Nenhum olhar, de José Luís Peixoto


Por Pedro Fernandes



Sempre estivemos acomodados à compreensão de que o romance é, por relação à epopeia, produto da mimesis, isto é, uma reabsorção do mundo palpável pelos sentidos e lhe é externo. Mas, com o advento das novas estratégias de enunciação da ficção – sua assunção transgressora do epíteto de mentira, fabrico da imaginação criadora – revolucionaram a percepção de que o mimético, apenas ele, não valida o romanesco e este é, em situações diversas, como a poesia, gênero com o qual mantêm agora estreitas relações, transfiguração.

A observação é para dizer que Nenhum olhar se situa no âmbito dessa não tão nova força da criação romanesca. Prefigurado como um universo à parte do universo extratextual, embora não se deixe de fazer associações como as que considera a recriação do Alentejo, no mundo engendrado por José Luís Peixoto convivem numa mesma ordem, qual os antigos universos da epopeia, as forças naturais e sobrenaturais.

Tal tratamento, ao passo que nos leva de imediato à associação com o mundo primevo, também nos coloca em relação com outros mundos reimaginados pela ficção fantástica ou de iluminação centrada não na constituição física da existência mas nos sentidos de ordem subjetiva ou imaginativa fabuladora: o sertão de Guimarães Rosa, a Macondo de Gabriel García Márquez, a Comala de Juan Rulfo, para citar os que de imediato nos vem à memória sobretudo quando encontramos com a assertiva da relação do universo ficcional de Nenhum olhar com o Alentejo português.

Mas, pensar desse modo, o da recriação imaginária do espaço geográfico, é ainda permanecer preso à mesma ordem da primeira mimesis. Embora nisso não se perca o conceito, na ideia do transfigurativo vela a intenção da transfiguração que consiste na ruptura com a mesmidade das formas. O universo desse romance de José Luís Peixoto é, portanto, a criação engendrada pela fábula e apenas no interior o fabuloso existe em plena forma. Em que outro lugar convive entre homens, um gigante, o diabo, e outros arremedos de anjos? Em que outro lugar a atmosfera é a um só tempo fixa e variável entre os tons da aragem e da escuridão? Apenas em Nenhum olhar, uma fábula ou uma parábola sobre o fim indelével e a força aterradora do tempo, a que nenhuma criatura dela escapa, nem mesmo Deus, habitante da eternidade.

Uma fatalidade aterradora domina as últimas existências nesse universo povoado em simultâneo pelo natural e o sobrenatural, mas sem quaisquer presenças de Deus ou de deuses: o fim. Aquele que se assemelharia a um divino, porque a ele alguns estão subjugados, é simbolicamente devorado pelos cães, depois de um motim organizado pela cadela de José, depois de descobrir que seu antigo dono está morto ante a culpa e a impotência impostas. É o gigante, o que abusa de mulheres e é bode expiatório para o demônio plantar suspeitas nos homens sobre a fidelidade delas.

O fim, a princípio e continuamente, aparece designado pela morte, mas é ainda a impossibilidade de contar, o que se denuncia no desfecho de Nenhum olhar. Alguma vez, José Saramago disse que o universo não sabe da nossa existência e nunca saberá, que somos a certeza que temos. Poderíamos dizer que José Luís Peixoto materializa isso nesta obra. Seu romance é a construção de uma certeza – a de poder contar uma história – e a confirmação de que sem ela nada existe, nem o romance, nem o princípio dos princípios. Assinala-se, assim que a narrativa é tão somente aquilo-que-se-narra, consideração conclusiva para a observação iniciada aqui sobre o universo ficcional do romance em questão.



Tecido de tinta e papel, construído por uma consciência que do seu lugar no mundo figura um imaginário, esse universo alimenta-se exclusivamente ora de seu próprio universo ora daqueles forjados noutras condições semelhantes. A primeira condição se nota na segunda parte do romance – intitulada Segundo Livro. Esta é nada mais que uma reescrita, portanto palimpsesto, do Primeiro Livro.

A segunda condição se verifica na recuperação dos variados núcleos simbólicos do texto fundador do cristianismo – a Bíblia – e na tradição católica. As semelhanças estão na figuração das personagens, de espaços, situações e mesmo, em algumas situações, na construção da linguagem. Tais relações intertextuais, apesar de óbvias, não são pura transposição criativa do autor: tudo aparece delicadamente subvertido, fora do lugar, ao ponto de restar apenas os resíduos simbólicos de origem. E em diversos casos, nem mesmo isso.

Embora algumas leituras possam insistir que alguns aspectos se fazem a partir da ordem bíblica, é possível dizer – mesmo porque o tom bíblico alimentou-se de alguma maneira dela – sobre uma presença de elementos da tragédia. Isso não se verifica apenas pela fatalidade do homem em Nenhum olhar, está na impossibilidade de romper com a predestinação ainda que nasça em alguns certa vontade de se situar fora da ordem. A personagem José no Segundo Livro, por exemplo, apesar de não saber ao certo o destino do pai, constrói alguns imperativos que almejam negá-lo até se descobrir total herdeiro do seu antepassado: da profissão, dos objetos, da culpa e do destino. Outro exemplo: o mestre Rafael, depois de longos convívios com a prostituta cega, decide interromper a solidão dela e sua, a descobrir a possibilidade de ser pai e propondo-se casar com ela. Não resta para nenhum dos dois o foram-felizes.

Aliás, em Nenhum olhar, uma ordem semântica patente desde este título, impera integralmente: toda ausência de perspectiva. Tudo parece preso a uma mesmidade, da atmosfera árida e sempre abrasadora às ausências de saída, como sublinhamos, das personagens. Nesse universo em espera a única força que mesmo determina a própria existência ou o apagamento dela é, voltamos a dizer em gesto de conclusão, a da escrita. O romance, ao passo que recupera o princípio de Mallarmé de tudo existe para acabar num livro, também o nega: se tudo perece, então mesmo livro não é uma condição de eternidade.


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Nenhum olhar
José Luís Peixoto
Dublinense, 2018
224p.

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