Uma criatura dócil, de Fiódor Dostoiévski


Por Pedro Belo Clara





É um daqueles nomes que dispensa quaisquer apresentações, mesmo para os menos interessados ou sabedores da literatura russa do século XIX. Carecerá talvez de adjectivos, e não só para quem nutre afeição por tais caracterizadores, mas o seu emprego apenas será honestamente exequível após um mergulho sério na obra do autor que hoje aqui se lembra e sugere. Como tal, esquivamo-nos a tal exercício, a não ser na constatação do óbvio, por ser universal, deixando assim ao critério de cada um dos nossos amigos leitores a devida apreciação do escritor e sua obra.

Nasceu em 1812, em Moscovo, filho de um médico militar rígido e autoritário, com tendências para o alcoolismo e depressão, e de uma mãe que até à sua morte precoce o educará em casa. Mais tarde, frequenta a escola militar onde começa a desenvolver um sério interesse pela literatura. Após concluir os estudos, inicia as suas primeiras traduções e esboços literários, abandonando definitivamente o exército. O esforço culminará no seu primeiro romance, Gente Pobre, de 1845, aceite com relativo sucesso junto da crítica da época.

Seria apenas o começo do trajecto de um dos maiores romancistas de sempre, mesmo que essa assumpção esteja sujeita a uma natural subjectividade (basta lembrar uma certa crónica de Hemingway, escrita nos seus tempos de juventude em Paris, nos anos vinte, em que este expressa o seu espanto diante do parco talento, em sua opinião, do autor russo), que nos legou extraordinárias obras tanto na área do romance como na do conto, e do qual o trabalho que hoje se propõe à discussão representará um exemplo digno.

Este enormíssimo vulto da literatura mundial, influenciador de praticamente todos os grandes nomes que surgiram na primeira metade do século XX, e não só, elaborou, é certo, obras bem mais extensas, complexas e até louváveis do que esta agora sugerida – e de que Crime e Castigo (1866) ou Os Irmãos Karamázov (1880) serão bons exemplos –; contudo, pela sua acessibilidade, é uma bela peça que competentemente introduz os princípios básicos do estilo e dos temas de Dostoiévski. Por outras palavras, trata-se, assim nos parece, de uma viável e acessível via de conhecer melhor este autor sem abordar os maiores e, por conseguinte, mais intrincados marcos por ele erguidos. Assuma-se, portanto, e à semelhança doutros já aqui editados, este pequeno artigo de apresentação como um simples meio de sugerir a leitura da obra do autor russo a todo aquele que, percorrendo a estante de uma qualquer biblioteca ou livraria, ainda vê a sua mão hesitar em medir o peso a um livro de Dostoiévski.  

Centrando a nossa atenção na novela que se editou em 1876, diga-se que esta inicia-se de um modo algo curioso: com um expresso pedido de desculpas por parte do seu autor. Não parecia convencer-se, assim vemos, com o simples facto de oferecer aos seus leitores, naquela circunstância, uma simples novela meio realista meio fantástica (segundo a própria apreciação), pelo que pede encarecidamente a condescendência destes. No entanto, é justo que se sublinhe a notabilidade da abordagem, bem como a proposta de narrativa que apresenta, ainda que, seguindo a mesma linha de transparência e honestidade, não seja propriamente inovadora. Aliás, o próprio Dostoiévski admite na referida nota que Victor Hugo, em O Último Dia de um Condenado à Morte, utilizou um processo idêntico a este – a que o escritor russo chamou de “escrita de estenógrafo”, isto é, um registo de terceiros de um determinado discurso, sem censura, atraso ou invenção, o que lhe fornece o carácter realista que o autor lhe classifica. Acrescente-se que um outro trabalho seu, Memórias do Subsolo, de 1864, já seguira uma linha idêntica.

Focada nas peripécias de um casal russo, igual a muitos outros que então viviam, debruça-se essencialmente no discorrer algo desordenado e por vezes até incoerente do marido, dono de uma loja de penhores, quando confrontado com a tragédia que, por via da sua jovem mulher, assola no imediato a sua turbulenta existência. Tal facto somente adensa a culpa do desamparado cônjuge, pelo que toda a novela se corta pelo sufoco da narração, pelo turbilhão nervoso de palavra jorrada após palavra, talvez num esforço hercúleo de encontrar alguma resolução para o tormento que lhe oprime o peito – e já nem se ousa falar em paz, esse supremo bem tão inatingível aos que não conseguem abrir mão da falta que lhes pesa.

Como pano de fundo, um segundo plano que facilmente se assume em primeiro, Dostoiévski deixa transparecer, pelo monólogo que nos propõe e o seu consequente relatar dos facto que compõem a história, uma subentendida crítica aos costumes da época e ainda a denúncia da mentalidade então vigente, expondo até o mais absurdo dos comportamentos absurdos e ideais de conduta. E tudo se depreende através da narração da desordenada miríade de pensamentos que assolam a atribulada mente do marido assombrado. Como alguns saberão, é a abordagem do ponto de vista psicológico das personagens que cria que melhor notabiliza este autor. Assim se compreenderá melhor que todo o monólogo apresentado também funciona como um fiel registo de um pesado desabafo, de uma expiação sentida e tida por expressamente necessária ao coração que a carrega – embora em certos momentos se veja a recusa em aceitar o papel indirecto que sabe ter tomado no escalar de sentimentos que culminou na fatídica ocorrência.



De certa forma, deduzem-se as farsas inúteis que nos levam a perder aquilo que verdadeiramente mais amávamos. Devido a um dissimulado comportamento e a uma conscienciosa indiferença, acabamos por nos ver privados de tal dádiva. Poder-se-á aqui depreender um estigma? Um preconceito? Um medo de amar e de revelar sentimentos íntimos apenas porque uma sociedade com tal gesto não sabe lidar e, por isso, não o tolera? O leitor que julgue por si mesmo. No entanto, são tais atitudes que afloram na tragédia que recai sobre a doce e submissa mulher, insuportavelmente afectada pela frigidez do seu esposo – apesar de este a amar do mais fundo segredo do seu gélido silêncio, pois quando confrontado com a nova e crua realidade não evita tombar na perdição aguda da sua dor e da sua súbita solidão, o que somente sublinha o completo ridículo das posturas assumidas num passado então recente.

Numa relativamente breve novela, que segue de modo seguro os bem sucedidos passos de contos como Coração Fraco (1848), O Pequeno Herói (1849) ou O Sonho de um Homem Ridículo (1877), Dostoievski revela com a segurança dos grandes mestres as suas principais virtudes literárias, tudo através do possível registo de um confuso discurso de um marido assombrado pelos seus irreversíveis actos, prostrado à beira-mágoa da sua pessoal condenação. Crê-se até, findada a leitura, que seria um exercício interessantíssimo conhecer o outro lado da moeda, isto é, o possível discurso íntimo da jovem esposa: os pensamentos que a torturavam durante a vigência da incómoda situação, as suas reacções psicológicas à quebra dos sonhos que teve por preciosos, o comportamento mental mediante o aperto dos seus aflitos sentires e por aí em diante. Mas sobre este tema a pena do escritor não voltou a dançar, mesmo que sempre embebida nesse mágico elixir que se guarda como tesouro raro num simples tinteiro, sobre o papiro da criação. Fica a ideia, apenas, talvez para os mais capazes – quem o saberá?

Mesmo considerando que nunca dispôs verdadeiramente da oportunidade de atingir o seu verdadeiro potencial, uma vez que as dificuldades que a sua árdua vida lhe impôs o impulsionaram a escrever com uma prejudicial celeridade, além das precárias condições de saúde, Dostoiévski legou notáveis abordagens à mente humana e aos seus modos de funcionamento vergados ao peso do condicionamento social, tanto que actualmente é considerado de boamente um filósofo genuíno, facto para o qual Uma criatura dócil (ou Krótkaia, para os curiosos do russo) se apresenta, com antes se referiu e agora se sublinha, uma prova irrefutável. 

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