Primavera em Casablanca, de Nabil Ayouch

Por Pedro Fernandes



Hollywood eternizou Casablanca como a do céu mais bonito e a qual os que almejam alguma ponta de felicidade decidem dela fugir; este contexto do filme de Michel Curtiz é o do conturbado período da Segunda Guerra Mundial e a cidade marroquina era ponto de passagem de gente da França de Vichy, da Alemanha de Hitler, refugiados, ladrões. Enquanto isso, Nabil Ayouch recupera a cidade vista pelos estadunidenses – e também sua terra natal – como uma ilusão da qual se é impossível fugir.

Não é que Casablanca seja o motivo principal do filme que carrega seu nome; nem no de Curtiz, tampouco no de Ayouch. No último, a cidade é apenas um motivo para o drama vivido por cinco personagens que constituem cinco núcleos específicos e todos num só ritmo: a contínua necessidade de agir para viver. O cineasta revisita assim a condição da liberdade, patente já no filme de 1942, para repensar que da visão romântica da luta pela realização plena dos indivíduos só restou a luta. Repete-se outra vez um refrão caro ao pensamento francês segundo o qual viver é uma contínua tentativa de ruptura com o instituído, sobretudo quando este atende pelo nome intolerância.

As cinco narrativas de Primavera em Casablanca transitam contextos diversos – da periferia ao centro, da gente simples à de boas posses, do passado de há décadas aos movimentos incendiários que têm servido de força motriz para as revoltas que ensaiam minar modelos ultrapassados que insistem ainda em repetir determinadas formas de ser e estar no mundo. A narrativa que alinhava as demais é a da interdição do sonho de um professor que numa aldeia remota do Oriente trabalha por construir outras possibilidades de existir para as crianças do lugar. Muitos anos depois enquanto observa, recluso em sua casa, as manifestações de jovens que tomam as ruas, reconstitui a compreensão da vida enquanto ação.

Assim como a história principal, as demais lidam com o processo doloroso de apagamento dos sonhos pelo imperativo da opressão: o jovem que sonha repetir o feito de um Freddy Mercury (escolha que não é gratuita na geografia de um filme que trata sobre o direito à liberdade); a mulher que grávida, depois de abusada sexualmente pelo marido, se vê entre o dilema de realizar ou não um aborto; a adolescente que presa numa cultura do machismo e do zelo do corpo para a posse do homem (qual a empregada que vive em sua casa encantada, no auge dos seus 17 anos, sonha na realização de casar-se com um homem mais velho e abandonar tudo em nome de cuidar de uma casa e dos futuros filhos) decide ela própria tornar-se mulher ou ter a iniciativa de autora de seu próprio corpo.

Talvez, a narrativa que não ensaia nenhum drama sobre o ato de ser-livre é a do núcleo que inclui um judeu distanciado dos do seu grupo de amigos do passado, o filho responsável por um restaurante-clube, o Casablanca, inspirado no filme de mesmo título – clara referência ao Café de Rick, a casa noturna administrada por Rick Blaine no filme de Michel Curtiz – e um garçom apaixonado pelo drama romântico vivido entre Rick e Ilsa Lund. Este oásis parece funcionar como uma clara referência ao poder da arte enquanto força capaz de garantir a não-descida do homem aos infernos ou a ser tragado pela barbárie que lhe rodeia. É uma narrativa que se situa numa dimensão que chamaríamos de heterotopia.

Em Casablanca, Rick, em meio aos entrecruzamentos de conflitos, se diz neutro em todos os campos, embora isso seja uma mera máscara mais tarde desfeita; no filme de Nabil Ayouch, ao mesmo tempo que se recupera a condição de neutralidade por através do núcleo heterotópico, cobra-se a certeza de que todos – mesmo a arte que se coloque para além de tudo – estão presos ao mesmo solo social e, portanto, não alheios aos dramas e conflitos que aí se passam. Isso fica notório na única tentativa de convergência das histórias alinhavadas neste filme, quando numa festa onde se encontra a adolescente em posse de construção da autonomia sobre si, vê-se preso num levante da desordem sustentada pelo jovem aspirante a cantor que sucumbe aos insultos dos rapazes neste ambiente contra a cantora da festa. É quando se constrói a certeza de que Casablanca é apenas uma ilusão de folhetim hollywoodinesco ou que a vida é fúria.

No mais, a variedade dos contextos e dos dramas reitera que existir é embate; e que enquanto prevalecer a intolerância, os ódios gratuitos, as segregações, as tentativas de domínio de uns sobre os outros (seja por quais meios for) não há possibilidade da utópica paz entre a humanidade. Se isto é um tanto fatalismo ou pessimismo nada sabemos. É possível que assim sejamos ad eternum: entre a esperança e a desesperança, a redenção e a barbárie, tal como sugere a emblemática imagem da personagem que grávida se lança ao mar no final do filme.

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