Uma mulher fantástica, de Sebástian Lelio
Por Pedro Fernandes
Poderíamos,
no sempre interesse vão das classificações, dizer que Uma mulher fantástica é uma fábula sobre resistir. Não é o caso de
acreditar que estaremos entregues a uma narrativa marcada pelo contraste entre
o seu exterior, isto é, dos acontecimentos da realidade empírica, e o seu interior,
os acontecimentos da realidade figurada. O filme de Sebástian Lelio é realista
demais para acreditarmos nessa condição que é, aliás, de um todo questionável quando
se fala sobre fábula. Não se pode, de maneira nenhuma, reduzir a compreensão da
fábula à de narrativa integrada totalmente à atmosfera do fantasioso.
O caráter fabular
desta narrativa cinematográfica resulta de sua condição e interesse: contar uma
história que, de alguma maneira, responde por uma conclusão universal porque o
drama aí conformado se configura numa recorrência das mais comuns no cotidiano
da história da humanidade. Também porque é o caso de, ao final desta narrativa,
encontrarmos uma conclusão de certo tom pedagógico
que nos permite uma variação da maneira de ver e compreender o outro, sobretudo
o outro que nos é dado como o diferente quando
o julgamos pela grade dos padrões pré-estabelecidos socioculturalmente; a outra
maneira de ver o outro, despida dos pré-conceitos, funda-se um exercício
fundamental para sabermos que tais determinações são inusuais, excludentes,
mesquinhas, porque não têm para si o material da diversidade como é, de verdade,
a humanidade.
O tema de Uma mulher fantástica não é de um todo
inédito. Basta pensarmos que se filia ao rol do exposto em produções como Transamérica ou Meninos não choram, para citar dois filmes que respondem por um
semelhante valor ao de Sebástian Lelio. É a maneira de tratamento, entretanto,
que difere, embora os dois títulos citados anteriormente não estejam reduzidos à
contrariedade de Uma mulher...;
neste, a personagem principal é uma mulher transexual colocada à prova sob o
olhar pouco compassivo, para não dizer, extremamente preconceituoso de toda uma
gente que, de uma hora para outra, passa a governar a bolha de harmonia construída
no entorno dela.
Assistimos
de maneira repentina e brutal a transformação de um lugar idealizado, aquele no
qual o sujeito não tem sua condição desfigurada porque integrado naturalmente a
uma realidade do diverso e que, de certa maneira figura como um oásis ou um
mundo à parte do mundo cruel conforme compreenderemos. É este campo da
segregação que forma o imperativo na narrativa de Uma mulher fantástica. Esse
campo, se não diz de maneira precisa que a sociedade se dirige por ele porque
as ilhas de fulguração do diverso não são espectros da fantasia, responde
integralmente pelas situações que se repetem aos milhares ao redor do mundo. Mesmo
que Marina seja a que não se rebaixa a ele – nem deveria – é do embate entre
tais lugares de existir que se produz toda sorte de horror sobre a qual os jornais
expõem apenas a ponta do iceberg.
Aqui encontramos
a explicação para o adjetivo que caracteriza essa mulher. Continuamente segregada,
a que merece ser esquecida, silenciada, ad
eternum figura periférica, Marina é a que luta com todas as forças porque não
tem nada perder, contra esse contínuo interesse de negação de sua existência,
seja pela reiterada afirmação de sua verdadeira identidade, seja pelo contínuo
exercício por ser vista e ter seus interesses respeitados como os de qualquer
ser humano. Porque já perdeu o tudo, a figura determinante para sua plena existência,
e porque lhe negam a qualquer custo expiar a dor da perda, seu imperativo só se
determina pelo sentido do termo fantástica.
Mas não é
apenas na acepção do excepcional (isto é, do que busca todas as forças de enfrentamento
contra uma injustiça) que se pode compreender este fantástica. Quando Orlando morre, o seu amor, Marina reveste-se da
aura de uma Antígona: a que luta por prantear seu ente querido mas se vê
impedida por todas as frentes. Segregada, a única via produzida pela narrativa,
capaz de subverter tal ordem (embora ela pareça ser realizada no plano de
realidade das ações) é pela via da fantasia. É quando a narrativa, sem se
distanciar da atmosfera mais recorrente na literatura e na arte latino-americana, flerta com
um realismo fantástico a fim de não condenar
integralmente essa Antígona chilena e contemporânea ao total apagamento.
Uma mulher fantástica é um filme
brilhante: se Marina é a que não se resigna, a própria estruturação cinematográfica
corrobora com a personagem, dentre as diversas recusas fotográficas, como as de
respeitar sua total nudez, replicando a compreensão de que o corpo é mero acessório
no âmbito das determinações naturais. A perseguição em torno dessa ideia, a relevância
do drama para denunciar a cumplicidade do preconceito, do desconhecimento do
outro, da violência contra sua liberdade e suas individualidades, físicas ou simbólicas,
dentre outra diversidade de elementos que se apresentam em plena sintonia, são apenas
algumas das muitas qualidades que fazem dessa obra peça necessária aos olhos
de todos; por vezes é a arte a melhor solução para nos dizer sobre a necessidade
de governar nossos preconceitos e dilui-los até apagá-los no oceano da
diversidade, do zelo e do respeito para com as diferenças. Fora essa condição,
parece que não faz muito sentido intitularmo-nos humanos.
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