Destaques em projetos editoriais de 2018
A caixa de acrílico com a Ilíada e a Odisseia
Quando a Cosac
Naify deixou de atuar no mercado editorial havia publicado
a tradução de Christian Werner para a Odisseia
e a prometida Ilíada ficado presa
no mar da espera. Findar este trabalho foi uma dentre algumas responsabilidades assumidas pela jovem editora
Ubu e, diga-se, honrou como ninguém. As duas epopeias atribuídas a
Homero foram transformadas em objeto de mais alto requinte com a publicação de
uma edição especial limitada a 150 exemplares. Recuperam artefatos originais como
os ricos complementos de leitura já conhecidos do leitor, mas ampliam a
experiência estética ao realizar com esses dois livros este trabalho de edição:
encadernados em capa de tecido com intervenções manuais do artista Odires
Mlászho, quem numera e assina os exemplares. Os dois livros são acondicionados
numa caixa acrílica, como objeto transluzente que atravessa os tempos.
O Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
A obra do
mais importante escritor brasileiro nunca saiu de moda. Tem sido editada e
reeditada continuamente – em trabalhos simples e desajeitados ou à maneira comercial.
Até que um grupo editorial tomou a iniciativa de realizar edições que
respeitam, podemos assim dizer, a altura da obra de Machado de Assis. Depois do sucesso
de Dom Casmurro,
apostaram numa edição de formato semelhante para Memórias póstumas de Brás Cubas. Os 100 primeiros exemplares ganharam capa revestida
em tecido e um conjunto de ilustrações à parte assinadas por Heloisa Etelvina,
quem realiza intervenções em toda obra cujo trabalho gráfico é de Tereza
Bettinardi. O livro traz texto inédito de Milton Hatoum que assinala a importância
do romance para a literatura brasileira desde sempre. Memórias póstumas é tida como uma obra da maturidade de Machado de
Assis; quando publicou – de início em forma de folhetim na imprensa – contava com
pouco mais de quarenta anos de idade. Tornou-se a obra-prima do realismo no
Brasil.
A ideia do livro-objeto
Raras ou ainda poucas, mas sabe-se, desde sempre, o quanto Gustavo Piqueira tem inovado por aqui no trabalho com o livro. 2018 foi um ano de grandes projetos para o criador. Publicou três títulos, revolucionários, e destes destacamos um deles, sem deixar de citar os demais: Ar condicionado saiu pela Veneta e foi apresentado como uma novel gráfica interessada em reinventar a combinação imagem e escrita; e Desvios saiu pela Martins Fontes e é uma compilação de imagens de fachadas de casas populares do sertão nordestino com o intuito de "questionar os limites entre o bom e o mau gosto", compreendendo a fachada como um registro de manifestação da cultura popular. O mais ousado é Nove meses, publicado pela Lote 42. Numa caixa, à maneira de outros projetos de Piqueira, a capa traz um casulo de acrílico com um inseto morto: metáfora sobre a fajuta eternidade das existências? No interior da caixa o leitor encontra duas narrativas. Uma relata a disputa por uma fonte tipográfica no século XIX e outra sobre a espera de um pai pelo filho no tempo presente. Ambas histórias, testemunham ou são indícios muito pertinentes acerca do que se anuncia desde à entrada do livro. Não é apenas ousadia, este é um dos projetos mais bonitos de 2018.
O lugar de uma amizade como pensada pelos amigos
O ensaio de João Cabral de Melo Neto sobre a obra do amigo catalão Joan Miró não era um produto desconhecido de nós. Mas, como foi publicado originalmente, sim. A Verso Brasil, depois de editar o também belíssimo (e quase inédito) Aniki Bóbó, também do poeta brasileiro, numa edição fac-similar há dois anos, presenteou agora os leitores brasileiros com a edição de Miró. Publicada originalmente em Barcelona em 1950, o livro como tal é representado aqui: o leitor tem acesso ao ensaio no qual João Cabral discorre sobre a obra do amigo, mas também sobre a expressão surrealista; e às gravuras realizadas por Joan Miró exclusivamente para a obra, num momento quando o artista ainda amargava a perseguição da ditadura fascista de Franco. E, como estamos diante de uma obra com forte marca histórica, a edição apresenta texto com making of e registros exclusivos sobre a primeira edição. Leia mais sobre aqui.
O fac-similar
de um clássico modernista
É
interessante que não o Brasil, mas Portugal tenha se interessado em primeiro
publicar alguns dos nossos clássicos no formato fac-similar. Um projeto do
jornal Público editou títulos como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães
Rosa, A rosa do povo, de Carlos
Drummond de Andrade e mesmo Pau Brasil,
de Oswald de Andrade. Por isso, ou não, a Companhia das Letras seguiu este
filão ausente no mercado editorial brasileiro com a publicação do mesmo autor
de Primeiro caderno do aluno de poesia,
outro título importante para a nossa cena modernista. A reprodução apresentada num envelope reproduz em mesmo formato do original de 1927 o exemplar que
pertenceu a Tarsila do Amaral, isto é, o número 1 desta edição. À parte, trouxe
a leitura de Augusto de Campos, quem dedica uma jovial ressignificação deste livro. Esta foi a segunda coletânea
de Oswald de Andrade; é um livro que reitera os princípios do Manifesto da
Poesia Pau Brasil, pela ousadia e radicalidade do gesto poético; é uma obra emulada,
inclusive, graficamente por outras figuras do modernismo Brasil afora.
Uma visita
ao universo inventivo e plástico de Wislawa Szymborska
Riminhas para crianças grandes é uma antologia
preparada pela Editora Âyiné. Com traduções de Eneida Favre e Piotr Kilanowski,
o livro nos coloca em contato com outra faceta menos conhecida da poeta
polonesa ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura. Além da poesia nonsense de
Wislawa (moscovinas, altruitinhas, melhoríadas, dasvodcas e escutações), o livro
reproduz numa série de cartões com colagens; muitas delas, sabe-se, era uma
maneira encontrada pela poeta de enorme sensibilidade artística para presentear
amigos. Esta é uma obra que nos coloca, então, em dupla intimidade com a poeta:
as dos momentos de inventiva e a dos momentos de reservada amabilidade.
As lentes de
James Joyce sobre a Dublin de seu tempo
A editora
Autêntica tem renovado o mercado nacional com a reapresentação de algumas obras
geniais da literatura ocidental. Já conhecemos, por exemplo, o delicado e
singelo trabalho para com algumas obras de Virginia Woolf, como a edição interativa para Mrs Dalloway, de 2012,
vencedora, inclusive do Prêmio Jabuti de Tradução no ano seguinte. Do mesmo
tradutor, aliás, é a edição de Um retrato
do artista quando jovem, de James Joyce, publicada no âmbito da mesma coleção
da obra citada anteriormente – Mimo. O trabalho de Tomaz Tadeu não se resumiu
ao de recriar em português o texto singular do escritor irlandês, mas anotá-lo.
Mas, a grande novidade mesmo do trabalho é a apresentação de um conjunto de
anotações realizadas por Joyce para a composição de partes importantes de sua
obra num caderno que chamou de “Epifanias”; quarenta dessas notas formam o
volume à parte. Completa os dois volumes reunidos num estojo, um conjunto de
fotografias de Dublin, realizadas em 1946 pela fotógrafa estadunidense Lee
Miller para a revista Vogue.
Uma edição
para inglês ver
Reeditada inclusive
numa edição exclusiva para a Livraria Cultura, a tradução mais conhecida no
Brasil para a obra de T. S. Eliot parece ser a de Ivan Junqueira. Terminamos
2017 com a espera de uma prometida nova tradução, agora realizada por Caetano
Galindo que, em finais deste ano veio a lume pela Companhia das Letras: o que
se apresentou pareceu mais do que esperávamos. É que Poemas finda por ser não apenas uma escolha e recolha de textos de
T. S. Eliot, mas toda a obra publicada em vida em livro ou em edições independentes do poeta:
de 1917, com Prufock e outras observações
a 1939 com O livro dos gatos sensatos do
Velho Gambá, passando por trabalhos célebres como A terra devastada, Os homens ocos e Quatro quartetos. Notas e um extenso posfácio completam uma
edição com trabalho gráfico primoroso.
Todo o teatro
de um dos mestres da dramaturgia brasileira
A Nova Fronteira
deve ser reconhecida muito em breve – se não já – como a editora das caixas.
Edições e edições, há pelo menos desde 2015 povoam o mercado editorial brasileiro
em caixas e mais caixas, ou como preferem os ferinos da língua portuguesas, box
e boxes. É enfadonha, diga-se, a moda. Encarece o valor do livro,
descaracteriza sua unidade original e são um fardo para guardar ou levar de
lugar para outro durante a leitura. Nada a justifica, é verdade; o que se
permite ainda são algumas raras exceções, como os casos de conjuntos de textos-irmãos,
que formam o que se denomina macrotexto, como é o caso deste conjunto de peças
de Ariano Suassuna. O trabalho amplia o projeto de edição da obra do escritor
brasileiro desde quando a editora assumiu essa frente com a publicação inclusive
de inéditos como o romance deixado por Ariano – Dom Pantero no palco dos pecadores. A caixa que reúne seu teatro completo
traz também peças inéditas e algumas nunca encenadas. São quatro volumes que
apresentam as comédias, as tragédias, as traduções e o que Ariano chamou de
entremezes (peças de menor extensão).
O zelo
devido para a obra de uma de nossas melhores poetas
Dora
Ferreira da Silva não é uma figura esquecida na cena literária brasileira. No início
dos anos 2000, o Instituto Moreira Salles depois do inventário sobre o acervo da
poeta editou três livros de uma beleza e delicadeza únicas – Transpoemas, o mais recente, de 2008, Appassionata, do ano anterior e O leque, que abriu a série neste mesmo
ano; no mesmo intervalo publicou-se uma edição em capa dura de Hídrias pela Odysseus. Carece, evidentemente,
de uma edição que reúna toda sua poesia. Uma das que se comprometeu a este
feito, editada em 1999 pela Topbooks, está há muito esgotada. Este ano saiu
pela coleção Cabeça de Poeta, conduzida pela Martelo Casa Editorial, uma nova edição
de Uma via de ver as coisas, que foi
o segundo título publicado por Dora. O novo livro traz os mesmos textos do
original, publicado em 1973 pela Duas Cidades, que incluía a introdução escrita
por Cassiano Ricardo e o texto de Celso Luiz Paulini com interpretação de quatro
poemas da poeta. Além do rico aparato crítico, uma edição belissimamente
editada, destacam-se os textos de Miguel Jubé, Goiandira de F. Ortiz e Maria
Severina Guimarães.
O caderno do
ano do Prêmio Nobel de Literatura e o que foi este ano
Em 2018
passam-se os 20 anos que a Academia Sueca dedicou a mais alta honraria da
literatura a um escritor de língua portuguesa. No início do ano os leitores acompanharam
entre a esperança e a desconfiança a notícia sobre a descoberta de um diário
inédito de José Saramago que continuava os seus famosos Cadernos de Lanzarote, iniciados quando se mudou para esta ilha das
Canárias em 1993. Em outubro, o sexto volume do diário veio a lume numa
apresentação mundial realizada em Coimbra, na ocasião de um congresso internacional
integralmente dedicado à obra do escritor. E, seguindo o mesmo gesto
de há algum tempo a Companhia das Letras, que tem publicado a maior parte da
obra de Saramago no Brasil, apresentou este material aos leitores saramaguianos
(e são muitos) deste lado do Atlântico. A editora não seguiu o projeto gráfico
recorrente nos livros restantes, também não adotou o procedimento das capas com
as caligrafias de personalidades da cultura de língua portuguesa e fez esta uma
meia-obra saramaguiana ao trazer o diário acompanhado do rico texto do
jornalista Ricardo Viel que recompõe passo a passo os movimentos mais íntimos
de José Saramago desde a recepção da notícia do anúncio de seu nome como o
galardoado com o Prêmio Nobel à recepção. O livro funciona como uma extensa nota
que recupera alguns vazios deixados pela já impossibilidade do autor de Memorial do convento em acabar com suas
observações sobre seus dias. A edição reúne as reações de alegria de leitores
de vários círculos: dos amigos mais famosos à gente apaixonada pelos livros de
Saramago.
Outro
panorama dos russos
Agora do
humor – sim, eles têm, à sua maneira, mas têm. Nos últimos anos, graças a aposta de uma casa editorial que
renovou o gosto pela literatura russa, tivemos no Brasil a formação de grupos
fortemente interessados em ler os escritores desta parte da Europa. Além das
requintadas traduções, a Editora 34, a responsável atual por este movimento,
tem trabalhado em expandir para novos horizontes as impressões que temos dos
russos, sobretudo, de que há literatura além dos clássicos, incluindo excelentes
autores contemporâneos, ou antigos desconhecidos, ou ainda da parte menos
lembrada ainda do continente europeu, o Leste. Duas antologias cumprem parte nessa
tarefa nada simples: Antologia do
pensamento crítico russo (1802-1901) e Nova
antologia do conto russo (1792-1998), ambas organizadas por Bruno Barretto
Gomide. Este ano, Arlete Cavaliere organizou uma edição tão rica quanto as
anteriores intitulada Antologia do humor
russo (1832-2014). Reúne quase quatro dezenas de autores e quase seis
dezenas de textos em sua maioria inéditos no Brasil; o que une autores e textos
nesta edição é um aspecto pouco conhecido entre nós: a tendência ao irônico,
satírico e paródico. Estão aqui nomes conhecidos dos leitores brasileiros como
Gógol, Dostoiévski, Tolstói ou Tchekhov, mas figuras contemporâneas e não tão comuns
como Viktor Peliévin, Dmitri Býkov e Liudmila Ulítskaia. Indispensável.
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