Amor, casais e casamentos em William Shakespeare (1)
Por María Méndez Peña
Much ado about nothing. De Alfred Elmore, 1846 |
o noivado, o
casamento e o arrependimento podem ser comparados a uma giga escocesa, um
minueto e uma pavana.
Beatriz em Muito barulho por nada
Fazemos aqui
uma passagem por momentos e trajetórias na vida de William Shakespeare, vida
vinculada à sua família, suas experiências juvenis cotidianas em Stratford, seu
casamento e certamente o teatro em Londres. Acompanha-nos uma expressão que há
muitos anos compartilho: “Somos admiradores de Shakespeare até à idolatria ou
melhor além da idolatria”1 – como dizia James Joyce. Ele é quem mais e
melhor se aproximou à vida de Shakespeare e seu romance Ulysses é nesse ínterim uma referência constante.
Também os eruditos trabalhos de Harold Bloom e Stephen Greenblatt2 têm sido os fios para atar cabos dada a amplitude e complexidade do tema.
Meu gosto e
admiração pelos clássicos estiveram vinculados ao estudo de suas obras em cátedras
e seminários realizados em Mérida durante trinta anos contínuos sob a
orientação cativante de José Manuel Briceño Guerrero. Com disciplina, constância
e rigor, por quatro horas, a cada sexta-feira durante uns quatro anos
lemos de Shakespeare os sonetos e as obras para teatro. Desde então ficaram
gravados em mim alguns versos que retornam continuamente, por assombro, magia e
interrogações. Ao velho mestre, como agradecer tantos anos de amorosa dedicação
acadêmica? Ante os clássicos, como aproximarmos dos dons transmitidos se não é
precisamente voltando às suas obras?
Nosso
propósito aqui é sistematizar conteúdos tendo como roteiro três palavras:
“amor”,” casais” e “casamentos” nas obras que Shakespeare concebeu e escreveu
para o teatro. Considerando a imensa literatura gerada, nossa meta é modesta e
se vê sujeito aos critérios que regem textos como este.
Shakespeare
foi o gênio mais estudado e pesquisado em toda a literatura assim como na
pintura tem sido Diego Velázquez e suas Meninas.
Deste lado, se tem um quadro perene, surpreendente e misterioso em sua plena
majestade; do outro, a mobilidade do teatro, o teatro do mundo, variável, corrosivo
e irresistível.
William
Shakespeare foi o escritor inglês cuja obra não termina de ser lida e
representada embora sua vida se mantenha envolva entre mistérios, silêncios e
sombras. Os especialistas revisam arquivos da época de maneira extremamente
minuciosa, embora, ainda não tenham pistas suficientes que permitam
desentranhar mais detalhes sobre sua personalidade e sua vida. Stephen Dedalus
– alter ego de James Joyce em Ulysses
– afirma: “Entre os grandes homens, o mais enigmático. Não sabemos nada mas que
viveu e sofreu. Nada mais que isso. Uma sombra cobre sobretudo os demais”. Por
sua parte, Jorge Luis Borges aborda em seu texto sobre Shakespeare palavras escolhidas:
“Ninguém existiu nele. Ninguém foi tantos homens como ele”.
William era
o mais velho entre os irmãos homens, Gilbert, Richard e Edmund, e seus pais educaram
as crianças em escolas católicas de Satratford-Upon-Avon. Quando Will tinha dezoito
anos retorna ao seu povoado natal, onde se encontra com Anne Hathaway. Nesses
anos, ele viria ser exposto em Lancastre ao perigoso mundo dos conspiradores católicos
jesuítas; um deles, Simon Hunt, havia sido seu mestre de escola entre os sete e
onze anos; outro jesuíta nessa época havia sido levado à forca. Mais tarde, em
Londres, Shakespeare brilharia como um convencional inglês protestante, pois do
contrário haveria tido sérios problemas com os implacáveis puritanos. Até hoje,
persiste muita obscuridade sobre suas crenças religiosas (Greenblatt, 2016).
Nesse encontro
em Stratford, Anne Hathaway personificou para ele um impulso inesperado. Era
uma mulher independente que havia excitado o interesse de um jovem e por sua
idade ela era livre para tomar suas próprias decisões. Diante dela, ele deve
ter sentido, por um lado, uma liberação das amarras e restrições de sua própria
família; por outro, uma liberdade próxima à confusão e ambiguidade sexual que
os moralistas puritanos vigiavam e associavam ao ofício do ator. Will
poderia sentir um estímulo erótico inquietante ao interpretar uma cena de amor
com algum rapaz num teatro, experiência frequente entre atores itinerantes,
então Anne Hathaway se ofereceu como uma solução apaziguadora a esse despertar
juvenil (Greenblatt, 2015).
Também Anne
oferecia um apaixonante sonho de prazeres e isto se conclui a partir da
importância da corte em toda a obra
de Shakespeare: nos jogos cortesãos fazer amor, não só no sentido voluptuoso e
sexual mas no antigo sentido da corte repleta de solicitudes e galanteios, encontros
e anseios; foi uma forte inquietação e uma manifestação permanente nele. O
galanteio com adorno, graça e sensualidade, era manejado com desenvoltura,
expresso com profundidade o que demonstrava conhecer com intimidade em seu corpo
e alma, segundo se depreende de suas obras.
O casamento
entre Anne e Will tem sido objeto de interesse quase frenético desde que no século
XIX foi encontrado um antigo documento no registro episcopal de Worcester datado
de novembro de 1582. Era uma fiança com uma quantidade de dinheiro considerável
para a época, entregue para facilitar o casamento de William Shagspere e Anne Hathwey
de Stratford, moço da diocese de Worcester.
O casal
desejava o casamento sem demoras. O pagamento da fiança se adiantava para
deixar sem efeito qualquer empecilho que aparecesse. Seis meses depois do casamento
de Will, que tinha então dezoito anos, e Anne, de vinte e seis, nasce
Susana. Assim aparece no registro de batismo, o que nos leva a crer que quando
os dois se casaram, Anne já estava grávida.
Mas os
jovens não pareciam mostrar muita ansiedade de correrem ao altar. Anos depois,
Shakespeare, como dramaturgo, deixou entrever que um casamento obrigado estava condenado
ao fracasso, embora também ele fosse capaz de imaginar e referir as distintas
emoções e impaciências que um casamento suscita. Em Romeu e Julieta, no frenético arrebatamento dos amantes há uma
mistura de humor, ironia e precipitação. Os versos e cortes entre eles descrevem
a impaciência desesperada de alguns jovens amantes. Outros tons diferentes
sobre os jovens Will e Anne se encontram esparsamente em Ulysses, de James Joyce, como veremos.
Em suas
obras, Shakespeare evocaria a reticência de alguns noivos obrigados a se casar com
as mulheres com quem haviam se envolvido. “Já está de dois meses e vai rápido a moça. O
bebê já alardeia em sua barriga. É seu, sabia?” (em Trabalhos de amor perdidos). Em Henrique
IV aparece esta comparação: “Que é um casamento à força se não um inferno,
uma vida de discórdias e contínuas brigas? Enquanto que o contrário é uma benção
e um modelo de paz celestial”. Estas são passagens e evocações de Shakespeare
referentes ao casamento. Casamento, inferno ou céu?
É possível
que a partir de 1590 Shakespeare tenha começado a refletir sobre a origem da
infelicidade conjugal a partir da sua. Há malícia em Ricardo de Gloucester
quando diz “Mas um casamento apressado, muito raramente prospera”. São versos
escritos por um homem que aos dezoito anos havia se casado precipitadamente com
uma mulher mais velha que ele, a quem abandonou em Stratford, onde voltou poucas
vezes com intermitências e onde nascera os gêmeos Hammet e Judith.
Durante
muitos anos Shakespeare se manteve separado de sua esposa, dos seus sentimentos
e vida interior, e não há dados firmes sobre sua vida, formação e viagens num
período longo de seis anos, entre os seus vinte e um e vinte e sete anos; só se
sabe que a partir de 1592, dez anos depois de seu casamento, vive em Londres,
onde é conhecido como ator e poeta de renome.
Nesses
versos supra, pesa de algum modo sua própria vida, sua decepção, sua frustração
e sua solidão. Em razão da experiência no teatro e da passagem do tempo,
Shakespeare enriqueceu sua vida imaginando e escrevendo, como ninguém havia
feito, muitos matizes, tons precisos e preciosos sobre o amor e seu oposto, o
ódio. As suspeitas de que Will foi levado arrastado ao altar se reforçaram por
outros documentos menos analisados. O estado anímico e seus sentimentos no
momento do casamento são desconhecidos e sua atitude para com a esposa durante
34 anos de relação apenas pode ser suspeita. As meditações de Dedalus continua
sendo a fonte aproximada e detalhada dessa vida: “Vinte anos viveu em Londres.
Sua vida foi rica. Sua arte é a arte do cansaço. Vinte anos mariposeou ele
entre o amor conjugal com seus castos deleites e o amor puteiro com seus turvos
prazeres”.
Deste homem
extraordinário em sua eloquência e genial em sua sabedoria mundana, não se encontrou
nenhuma carta de amor, nenhum verso de amor dedicado à sua esposa, nenhum papel
indicador da alegria ou da dor partilhada, nem uma palavra viva nem altiva, nem
uma frase como conselho reconfortante, nem alguma nota de dor; nem sequer uma
transação financeira passada pela administração do lugar. Este vazio se mostra
enorme ao recordar as qualidades e os talentos de seus sonetos invocando o amor
acima do sublime e sobre a cova escura do aborrecimento. Parece verossímil que
Anne não sabia ler nem escrever e é possível que a esposa de Shakespeare não
tenha lido uma linha sequer do que ele escreveu.
Ao considerar a obra de um gênio da literatura
(Dante, Cervantes, Shakespeare, Goethe) dois componentes estão na lista dos que
os estudam: um, a criatividade humana, e depois, o contexto social no qual
esteve imerso o gênio. Algo semelhante se aplica ao campo da música, da pintura
e mesmo da ciência. A criatividade humana, por sua vez, é um mistério que não
se resolve e mais se amplia e aprofunda os enigmas apesar das indagações
objetivas: “Mais encantadoras são as hipóteses que transcendem o racional”
(Borges, 1989).
Sobre o contexto:
por um lado a Inglaterra isabelina manteve o gosto pela eloquência e fomentou
as artes, o teatro, a poesia e a literatura de maneira que Shakespeare e outros
escritores foram recompensados com aplausos e bens, reconhecimentos e dinheiro;
por outro lado, está a influência exercida pelas crônicas da Inglaterra nos
dramas históricos do bardo, em razão a dois fatos políticos cruciais, a Guerra
dos Cem Anos e a Guerra das Duas Rosas.
Atendendo à
literatura, o gênero teatro de então transcendia em razão do caráter relacional
e da alteridade que atraía sobre qualquer espectador. Vamos ao teatro para
“divertirmo-nos com o sofrimento dos outros”, dizia um ditado popular da época.
Esse gosto pelo teatro nos recorda a cota funcional da catarsis que Aristóteles atribuiu ao teatro na Grécia, onde se
entendia que representar as desgraças dos heróis era uma maneira de suplicar a
Dionisio que evitasse tais infortúnios aos espectadores.
O poeta inglês
S. T. Coleridge deixou uma expressão luminosa e incomparável sobre o teatro e
quando se vê uma obra aí “há uma suspensão voluntária da incredulidade”. A
frase retoma toda uma maneira cultural ao caracterizar o teatro de Shakespeare
na época isabelina. Com dois vocábulos tão subjetivos como pessoais se alude ao
poder relacional do teatro e tal suspensão, embora aponte para o individual, involucra
também o coletivo, e se se aceita, se consente deliberadamente uma ficção, se
entende então que o teatro mobiliza vontades e incredulidades. Esse teatro ostenta
um inigualável poder de implicação sobre o público, que já não se separa da
persuasão exercida quando retorna à vida corriqueira. Esse teatro é por excelência
um espaço enigmático onde desmoronam as explicações convencionais e onde uma
pessoa pode infiltrar-se na mente de outra. Neste sentido, a tese de Coleridge
é pertinente e remete a uma opacidade
presente nas grandes tragédias que o professor Greenblatt tem analisado.
Se existiu
um contexto social determinante para o ofício de Shakespeare e sua vida, foi,
sem dúvida, a cidade de Londres. Ele chega abrindo passagem em meio a uma urbe que
oferecia a qualquer indivíduo uma imensa variedade de opções, a diferença dos
povos e do campo. Atrás ficaram para ele o localismo e o rural. A partir de
então estava o sonho da benevolente fortuna. As dinâmicas atraentes da cidade
se enraízam como a multidão, sendo esta a medula e a seiva da vida urbana nas
ruas de Londres e recinto das comédias.
Se conjeturou
que Londres reconfigurou o mundo de Shakespeare nutrindo sua identidade de comediante e suas identificações imaginárias com as aparências
e as dissimulações. Identidade e identificação conformam um núcleo interior da
vida humana. No anonimato da cidade, ele podia se converter noutra pessoa,
sonhar ser outro, ser alguém, ser várias personagens histriônicas. “Fiz de mim
um tolo perante todos, / Gorei os pensamentos, vendi barato o mais caro, /
Renovei velhas ofensas às minhas afeições” (Soneto 110).
Em Londres,
o teatro com suas comédias e dramas estava enraizado no povo, era solicitado
nos palácios e muito apreciado na corte. Da época, provém esta expressão:
“Londres, a feira que dura todo o ano”. Shakespeare, que se interessa por tudo
aquilo que emocionava as massas, encontra em Londres uma cidade repleta de
tavernas, casas de diversão, bordéis e grupos de comédias; o populacho a
assistir as representações encontrava com as forcas a caminho do teatro.
Também na cidade,
Shakespeare acumulou outras experiências atinentes ao ofício de escritor ao captar
seus outros aspectos sinistros e deploráveis. Suas ruas e o ambiente próximo ao
teatro exerceram influência em outros escritores. Era um ambiente tomado por enfrentamentos,
transgressões e situações que atraíam toda sorte de delinquentes; também
abundavam as torturas, castigos e perseguições políticas e religiosas; provém
do século XVI uma lista que um indivíduo confeccionou sobre as atrocidades executadas
no “teatro dos castigos”.
Era Londres
e sua multidão urbana apertada nas tabernas e teatros e se o drama se
desenvolvia em Éfeso, Viena ou em Roma, ainda assim o olhar do dramaturgo estava
ancorado na capital inglesa. Essa multidão urbana com seus gritos e cheiros,
tumulto, potencial violência, sede de sangue e espetáculo, foi determinante na
vida e obra de Shakespeare desde seus primeiros dramas históricos até Julio Cesar e Coriolano.
Vejamos mais
sobre esse contexto urbano com uma passagem ilustrativa. Londres é o cenário de
uma obra de Shakespeare escrita em 1591. Acontecem (entre outras cenas) as
ações violentas de um grupo de rebeldes e uma trupe de esfarrapados comandada
por um tal de Jack Cade, personagem ousada que promete ao público uma reforma
econômica, vinho e espetáculo; os nobres e letrados são ameaçados com o caos,
subvertendo toda a ordem social do reino. Referimo-nos à peça histórica Enrique VI, Parte II. Os rebeldes proclamam
e promete “espetáculo e sangue no patíbulo”, “matar os advogados”, queimar os
tribunais e arquivos do reino”, “tornar ilegal e proibir o ensino da leitura e
da escrita”, “libertar presos e delinquentes”, “executar na guilhotina os fidalgos”.
Enquanto a cargos contra um odiado nobre Cade expõe: “Tens corrompido a
juventude erigindo uma escola primária; se provará que tinhas gente contigo que
fala de substantivos e verbos e dizem outras palavras abomináveis...”
Como um
grotesco pesadelo, Shakespeare pondera o poder de destruição da ralé levando o
espectador, no teatro, a imaginar como seria Londres governada por gente orgulhosamente
analfabeta que chegando do campo oferece medidas primitivas para um mundo
melhor. Jack Cade pergunta ao povo pelo destino de um notável preso
(um escritor, um letrado?) e logo sentencia: “Sufoquem-no com as penas e o
tinteiro ao redor do pescoço. A esse outro desarticule-o por seus versos”.
Tinta e pena
eram também os instrumentos básicos de um escritor. Nos dramas históricos
Shakespeare segue a linguagem desenfreada e popular dos que odeiam a
modernidade, depreciam com galhofa e estupidez a erudição e celebram a ignorância,
pois além de tudo conhecia de perto os ofícios desses protagonistas (camponeses,
padeiros, curtidores, artesãos com seus aventais gordurosos, réguas e
martelos).
Dogbery and
Verges with the watch - Shakespeare - Much ado about nothing - Act III Scene 2. Ilustração: Henry William Bunbury.
|
Cabe abrir
outro assunto que a nosso ver é de extrema importância: frente à ameaça
destrutiva da ralé e de seus líderes, Shakespeare se apoia nos suportes de sua consciência
e sua percepção, enfatizando por contraste a preeminência da escola e da
gramática que haviam retirados do meio rural e levado aos livros impressos; que
haviam definitivamente distanciado do entalhe na madeira, aquela oprobiosa
vareta onde os antepassados analfabetos marcavam suas contas e dívidas.
Sobre a criatividade
e a vida de Shakespeare, os estudiosos coincidem em afirmar que estamos ante um
artista que utiliza e tira proveito de tudo aquilo que se atravessa em seu caminho
e expôs benefícios das instituições, profissões e relações que afetaram sua
vida. Recentes investigações revelaram detalhes dolorosos e intrigantes da vida
do dramaturgo e o complexo ambiente erótico no qual viveu, trabalhou e,
possivelmente, amou (Greenblatt, 2015).
Foi o poeta
supremo da corte e ninguém foi como ele ao escrever sobre o casal, o amor, a infelicidade,
o ódio, as ofensas, o casamento e a família. Manteve em suas obras especial e
profundo interesse pela rivalidade homicida entre irmãos, a complexidade e os
deslocamentos nas relações pai-filho, as sombras e dúvidas sobre a paternidade
e por sua vez as traições conjugais e os vaivéns na vida de casais e casamentos.
Outro tema obsessivo nessas tragédias é a cisão familiar. Rivalidade, complexidade
e intensidade são traços que modelaram seus dramas, igualmente o contato direto
com o poder político e suas constante lutas, pois seu pai exerceu o cargo de prefeito
em Stratford por doze anos.
Estes temas
tão humanos, convinha enumerá-los no interior dos vínculos primordiais que os
analistas examinam na juventude de Shakespeare em Stratford, Worcester, Leicester
e Coventry, onde iam e vinham as companhias ambulantes de atores profissionais,
despertando particular interesse em ocasiões de festividades e ritos de
estação. As experiências e imagens do teatro ambulante marcaram a vida e a juventude
de Shakespeare, dando sólido sustento a toda obra literária que criou mais
tarde.
“Todos os
homens anseiam que seus filhos falem latim”, escreveu o tutor da rainha Isabel.
Cabe supor que os pais de Will desejavam que seu filho recebesse uma educação clássica.
Essa relação com os clássicos pode construí-la através de seus professores
jesuítas formados no humanismo de Oxford; também receberia uma formação
religiosa mediante a Bíblia na escola e com as homilias anglicanas de obrigada
leitura dominical; outra fonte de formação provém das Crônicas históricas de Hall e Holinshed e o Mirror of Magistrates3, textos que a tradição havia
estabelecido e eram consultados pela gente culta da época.
Medito no
plano de estudos, o latim se aprendia por duas vias: pelos artigos de fé cristã
no livro de rigor O abecedário com o catecismo,
e também ao ler e interpretar antigas obras de teatro, especialmente as de
Terencio e Plauto e deste se diz que os meninos contemporâneos a Will chegaram
a interpretar a comédia Os Menecmos,
que oferecia uma extraordinária e curiosa combinação: jogos e enredos entre a lógica e a confusão. Esta chave combinatória é
importante retê-la.
Entre os
anos 1550 e 1570, no repertório das companhias itinerantes de teatro prevaleciam
os autos de moralidade ou causos morais, cuja
finalidade didática era mostrar as terríveis consequências da desobediência, o
ócio, a devassidão, a incontinência e a heresia. Também estas obras encerravam
uma sabedoria popular junto com uma corrente de humor bastante subversiva, pois
esse humor era comumente chamado Vício,
esse pícaro revoltado inteligente em joguetes cruéis que, segundo o auto em
questão, levava nomes como Libertinagem,
Iniquidade, Insolência, Ociosidade, Senhores do Desgoverno, Espírito de Diversão. A magia dessas
representações, cabe sublinhar, produzia uma visão muito emocionante e perturbadora
sobre as crianças e jovens. Quando algumas companhias de comediantes chegaram a
Stratford e Leicester, onde realizaram suas representações, Will contaria entre
nove e onze anos. Já em Londres, sendo ator e dramaturgo,
Shakespeare chegou a trabalhar em várias companhias de teatro e um rico
investidor e sócio do famoso teatro O Globo desde 1599.
Até aqui,
dois assuntos se mostram primordiais e são atinentes à adição de aprendizagens
que o jovem Shakespeare acumulou e que servem – cabe conjecturar – de fundamento
e sustentação às suas obras: primeiro, o Vício, essa figura subversiva da moralidade
nas obras de então nunca se apagou nem se distanciou de sua mente; segundo,
houve nele um ceticismo que apontou uma precoce escolha pela supressão radical
de motivos ou explicações racionais explícitas enquanto aos avatares da conduta
humana e das personagens.
Sobressaem dados
importantes a respeito dessas figuras da moralidade no teatro da Inglaterra
isabelina e isso ilustra um pouco mais o contexto social e cultural no qual Shakespeare
se formou. Seja no teatro ambulante ou seja nas festas de estação na Inglaterra,
essas figuras pagãs parecem mais alusivas a um moral terrena e uma ética secular
que às virtudes de rasgo cristão. Também destacam as figuras associadas à vida citadina
e não preeminência alguma pelas personagens do campo (pastores, pastoras) e
tampouco pela vida e pelo meio rural. Sobre essa ética protestante nos diferentes
âmbitos da vida na Inglaterra, a obra de Max Weber é de referência indispensável.
A partir das
chaves até aqui apresentadas sobre o tema da precoce formação de Shakespeare e
sua criatividade, sistematizamos a seguir os atributos e sucessos mais característicos
que reconhecidos estudiosos (Greenblatt, 2011; Bloom, 2002) detectaram:
-
Shakespeare descobriu para sua criação e sua arte que a fronteira entre comédia
e tragédia era assombrosamente permeável.
- Percebeu
que tão bem o Vício, ao fim de cada obra, era expiado ou castigado, durante a
sua representação cativava ao público, que desfrutava ao máximo sua atrevida e corrosiva
influência.
- Imaginou
que o espetáculo do destino humano era muito mais fascinante ao associá-lo menos
a uma abstração (Iniquidade) e mais
uma pessoa, uma individualidade, tão intensa como desconhecida até então.
- Ele
utiliza e aproveita as fontes históricas, mas sobretudo, transforma os conteúdos
e as fontes da literatura que precedeu.
- Diante dramas
históricos, soube transportar o público para épocas passadas, meio borradas na
memória, dando-lhes uma atração, força e convicção que antes nunca haviam tido;
esses dramas também foram seus primeiros sucessos em Londres e o público conservou
nitidamente a imagem de Joan d’Arc como bruxa e puta abondada por seus diabos.
- Também aprendeu a prescindir a piedade, a caridade
e outras virtudes até converter o sonho e ideal do sagrado num divertimento
popular.
- Não seguiu
um padrão claro e lógico para a criação de suas obras; do contrário, produziu
um desenvolvimento gradual graças a um refinamento cognitivo de técnicas
figurativas específicas até performar com meios linguísticos e estéticos a
representação acabada da alma humana.
- Enquanto
outros escritores da época faziam anotações acadêmicas em suas obras, Shakespeare
não atendia tais referências; ao contrário, acrescentava piadas novas, jogos de
palavras obscenas, apodos e vocábulos novos.
- Reinventou
a arte como a fonte de uma gentileza, passando por uma profunda turbulência
frenética até desaguar na tormenta passional.
- Ofereceu
ao público um teatro que tinha duas caras: um voo mágico visionário e uma humanidade
terrena, demasiado humana.
-
Shakespeare em seu mundo próximo conheceu atores, relações e instituições muito
variadas, contando com uma aguda curiosidade e uma energia ilimitada para a percepção
cotidiana desse entorno.
- Foi, como
dramaturgo e poeta, simultaneamente, agente de civilidade e agente de subversão;
escrevendo para o teatro progressivamente ele descobriu que seus recursos verbais
eram ilimitados.
- O quanto a
vida lhe ofereceu ele o converteu em arte, sua experiência, seus tormentos e suas
crises de status social, sexualidade
e religião; transformou a dor pela morte de seu filho Hammet em obra estética
de transcendência universal.
- Entre os gêneros
literários, o teatro resultou, para ele e sua época, o mais atraente em razão
de sua especial qualidade relacional: diálogos, alteridade, tensão,
intensidade, paixão e com efeitos sensoriais, emocionais e psicológicos imediatos.
- Encontrou
no mundo exterior aquilo que era possível em seu mundo e sua vida interior; é
um desenvolvimento gradual, marcado por sua experiência mundana, sua imaginação
e sua aguda natureza cognitiva.
Especial relevância oferecem o tema e a visão
da maldade, o vício e a ausência das virtudes cristãs, sejam católicas ou sejam
puritanas, em Shakespeare. Além disso, a polaridade entre o bem e o mal é característica
que, com exuberância e precisão, se revela ao tratar o carisma e a força
interior das personagens más e outras figuras obscuras (Ricardo III, Edmundo,
Lear, Lady Macbeth) e marcou para sempre o teatro em seu andamento universal.
Até hoje, essas características continuam cativando os diretores de cinema e produtores
de séries de televisão por isso são recriados de maneiras e formas diferentes. “Afinal
de contas – em Ulysses – têm razão
Dumas fils (ou é Dumas père?), depois de Deus, Shakespeare é quem mais criou”.
Sobre a exuberante
força interior nas personagens do Bardo, sabe-se das muitas aflições que Freud padeceu
ao ler ou tropeçar com as personagens e arquétipos humanos do inglês. Percebeu que
havia alguns precedentes nítidos e singulares quando criou em Viena suas
teorias científicas. Já não resta dúvidas nem discussões sobre o assunto, pois
Shakespeare antecipou com seu teatro as teorias de Freud sobre a psicanálise. Óbvio,
seu propósito se centrava no teatro e não nas explicações racionais ou nas
teorias intrínsecas à racionalidade científica.
Tratam-se de vilões extremamente inteligentes
e eloquentes. Ricardo III é frio e desapiedado, sanguinário, sagaz e transbordante;
suas frases brilhantes sobrevivem precisamente quando ele fala ante seu espelho
(ou sua consciência). Com Ricardo III ficou perfeitamente traçado e por séculos
o retrato irresistível do anti-herói absoluto. Frente a ele e outros seres
inventados por Shakespeare, o espectador sente uma atração bastante difícil,
quase impossível de esconder, porque esse vilão tece e recria uma cumplicidade com
o público muito superior que personagens portadoras do bem ou da bondade. Se pode
desaprovar e riscar Lady Macbeth, Edmundo ou Yago, mas isso não os diminui
perante nós; permanece a força misteriosa, irresistível e sempre corrosiva que
emana deles e de seu criador. Eles se contemplam artisticamente a si próprios, dobram-se
e se desdobram em imagens forjadas cada uma a partir de sua própria inteligência,
exibindo assim a arte de ser personagens dramáticas lúcidas e ser artífices
estéticos muito atraentes.
Contemplar-se
a si mesmo (com ou sem espelho?), confessar-se para si mesmo, enquanto fala e
fala, hostiliza e ofende outro membro de sua família, são traços mestres de uma
personagem inigualável como Ricardo III. Nela, Shakespeare condensa eloquência
e maldade, ambição e lucidez. Enquanto se vai retratando, de seu logos (verbo e razão) ele abre completamente
a tela larga e colorida de suas vaidades, ambições e delírios. Eram os impulsos
rançosos de um político isabelino; são os de um populista latino-americano
hoje.
Talvez a cena
mais acabada aparece quando Ricardo se aproxima de Lady Ana, frente ao caixão
de seu esposo, recém assassinado por ele. É o componente sadomasoquista da
sexualidade que o público por igual se deleita e se espanta. Ao nosso juízo, aí
Shakespeare amalgama todas as características acima mencionadas de maneira
absoluta, pois esta obra conjuga duas forças humanas exuberantes: a luta pelo poder
e a guerra, a antítese do amor e do casamento. Não é por acaso que a maldade e
o crime apareçam tão bem encaixados no poder político.
Como um ser desonesto, um assassino, consegue
impor-se sobre os nobres na corte? Como Ricardo mistura com incomparável destreza
ambição, sedução e linguagem? Ao perder tudo, guerra, trono, reino e família,
ele pronuncia uma frase petulante que como lição política retrata o tirano em
diferentes épocas: “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!” (para
fugir). Sempre surpreende, várias vezes, a voz com a qual Ricardo III encerra
suas longas perorações: “Desçam, pensamentos, desçam ao fundo de minha alma!” É
a expressão de uma obscura força humana tão incansável como insaciável por trás
do poder. Em Shakespeare, os tiranos criminosos como Ricardo III e Macbeth, cuja
vontade é a única justificativa para arrebatar e permanecer no poder, terminam
expiando seus crimes com a morte.
Acrescentamos outros elementos reveladores que
ilustram a gradual maturidade de Shakespeare como escritor e dramaturgo.
Greenblatt (2015) com dados e argumentos identifica este processo como opacidade estratégica. Ao examinar o
passado se detectam os passos iniciais de Shakespeare, que mostram sua relutância
às explicações, às desculpas oficiais e às justificações psicológicas e teológicas
de por que nos comportamos como nos comportamos... Com esse ceticismo, o escritor
avança outro passo, deslocando todos os motivos que dão sentido à ação, dando
assim a entender que em nome do amor as pessoas fazem escolhas quase totalmente
inexplicáveis. Gradualmente avançou mais ao dominar os recursos linguísticos convenientes
para escrever e no fim provocar no público uma intensidade esmagadora, deixando
muito atrás, e no vazio, o elemento explicativo “chave” a separar o fundamento
racional, a motivação, o princípio moral que justificaria as ações a
desenvolver na trama e a urdidura dos dramas.
Desde então
a interioridade humana se mostrou mais aberta e nua em cena, ante o público e
Shakespeare se confirmou como o mestre precursor no jogo tenso e denso das
ambivalências e das ambiguidades. Ante esse público ele apresentava uma miscelânea
de contraposições entre a excitação erótica, a dor, o riso das comédias e uma identificação
imaginária com a dor, as misérias e as desgraças nos dramas. Ou mudando o tom:
ele foi o mestre no jogo das confusões plantadas pelo Vício, esse pícaro especialista
em fantasias e tretas, confusões e pesadelos, aquela personagem que desde criança
ele havia observado no teatro ambulante de seu povoado natal. Há algumas frases
memoráveis sobre as contraposições
particularmente na criação elevada e na literatura clássica que ressoam em Rafael
Cadenas (2000) “Na escrita poética sempre haverá um claroescuro, não a claridade
total, a claridade de Apolo”.
Trabalhar como
comediante foi determinante em sua vida, porque o aproximava do teatro para escrever
todas as outras obras. Eram as duas faces de Jano num mesmo destino. A dedicação
ao teatro por dois lados, como ator e como escritor, também gerou nele conflitos
interiores conectados às suas crises de status
e ascensão social por tanto empenho que colocou em Londres; ali ele viveu e
em igual proporção sofreu.
Cabe imaginar que entre ambos ofícios se acrescentou
o problema de sua identidade: “a criação que forjou para se esconda de si
mesmo, velho cão lambendo uma velha chaga” (Joyce); “ser todos os homens e ser
nenhum” (Borges). Shakespeare padeceu de uma identidade provisional e circunstancial
porque a mobilidade é inerente ao comediante; também o são a fugacidade, a máscara
e a dissimulação quando foi anunciante de feira até à borbulha da fama...
Notas:
1 Cf. Luis
Astrana Marín em William Shakespeare: obras completas (Ediciones
Aguilar, 1974). Astrana Marín traduziu integralmente toda a obra de Shakespeare
pela primeira vez para o espanhol em 1932. Essa tradução inclui as tragédias,
as comédias e os sonetos acompanhados de um estudo preliminar sobre a obra.
2 O professor
Stephen Greenblatt (2015) em suas notas bibliográficas inclui numerosas
referências a pesquisas sobre Shakespeare, sua vida e sua obra. Greenblatt,
professor em Havard, segue várias gerações de acadêmicos e autores. Ao revistar
essas notas elaboramos uma lista de subtemas referidos e ajustada ao objetivo
deste texto. Essa confecção é um procedimento metodológico meticuloso. Essa
lista ilustra de maneira clara a amplitude e complexidade do tema, mas também
nos aponta incontáveis pistas e reflexões. A lista compreende uns 38 subtemas
precisos, diversos e amplos.
3 HALL, E.;
HOLINSHED, R. Holinshed’s Chronicles (1577, 1587). Crônicas de
Inglaterra, Escócia e Irlanda. É um antigo trabalho coletivo publicado em
vários volumes. Trata a história das ilhas britânicas. Se confirmou que
Shakespeare utilizou essa obra como fonte para seus dramas históricos; na mesma
época, outros dramaturgos, como Marlowe, também consultaram as crônicas. A
Mirror for Magistrates (1559, 1587), uma coleção de lamentos em verso a várias
vozes entre os que participaram na Guerra das Rosas contando suas desgraças.
Esta coleção serviu de inspiração literária a vários autores, incluindo
Shakespeare.
* Este texto é a tradução dividida em três partes do ensaio “Amor, parejas y casamentos en William Shakespeare”, publicado na revista Letralia.
Comentários