Garotos do Leste, de Robin Campillo
Por Pedro Fernandes
Um passeio
pela filmografia de Robin Campillo servirá para que possamos perceber o quão
diverso pode ser um criador que não mede esforços para se reinventar a cada
trabalho. Com quase uma dezena de produções uma prova que poderíamos utilizar
para comprovar isso – e outros textos que porventura vierem sobre algum outro
título do cineasta dirão a mesma coisa – é a distância entre o premiado 120 batimentos por minuto, um de seus trabalhos
mais recentes e Garotos do Leste, de 2003.
Naquele, a atenção da narrativa é pela construção de uma historiografia da luta
pela humanização do Estado em relação aos soropositivos; e neste uma encenação de alta carga dramática
e tensional sobre uma condição que estava no início de tudo, os fluxos de
migração dos povos que continuamente atravessam condições adversas em seus territórios de origem para a Europa abastada.
Em 120 batimentos Campillo dispõe do
material do qual irá compor sua narrativa: a história da organização ACT UP
francesa em prol de políticas de Estado, a cobrança pelo trabalho dos
laboratórios farmacêuticos para com os portadores de HIV. Em Garotos do Leste, os episódios com a imigração ilegal apesar de dominar a mídia e o cotidiano dos franceses serão
integralmente trabalhados pela criatividade imaginativa do cineasta. Assim, a
narrativa deste filme parece se inaugurar com essa busca pela história possível:
a câmera passeia livremente pela estação Gare du Nord acompanhando o trânsito
de um grupo variado de adolescentes e crianças que vivem à paisana como se à
busca de desavisados para pequenos golpes. Os primeiros minutos servem para
situar o espectador sobre como estes jovens se mantêm.
Situados,
somos levados a um encontro quase casual entre um executivo e um dos garotos do
grupo no que finda um agendamento para um encontro sexual. Este pequeno e corriqueiro
episódio funciona como o gatilho de todo o drama que se abrirá – reafirmando
uma tarefa sagrada do cinema francês, contar uma boa história a partir de uma situação
aparentemente banal. E não falha. Desse momento, a narrativa ganha pelo menos
três andamentos diferentes para uma mesma história: a invasão do apartamento
onde vive o executivo pelo grupo de imigrantes; o retorno do garoto para o
programa; o envolvimento do executivo movido por dois sentimentos que induzem à
salvação do garoto – a carência e a compaixão.
Há algo de dickensiano
na narrativa se pensarmos na figura do explorador de menores, no cativeiro que
o explorado é submetido e no encontro de uma alma caridosa que o salve dessa condição,
que parece se justapor a uma compreensão segundo a qual nem todos os envolvidos
com a ordem marginal são movidos apenas pelo interesse gratuito de serem maus,
mas porque a solução oferecida é nenhuma e logo tudo lhe favorece à errância.
Esse critério beira o romântico se formos olhar para a situação desprezando o contexto
cultural do qual a narrativa faz parte. Mas, sobre isso Campillo tem profunda
compreensão e não deixa de marcar criteriosamente a que condições se refere.
A invasão do
apartamento de Daniel, apesar de inaugurar um movimento da atmosfera de tensão
que se derramará para o resto da narrativa – porque ficaremos sempre à espera
pelo pior –, oferece-nos algumas questões pertinentes de se pensar. Duas das
principais delas talvez sejam o vilipêndio da intimidade e da individualidade,
algo que se verificaria (e depois se verifica) no envolvimento sexual entre ele
o jovem Marek / Rouslan (o que paga e o que oferece o corpo em serviço), e o
desfazimento, de uma hora para outra, de uma condição que terá levado grande
parte da vida (ou mesmo toda) para sua construção. Ocorre aqui um toldar da
memória que se queria pura e indissociável das situações mais complexas e
aparentemente intocáveis a figuras do patamar social de Daniel. Isto é, a falsa
sensação alimentada pelo poder capital de que estaríamos salvos depois de conquistar
as paredes de ar que sustentam nossa bolha na selva onde padecem todos os menos
privilegiados.
A condição
de confronto com seu próprio status parece
corroborar em Daniel alguma certeza que tem consigo: os invasores podem lhe
servir como um profundo choque de consciência sobre o que é existir como alheado ou
indiferente ao seu lugar no mundo. É isso, aliás, o que favorece a uma vez
retomado o ponto de origem da situação a que é submetido, o envolvimento deste
homem bem-estabelecido socialmente com Marek / Rouslan. Neste segundo momento a
narrativa é atravessada por um custoso trabalho de estabelecimento de uma relação
de confiança e por uma tentativa de conhecimento sobre a lugar do outro (essas
duas construções se dão por sobre um arame farpado e o destino é sempre
sustentado pela imprevisibilidade).
O sentimento
de querer oferecer uma alternativa ao garoto recobra em Daniel uma espécie de
metonímia sobre o que poderia ser a própria Europa para com aqueles segregados
por uma parte do continente que conseguiu se estabelecer como um modelo de civilização
pela qualidade de vida oferecida pelo Estado aos seus cidadãos. É uma via de
mão dupla: o continente idealizado pelo imigrante foi construído em parte do
esforço do próprio imigrante e este, por sua vez, de uma hora para outra se
torna a presença inimiga porque ganha entre todos o sonho de ser tal e como é
para uns o mundo de oportunidades. É o sempre temido imaginário do outro capaz
de tomar o meu lugar; quer dizer, o refúgio que construímos em nome de uma
estabilidade significa o integral isolamento de uma condição a qual falsamente
deixo de estar submetido. A tratativa de Campillo é o questionamento dessa
ordem e sobre a responsabilidade que temos sobre o outro e que ignoramos.
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