O fim de Eddy, de Édouard Louis
Por Pedro Fernandes
Édouard Louis. Foto: Frédéric Stucin |
A literatura
está repleta de histórias sobre a violência e a pobreza nos pequenos e grandes centros.
Em princípio, as narrativas tristes cumprem uma tarefa fundamental à formação
do campo discursivo do literário: revelar à humanidade uma projeção de sua própria
face, colocando no centro de interesse personagens e realidades silenciadas
pelos discursos dominantes. Faz sentido se perguntar o que seria da história
dos povos se um Victor Hugo não tivesse revelado a extrema miséria a que
estavam condenados os franceses de seu tempo enquanto uma pequena parcela se
refestelava às custas dos esforços dos miseráveis, ou como conheceríamos a
pobreza e a exploração em Inglaterra, sem Charles Dickens, das mazelas impostas
por modelos desastrosos como o comunismo na União Soviética nos vários livros
que denunciaram os gulags ou o fracasso do capitalismo com o retrato duro
desenhado pelo escritor estadunidense John Steinbeck. As verdades oficiais,
geralmente autoritárias e, por isso mesmo, fechadas apenas numa única linha de
visão teriam prevalecido e possivelmente teríamos outra configuração do mundo e
certamente mais cruel que esta.
Não é o caso
de as modificações terem sido propiciadas pela literatura – até mesmo porque
enquanto tais obras sobre a miséria ganhavam publicação os representados dificilmente
tinham acesso a elas e que, utopicamente poderia favorecer o pensamento dissidente
do discurso dominante; curiosamente, o próprio imperativo da pobreza priva aos
representados de se verem. Mas, se no interior dos sistemas se forjam alguma estratégia
de mudança, ainda que apenas no intuito de favorecer a própria face do poder
dominante, em parte, isso se dá quando o problema
é deslocado da margem para o centro. Que saberiam os do Sul, Sudeste e Centro-Oeste
do Brasil sobre a maneira como o poder pisoteava pobres e o condenavam à
indignidade perpétua se não fosse o grupo de escritores da chamada literatura
de 1930 deitarem a pena para revelar os
vícios e os males impostos? Muitos advogam na tarefa de destratar a literatura
e grande parte desse grupo pertence, curiosamente, aos setores que gostariam de
impor ad eternum os seus gestos de
dominação opressora.
Mas, atravessamos
outro momento; ficou chato datar situações narrativas e sempre que se apresenta
uma obra que não se queira universal logo ressaltam a dicção repetitiva
alegando sobre a impossibilidade de ser literário o texto que ousa constituir uma
intervenção às ordens de dominação. Um leitor de José Saramago, por exemplo, já
terá escutado reiteradas vezes que sua literatura é pobre porque buscou se
filiar a uma estilística do proletariado, fazendo-se além de repetitiva, apologética
da ideologia comunista. E a pergunta roda ante falsas acusações do tipo que
ignoram o que há de mais significativo – a criação: se a literatura não se apresenta
enquanto contradiscurso, que outra expressão o fará? Ainda na lista das acusações,
quando não se referem ao fator ideológico-político contradominante, preferem
questionar os valores do literário com a acusação de que este exercício de
denúncia da espoliação está superado no campo da criação ficcional.
Bom, talvez
por isso, alguns escritores contemporâneos tenham decidido deixar de
construir universos que funcionem como distanciados de si para falar do que
se passa ao seu entorno para se posicionarem enquanto persona de suas narrativas, como se dissessem aos acusadores, de
que outra coisa eu poderia tratar na minha literatura se minha experiência,
aquilo que em grande parte determina a criação, é esta e não outra. Não se
trata de rondar os mesmos ultrapassados temas ou de colocar em evidência o discurso
sobre a miséria que, aparente é que melhor vende porque parece existir na
humanidade um espírito que se sacia e se compraz com a desgraça alheia. Não é
nem uma coisa nem outra.
Os temas não
são ultrapassados porque afinal a desigualdade, as imposições, as injustiças,
os ódios, as misérias continuam as mesmas de sempre. Quer dizer, não as mesmas
de sempre, porque se criaram mecanismos de segregação e novas ordens de
dominação pela exclusão, o que faz da humanidade extremamente avançada nuns casos
e duplamente obsoleta em outros. Ainda prevalece – estrategicamente melhores –
as condições de injustiça porque agora são condições previstas e forjadas no
interior da própria legalidade moral. Para que os discursos oprimidos continuem
silenciados tornou-se voga os tribunais de exceção e as leis que advogam as verdades
são instituições alimentadas pelos próprios interesses daqueles que advogam. Contra
isso, a literatura ainda é uma alternativa. E se já não é possível falar-se ficcionalizando
o outro ou se ficcionalizando no outro, este outro, produto da pequena evolução
humana, já é agora possível de falar porque criou suas próprias condições e
porque encontrou saídas pelas margens. Nessas saídas resultam alguma dose de
esperança.
O fim de Eddy se filia, portanto, a essa
rede de criações literárias que colocam em cena a própria existência de quem escreve.
Corriqueiramente têm-na chamado pela mesma alcunha fornecida quando se tornou comum
a escrita sobre o eu a partir do próprio eu – isto é, autobiografia. Mas, sem
se aventurar pelas searas da discussão que não cabem num texto como este nem nesta
ocasião, é melhor pensar uma alternativa que se coloque fora ou pelo menos categoria-talvez do autobiográfico, porque, embora seja o domínio do acontecido o que
determina essas narrativas não são propriamente narrativas que tenham interesse
de servir de testamento do seu autor.
O autor ficciona
suas vivências e elas tornam-se objetos universais, aquilo que na ficção comum
já acontecia – a realidade apresentada em Levantado
do chão, por exemplo, para retomar o caso
saramaguiano, é a do levante dos trabalhadores rurais sem terra no interior de
Portugal contra os regimes de latifundiarismo, mas este romance é universal à
medida que se torna em metáfora ou metonímia sobre outras diversidades de
levantes sejam de trabalhadores rurais sejam de oprimidos – e tais histórias,
sabe-se bem, estão em toda parte. É,
portanto, necessário pensar até que ponto é possível continuar falando de
autobiografia para uma forma de escrita que apresenta peculiaridades tão
distintas do autobiográfico ainda que sua roupagem nos permita continuar acreditando
na ideia de revelação do eu para o todo.
Pois bem, a
partir das experiências vividas, seja porque passou por elas, seja porque ouviu
de seus pais e daqueles com quem conviveu, em O fim de Eddy, a narrativa se propõe reconstruir os anos de infância
a da adolescência de Eddy Bellegueule. Não se trata de uma narrativa cuja
operação se dê por uma transposição do leitor a olhar com os olhos da criança
ou do adolescente este passado que é recriado; é a visão de alguém que olha
para o passado a partir de seu lugar atual. Mas, ao contrário do que se possa
pensar não se deposita sobre essa história nenhuma nostalgia tampouco algum
julgamento. Aliás, não sobra espaço para isso neste romance, porque a única coisa
que parece restar a este narrador é uma maneira de compreender as razões que
lhe fomentaram uma consciência desencantada sobre o passado. Eddy quer compreender-se
como o modo de vida, as limitações de ordem diversa, não o levaram ao total
apagamento como a outros. Quais mecanismos se constituem os destinos que a uns
permitem encontrar a sobrevivência mesmo quando esta parece impossível de
existir.
Há uma imagem
que corre todo o fio narrativo de O fim
de Eddy que funciona perfeitamente como justificativa a essa leitura: ela
abre o romance e é a descrição da uma das ocasiões em que Eddy é espancado
violentamente por dois colegas do colégio debaixo de toda sorte de xingamentos
porque todos o tem como a bicha, o veado, a moça. Nessa ocasião, o narrador sempre lembra como buscava
estabelecer estratégias de dissimular a dor e de encontrar o ar que faltava às
narinas coalhadas de sangue. Em linhas gerais, pode-se dizer que é isto o romance:
buscar ar quando o passado chega e o sufoca. Os hematomas psicológicos doem
mais que qualquer dor física – alguns nos matam silenciosamente.
É a formação
de uma consciência sobre si, sua sexualidade, seu corpo, o que leitor acompanha
ao longo da narrativa. Para dizer que não há momentos felizes neste itinerário
de pura opressão, restam os lampejos em que Eddy pode ser ele próprio, como
quando se vê maquiador da amiga ou quando pode às escondidas travestir-se nas
roupas da irmã ou ainda nos elogios enviesados que lhe chegam dos pais extremamente
violentos de que tem na família alguém inclinado para o estudo e capaz de, no
futuro, dar algum orgulho à família. Mesmo isso é pura descrição dissidente de
qualquer vitimismo ou de qualquer emoção desbragada. Ao longo do romance somos
levados a nos acostumar com o rifão que estas narrativas tentam desconstruir
totalmente: Hoje eu vou ser um durão.
Novamente vale reportar a cena mencionada no parágrafo anterior, quando sob a
violência o menino Eddy prefere reprimir o choro e se rir dos agressores. Nada é
mais duro que isso.
Édouard
Louis é objetivo e não tem pudores para a construção de uma exegese da violência;
esta se revela nas mais diversas frentes: no machismo que domina a todos do
pequeno vilarejo suburbano de Hallencourt e que impõe suas regras contra homens
e mulheres; nos preconceitos contra todas as minorias – deficientes, gays, árabes,
pobres (as estratégias de segregação destes com os outros de condição um pouco
menor); a do trabalho forçado que vitimiza a todos, pela saúda física em contínua
debilitação ou pela saúde psíquica superada pela entrega desmedida ao álcool,
única fuga possível de superar esse esmagamento social padecido por todos; como
tudo isso se traduz em comportamentos que vão da dormência de humanidade à
total ausência dela. Enfim, o passeio
não poupa (e por isso também de forma violenta) a saúde do leitor.
A grande
estratégia narrativa de Édouard Louis é estabelecer a ideia de como o discurso
do outro se torna um sistema regulador das vidas e das condutas individuais. Por
alguma razão ficamos balançados a acreditar, por exemplo, que os pais de Eddy
teriam outra visão sobre o filho e sua condição aberta para as sensibilidades,
se não fosse o julgamento que sempre serve de dominante nas estratégias de exercício
de poder: é sempre o que o outro diz, o que outro julga, que abre a preocupação
sobre a repressão dos trejeitos femininos de Eddy ou dos gostos duvidosos que
se opõem aos esperados do que o discurso diz ser de um homem. Prova disso é
quando o menino desiste da escolinha de futebol ao descobrir que não conseguiria
usar o banheiro coletivo e o pai escolhe uma mentira a fim de justificar ao
professor de educação física que o filho prefere ficar em casa a ver televisão;
ou a declaração de amor do pai pelo filho, numa das várias crises de coluna, e
que Eddy só consegue sentir repulsa por interpretá-la como um assédio.
Por entre o
processo de descoberta de si, passa uma interpretação seca e sisuda (propiciada
pela objetividade do relato) da realidade do vilarejo. Aos olhos do narrador este
é o lugar condenado à repetição eterna dos mesmos modos de ser e estar no mundo
porque todos parecem que estão carcomidos por uma espécie de condição natural
perversa que os domina ao ponto de cegá-los para o mundo fora daí. A única coisa
que parece lhe admirar – e talvez seja o impulso que o permite suspender a
ordem das coisas – e talvez a única das esperanças, que de tão distantes não se
mostra como tal, é a contínua vontade da mãe em não sucumbir à miséria e à
violência. A narrativa, a todo momento sublinha as alternativas encontradas por
ela para garantir o sustento numa família de sete bocas, como fabula situações
a fim de não revelar diretamente para os filhos a verdadeira condição da família,
nas histórias que conta do passado que poderiam resultar noutro destino que não
o de mulher casada duas vezes e apenas dona de casa, profissão sobre qual tanto
faz questão por ser reconhecida.
Por fim, ao
revelar este universo movido pelos ventos dos dissabores e da danação, O fim de Eddy, denuncia quanto os
Estados e o modelo econômico que os definem mais fracassaram que acertaram no
que devia ser preocupação comunitária fornecer alternativas decentes e
verdadeiras de reduzir as extremidades dos fossos em parte determinados pelo
próprio sistema. E se estamos falando sobre um país que carrega certo mito de
zelar desde cedo por princípios que nas nações mais jovens ainda se engatinha
na sua direção, os princípios da igualdade, liberdade e fraternidade, o que
dizer das periferias destas? Édouard Louis revela nosso lado mais abjeto e que
habita todas as partes: o de saber sobre nossos males, conhecermos alternativas
e esperarmos que os outros pereçam na indignidade. A periferia francesa é como
toda periferia: formado por aqueles que o Estado escolheu como refugo.
Não há lição
mais cara para este século que se inicia: se não formos capazes, parece nos
dizer, de renovar as dimensões que nos determinam como humanidade poderá não
existir um século depois deste. Pereceremos na absoluta barbárie. Não falta
muito.
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