120 batimentos por minuto, de Robin Campillo
Por Pedro Fernandes
Em 2014,
Ryan Murphy construiu um retrato inquietante sobre o surto de AIDS na década de
1980; o filme é baseado na peça de Larry Kramer, ambientado em Nova York, nos
Estados Unidos, e a narrativa transita entre o paradigma da liberação sexual,
produto de uma reivindicação por assim dizer cultural que remonta ao fim dos
anos 1950 e nas duas décadas seguintes e as imposições trazidas pela doença sobre
as quais ainda nada se conhecia. A morte não dá trégua, mas The normal heart não consegue, apesar de
todo apelo dramático, tocar tanto quanto este filme de Robin Campillo.
Poderíamos
justapor 120 batimentos por minuto à
produção anterior porque o contexto aqui refere-se a uma década depois dos acontecimentos
tratados e apesar de estarmos agora noutra narrativa os dramas de alguma
maneira se repetem. São dois filmes que poderíamos designar como interessados
em registrar as transformações de uma doença das mais fatais na história recentemente
da humanidade e cuja cura, tanto tempo depois das grandes epidemias, ainda não
foi alcançada. São dois registros de um sismo que nos abalou em várias frentes.
Além de acrescentar
uma pequena peça na complexa história da AIDS, o filme francês reconstrói outro
elemento particular: a luta pelo reconhecimento do Estado ao tratamento da
doença. Pela alta incidência entre os gays, vários setores preferiram classificar
a epidemia como o mal de uma minoria. Numa conjuntura cultural fundamentada em
princípios de ordem moral e política de condenação das minorias, tudo chegou a
ser tristemente interpretado como uma punição natural contra os degenerados. A
ruptura com esse modelo de pensamento, entretanto, resultou no conflito marcado
pela morte de muitos e um enfrentamento contínuo em favor da verdade, indispensável
ainda para os nossos dias.
O ACT UP,
sigla para AIDS Coalition to Unleash Power, é um grupo que nasceu em 1987
em Nova York e se tornou uma organização internacional que trabalha em prol de
melhorias na qualidade de vida de pessoas soropositivas, fazendo pressão em assuntos
como legislação, pesquisa científica, novos tratamento e políticas públicas. O
filme de Robin Campillo se concentra na história desta comunidade em Paris pela
construção dessa frente de melhorias quando o Estado ainda demonstrava passos
muito curtos em assuntos como as campanhas de prevenção, a execução massiva dessas
atividades, a proteção e o tratamento dos doentes. Neste último grupo de
interesses desenvolve uma narrativa acerca do embate entre os laboratórios
farmacêuticos e a comunidade de infectados na transparência sobre os estudos,
descobertas e distribuição de remédios capazes de propiciar algum alento contra
a doença.
Só essas dimensões
seriam suficientes para justificar a grandiosidade do filme de Campillo em que
a única posição assumida é a dos que estão presos entre a esperança e a morte, construindo
assim uma visão integralmente identificada com a causa do grupo retratado. Esqueçam,
portanto, a lógica de que toda a história tem vários lados. Sim, ela tem e eles
aparecem de alguma maneira ao longo do filme, mas sobre todos eles recobre o
manto de humanismo que se constitui na única e definitiva maneira de tratar
sobre questões que recobram intensa comunhão entre diversos segmentos da sociedade
e os seus excluídos.
Porque a
narrativa tenderia ao apelo documental e didático se se concentrasse apenas no contínuo
esforço dos ativistas do ACT UP, o diretor escolhe quase aleatoriamente uma vez
sabedor de que o drama que une todos do grupo é sempre marcado por uma crueldade
perversa da existência sobre os sonhos de uns, duas personagens que assumem o
papel de expor ao espectador quais as mínimas causas que colaboram na força incansável
dos ativistas frente ao gelo do Estado.
O amálgama
entre duas forças, uma coletiva e outra individual, constitui um equilíbrio de efeito
valioso capaz de propiciar uma leitura o mais ampla possível desse contexto, da
história representada, da luta dos soropositivos, das atividades do ACT UP revelando-os
a multiplicidade de situações (sempre entre um forte apelo à manutenção das
liberdades individuais e dos corpos e da luta por dignidade) e ainda cumprir um
papel, dentre estes talvez o mais difícil sem parecer panfletário ou
determinado por um didatismo artificial: apresentar às gerações futuras a necessidade
de se manterem cientes do lugar onde estão e de se manterem em ação política continuamente
em torno das conquistas alcançadas pelos que lutaram.
É como se Robin
Campillo, que demonstra um profundo conhecimento de todos os lugares por onde
se arrisca a pisar com este filme, nos dissesse o que toda uma geração fez no passado
para uma razoabilidade das coisas e agora nos cobrasse sobre o que nós temos feito
no presente pela renovação de políticas, novas pautas ou mesmo a curiosidade de
saber a quantas andam as medidas que foram conquistadas por aqueles.
Ou seja, mais
que um registro histórico, prevalece um filme de alerta para uma geração que
tem se demonstrado acomodada ao lugar-comum de que é possível manter uma vida
normal com a AIDS ou ainda que esta é uma situação da qual estão imunes, o que
não é verdade nenhuma coisa nem outra. Ou ainda, cai sobre um tema bastante caro
para a indústria farmacêutica atualmente que é a preocupação modelar com o acúmulo
de dinheiro enquanto os doentes padecem à míngua em busca de uma solução e nada
mudará se a sociedade não se mantiver unida por cobranças. E, também, a necessidade de se debater sobre HIV em todas as frentes.
Por isso e
por outras demandas que o filme pode suscitar é este um produto de inestimável
valor e fundamental estar ao alcance de todos.
Comentários