Eu sei que nunca se dirá tudo o que a poesia é
Por Pedro Fernandes
A constatação exibida neste título é de Sophia de Mello
Breyner Andresen; aparece num texto recuperado pela edição 10 da Revista 7faces
publicada em 2014, mas data dos anos 1960 quando é apresentado no oitavo número
da Colóquio / Letras, periódico da Fundação Calouste Gulbenkian. Na passagem da
primeira década do século XXI, se ensaiou no Brasil uma entrada da obra da
portuguesa. No mesmo ano da aparição da revista brasileira, a extinta Cosac
Naify chegou a editar dois contos de Sophia: A menina do mar e A fada
Oriana. Depois disso nada mais foi feito para que a aparição da luz do cometa
se convertesse entre nós em algo mais que um ponto cintilante.
O momento não foi único. Exatamente dez anos antes, apareceu
uma antologia organizada por Vilma Arêas, Poemas
escolhidos. Porque Sophia, se tornou reconhecida como poeta, este momento,
aliás, pareceu mais verdadeiro para os que esperavam por ver sua obra editada no
Brasil. Mas, gorou em definitivo. Não vieram sequer novas antologias. E, só agora,
sabemos que ao menos toda poesia de Sophia terá seu merecido lugar por aqui –
quer dizer, os prenúncios parecem surtiram algum efeito.
Aos dois momentos citados podemos justapor este outro: a
publicação de Coral e outros poemas.
Diferentemente do livro preparado por Vilma Arêas, a seleção de Eucanaã Ferraz,
ao menos no título, se apresenta interessada em compor um painel bastante amplo
dos tons definidores, se assim é possível proceder, da poesia de Sophia de
Mello Breyner Andresen. Quer dizer, a frase de “Poesia e realidade” aqui citada
pode, de maneira irretocável, ser tomada
para a própria obra da poeta portuguesa, que transitou por uma diversidade de
temas e elementos, além de dialogar com poéticas de cores variadas: da poesia
grega, seu maior manancial, à poesia romântica; da poesia de intervenção, ocasião
que se confunde ao momento de sua biografia quando se postou contra o regime
ditatorial, à poesia objetiva de João Cabral de Melo Neto ou mesmo o lirismo de
Cecília Meireles.
É claro que a antologia de Eucanaã Ferraz, apesar do esforço
para a construção de um painel da poética da antologiada, não se desprende da condição
a que está condenada toda obra do gênero. Ao mesmo tempo que tem uma importância
formidável em apresentar, sobretudo numa terra de leigos, uma obra, as seleções
de textos nunca se desprendem de um gosto pessoal e portanto são criações marcadas
por um direcionamento de leitura nalguns casos comprometedores na delicada missão
de apresentação de uma obra. Isso significa dizer que nada substitui a própria
obra criada individualmente pelo poeta. E esta é uma constatação útil ainda
para outra recorrência atual: a apresentação de edições que compactam – não no
sentido de reduzir mas de justapor – bibliotecas inteiras de poesia. Neste
último caso, o leitor que não teve contato e nem se demonstrará motivado a buscar
as obras em suas origens, nunca saberá do verdadeiro percurso criativo de seu
escritor. Para os dois casos salvam-se os gestos propostos pelos próprios autores
com sua obra.
Ao definir sua antologia com o título de Coral e outros poemas, Ferraz se faz
mais impessoal que Arêas, quem determina sua seleção propositalmente com o termo
escolhidos. Esta esconde o fio condutor
da escolha ou atribui certo acaso neste processo, embora nenhum se deixe conduzir
por um critério próprio. Eucanaã sublinha então um elemento peça-chave na poética
de Sophia de Mello Breyner Andresen, que, ora por arroubo pessoal, ora pelo
diálogo construído com as forças da poesia grega, manteve pelo mar uma de suas
obsessões criativas.
Provam essas duas afirmativas – as do critério de seleção do
poeta brasileiro e as da recorrência temática – os poemas aqui apresentados: “Mar”,
“Fundo do mar”, “Homens à beira-mar” (de Poesia);
“Mar sonoro”, “Navio naufragado” (de Dia
do mar); “Chamei por mim quando cantava o mar”, “Coral”, “Praia”, “Barcos”,
(de Coral); “No mar passa de onda em
onda repetido” (de No tempo dividido);
“Marinheiro sem mar”, “Náufrago” (de Mar
novo); “Barcos”, “O hospital e a praia” (de Livro sexto); “Brasil ou do outro lado do mar” (de Geografia); “Navegámos para Oriente”,
“Navegavam sem o mapa que faziam”, “Nus se banharam em grandes praias lisas”,
“Eu vos direi a grande praia branca” (de Navegações);
“Ondas” (de Musa); “O búzio de Cós”
(de O búzio de Cós e outros poemas);
“Náufrago acordando” (de Poemas dispersos)
– para citar apenas os títulos em que
a menção ao mar ou ao elemento marinho se apresentam desde a definição do
poema. A antologia de Eucanaã Ferraz se constrói, assim, a partir de um tema de
predileção e recorrência e o título sublinha, à maneira de imitação da poética contemplada,
a própria maneira de Sophia em nomear sua obra – se pensarmos no caso de O búzio de Cós e outros poemas.
Em “Poesia e realidade”, o texto citado na abertura destas notas,
a poeta portuguesa dizia que “A palavra poesia é usada em três sentidos:
chamamos poesia a Poesia em si, independente do homem. Chamamos poesia à
relação do homem com a Poesia do Universo. E chamamos poesia à linguagem da
poesia, isto é, ao poema”. Também essa afirmativa responde pelo exercício criativo
da autora. “Coral” ou “O búzio de Cós”, pela singularidade como se manifestam, se
mostram como poesia-em-si; apenas recolhas propiciadas pela sensibilidade da
poeta na sua relação com o mundo. Essa recolha, entretanto, é modulada pela
lida com a palavra – esta que favorece a singularização das coisas e a existência
autônoma, como a poesia, do poema.
Não é preciso explicar mais porque Coral e outros poemas é não só uma síntese da obra como da poética
de Sophia de Mello Breyner Andresen (claro, se se tomar a linha favorecida pelo
pensamento da própria poeta), mas uma reprodução
metonímica de um amplo, complexo e singular universo. Tal possibilidade só
vigora por uma vivência sensível – e igualmente em poesia, no sentido proposto
por Sophia – com a obra poética.
Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha
Estes são os três versos que compõem o poema “Coral”. Se ficarmos
apenas na especificidade biológica, notaremos que entre o título e o texto se
manifesta uma posição contraditória. Apesar de tomar parte no mesmo universo
dos cnidários, ao qual pertencem as águas-vivas, as medusas ou as caravelas do
mar, os corais não se locomovem. Podem formar, entretanto, extensas barreiras
multicoloridas. A contradição proposital – porque em matéria de poesia o mundo
é um enorme corpo de contrários – encontra nessa figura da justaposição multicolor
uma definição possível acerca do universo poético de Sophia. Quanto a
mobilidade demonstrada pelo fôlego do poema, nada nos impede a leitura do
próprio mover-se do poeta, quem se pergunta por contrários sobre as obviedades
escuras do mundo e continuamente, indo e vindo, qual balanço do mar, renomeia
ou reinventa substantivações. “Linguagem da poesia, o poema é mais do que uma
expressão da poesia. É uma realização, uma forma de transformar em coisa o
nosso amor pelas coisas”.
Ou seja, estes versos de “Coral” encontram eco no pensamento
literário de Sophia e, por sua vez, também participa na elaboração sobre sua
poética, o que é captado pelas filigranas sensíveis e acuradas do leitor
Eucanaã Ferraz. “A união com a Poesia e não o poema é a finalidade do poeta”,
diz ainda Sophia de Mello Breyner Andresen no texto tomado como dorsal para estas
anotações. Possivelmente resida aí uma alternativa para a composição de
antologias – estes objetos de forma bifronte e constituído de face contraditória.
Que não tarde a chegar a poesia completa de Sophia – há muito por ouvir desse
mar de ondas ora calmas e bravias, há muito o que saber desse universo tão grandioso
e misterioso que de tempo em tempo se renova com os mesmos outros rumores. Embora
nunca possamos, em face de toda obra, dizer sobre a poesia de Sophia. O tatear
entre as coisas, entretanto, é gesto poético por natureza (indispensável na
antologia de Ferraz a leitura dos cinco textos que se assumem qual “Poesia e
realidade”, um manifesto poético do fazer de Sophia). E boa maneira de praticá-lo
[o tatear] é correr por correntezas como esta agora reapresentada entre os
leitores brasileiros.
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