Eu sou um gato, de Natsume Soseki
Ao aparecer num terreno baldio, “sombrio, úmido e pegajoso”,
o gato, narrador deste romance, depois de passar por algumas poucas
adversidades, acaba parando numa casa onde é acolhido por Chinno Kushami, o
professor mal-humorado e estagnado em sua completa falta de perspectiva.
Ridiculariza de maneira demolidora a vida da intelectualidade
do Japão da Era Meiji, mostrando a fragilidade do professor e
daqueles que o cercam. Sugerindo-se sempre como um ser de raça superior, o gato,
com sua pesada munição e ares de dândi, não poupa nada nem ninguém. Sua
linguagem é carregada de sarcasmo quando o assunto é o ser humano. Mesmo quando
há uma ternura esta é impregnada de deboche. Soseki investe, por meio
do olhar de fora, recurso que usa habilmente, em profundas análises
psicológicas do ser humano – influenciado por William James (1842-1910) e suas
pesquisas sobre o subconsciente. Todos os personagens passam pelo crivo do
felino que leva o leitor a uma jocosa aventura, chamando-o para ser seu
cúmplice na tarefa de desvendar o trágico cinismo interior de cada personagem e
seu mundo repleto de mesquinhez, mentiras, vaidades e desolação. Muitas vezes
trazendo para o texto ideias de escritores e filósofos do passado ou
contemporâneos, Soseki propõe uma reformulação do modo japonês de escrever e
pensar, a partir do contato com o pensamento e os costumes do Ocidente. Essa
reformulação vem ao encontro das mudanças efetuadas na Era Meiji (1868-1912),
quando o Japão passou por reestruturações políticas, econômicas e sociais,
tornando-se potência mundial. Publicado inicialmente em forma de capítulos
no Hototogisu, importante jornal literário da época, e lançado
em 1905, este livro é o de estreia literária de Natsume Soseki e
uma das primeiras faturas da renovação modernista da literatura japonesa.
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