Dez vozes da poesia feminina que desafiaram o panteão dos poetas
Em todas as
dimensões estende-se o império dominador do homem. Mesmo na poesia – esse
território cujo nome se reveste do elã feminino e cujas bases de realização,
fruto seja do imperativo das musas ou da inspiração, são igualmente femininas –,
às mulheres sempre foram, por pura ânsia ambiciosa do mando sectarista, este
espírito que caracteriza tal império do macho, reduzidas.
Traços
negativos disso estão em toda parte. A começar pelo vocábulo que designa a
mulher que trabalha no ofício da tessitura de palavras em poemas. As primeiras
delas começaram por se designar poetisas, impondo uma ruptura com o poder
simbólico imposto pela gramática da língua. E não tardou para que esta palavra
logo se tornasse, apesar de aceita gramaticalmente em designação pejorativa indicando
o destreinado com o exercício poético.
Desde então,
instalou-se um impasse nominativo que ainda contemporaneamente reverbera. A
umas, por oposição ao tom pejorativo do poetisa,
preferem que sejam reconhecidas como poetas, um vocábulo neutro, indistinto e,
portanto, inclusivo. Tal preferência está muito distante de se perder do cariz
ideológico que passou a servir na designação da presença feminina na escrita de
poesia como poetisa. Revalida-se a ideia de que na literatura não se prestam os
sectarismos; arte da linguagem, é tarefa delas e deles o trabalho com a palavra.
Mas, ainda
há quem prefira o poetisa como designativo. Não por obediência ao padrão
normativo gramatical que estabelece a marca desinencial -a para a marcação do feminino. Neste grupo estão aquelas e aqueles
que se empenham em desconstruir a tônica negativa imposta ao termo e sublinhar
que a arte da palavra, embora não se deva distinguir o trabalho delas e deles,
assume feições específicas para os dois.
A explicação
en passant visa afirmar que uma forma
não está dotada de maior importância que outra, mas seus usos dependem de uma
postura ideológica do falante. Impasses à parte, para assinalar duas datas que
formam ponto alto no mês de março, o dia 8, em referência às mulheres, e o 21,
em referência à poesia, construímos a lista a seguir que funciona como um
panorama da literatura mundial com alguns dos nomes mais significativos de
vozes de grande importância; como o de todas as mulheres, esses nomes contribuíram
de maneira diversa para se refazer, de maneira mais coerente, as fronteiras
daquele tal império regido por homens. A substituição de suas bases que agora o
designe de maneira mais democrática possível: o império da humanidade.
O elemento envolvido
nas escolhas dos nomes que se seguem é este: o do desafio de uma ordem dominante
e que cobraram deles, os dominadores pretensos, direta ou indiretamente, outra posição
ante o trabalho feminino com a palavra. Também demonstram que este não é um
exercício contemporâneo. Aqui estão mulheres que construíram uma obra não perecível
e significativa para os seus contextos e os do fazer poético em geral.
Afresco cuja figura é comumente designada por Safo. O retrato é de uma rica mulher de Pompeia. |
Safo (630 a. C. 580 a. C.) O que se
sabe sobre ela, embora justamente pela condição inadvertida de não tomar o
conteúdo literário como biográfico, é suposto do que restou de sua obra poética.
Os dados mais concretos são os sobre onde nasceu e viveu: em Mitilene, ilha de
Lesbos; e de que teve outros três irmãos, dois deles mencionados no poema “Os
irmãos”, descoberto em 2014. Outras informações são obtidas ainda das obras de poetas
de seu tempo. Ovídio, por exemplo, cita a morte do pai de Safo, Escamandronio,
quando ela tinha sete anos. Contribuiu significativamente para a poesia lírica
a ponto de ser vista pelos gregos, como supõem os estudiosos, como a contraparte
de Homero. Sua obra foi coletada e coligida nos séculos III e II a. C., mas
muito se perdeu, sobretudo os poemas de verve erótica constantemente censurados
pelos copistas medievais. No Brasil, saiu Fragmentos
completos (2017).
Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695).
Uma mulher que abdicou a vida comum para seguir a vocação religiosa com o único
intuito: manter sua condição de livre para a ciência, o pensamento e a literatura.
Foi a última dos grandes nomes do Século de Ouro da Literatura de Língua
Espanhola. Transitou entre a poesia de salão, realizada para homenagear amigos
e para as celebrações religiosas, e a poesia filosófica, que ela próprio diz
ter sido sua obra livre. El sueño é integra
a bibliografia em questão; trata-se de uma alegoria sobre a ânsia de saber, o
voo do pensamento e sua consequente queda trágica. A obra de Sor Juana é
bastante rara no Brasil. O que se tem de mais recente é antologia publicada em
1989 Letras sobre o espelho,
organizada e traduzida por Teresa Cristófani Barreto e Vera Mascarenhas de Campos.
Emily Dickinson (1830-1886). A poeta
que ficou reconhecida pela reclusão, perfazendo o que culturalmente se
apregoava às mulheres de seu tempo; de Massachusetts, onde viveu, saiu apenas
duas vezes, uma para Washington e outra para Boston. Na vida reclusa compôs uma
obra que só começou a ser melhor descoberta depois de sua morte e pelas
observações de que traziam muitos elementos fundamentais à lírica moderna; a
poeta criou desprezando as fórmulas ou a regularidade convencional utilizada
pela poesia de então. Augusto de Campos, quem traduziu alguns dos seus poemas,
observa que na obra de Dickinson cruzam-se “os traços do panteísmo
espiritualizado, de uma solidão-solitude, ora serena ora desesperada, e de uma
visão abismal do universo e do ser humano. Micro e macrocosmo compactados em
aforismos poéticos”. A antologia Não sou
ninguém, organizada por ele foi reeditada em 2014 com oitenta poetas. Há
ainda a antologias Alguns poemas
(2006) com tradução de José Lira e Loucas
noites (2010) com tradução de Isa Mara Lando.
Gabriela Mistral (1889-1957). Foi a
primeira mulher latino-americana e poeta a receber o Prêmio Nobel de
Literatura. Era 1945, quando vivia no Brasil como funcionária da embaixada do Chile
no país, depois de longa vida já dedicada à educação. Aliás, toda a vida da
poeta, além da poesia, esteve dedicada à reivindicação de bandeiras urgentes
para o bem-estar comum como a educação das mulheres do campo, a reforma
agrária, a preservação da memória indígena, dentre outras pautas. Sua obra há
muito está fora de catálogo no Brasil, mas, daqui, se destaca a antologia Poesias escolhidas (1969).
Anna Akhmátova (1889-1966). A obra da poeta russa é talvez uma das mais
significativas contra o silenciamento. Quando começou a escrever, ainda
criança, precisou usar o nome do bisavô para esconder-se da censura imposta
pelo pai; depois, precisou memorizar muito de sua obra para vencer a censura da
União Soviética comunista – seu marido, Nikolai Gumiliev foi morto pelo regime
e o filho, Liev, esteve preso durante muitos anos. Nesse intervalo, a obra de Akhmátova
foi proibida de ser publicada. No Brasil, a antologia mais lembrada é a
organizada e traduzida por Lauro Machado Coelho que reúne algumas das mais
importantes criações da poeta, como “Poema sem herói”, que ela própria considerou
o coroamento de sua obra.
Cecília Meireles (1901-1964). É vasta a
atividade poética da brasileira. Seu interesse por poesia acompanhou-a desde a
infância. Sua estreia se deu em 1919 com a publicação de Espectros; daí em diante não parou mais. Recebeu, por seu trabalho
– além de poeta, foi professora, cronista e tradutora – os mais importantes
prêmios da cena cultural do seu país, como o de Prêmio de Poesia Olavo Bilac concedido
pela Academia Brasileira de Letras (1939), o Jabuti (1963) e o Machado de
Assis, também da ABL (1965), pelo conjunto da obra. Toda sua obra poética foi
reunida em Poesia completa (2017) com
organização do crítico André Seffrin.
Hilde Domin (1906-2006). Cedo imigrou
para Roma por motivos políticos. Depois de seis anos na Itália, o acordo entre
Hitler e Mussolini que abria a perseguição aos inimigos do nazismo naquele
país, levou-a a exilar-se na Grã-Bretanha onde trabalhou como professora de
idiomas; depois viajou para os Estados Unidos e República Dominicana. Começou a
escrever só em 1951, depois da morte de sua mãe – assinava os textos com o
pseudônimo Domin, uma referência ao exílio em Santo Domingo. Só pôde voltar ao
seu país de origem em 1954 e três anos depois foi quando sua obra começou a ser
publicada, primeiro em revistas. Mas, deixou mais de duas dezenas de títulos,
todos ainda inéditos no Brasil.
Elizabeth Bishop (1911-1979). Considerada
uma das mais importantes poetas de língua inglesa no século XX. Sua obra poética
começou a ser apresentada em revistas, como Con
spirito, que ajudou a fundar ao lado de Mary McCarthy, Margaret Miller e as
irmãs Clark. Depois de viver no Brasil construiu sua obra mais significativa,
pela qual recebeu o importante Prêmio Pulitzer em 1956. Mais tarde recebeu
outras premiações, como o National Book Award e o National Book Critics Circle;
foi a primeira mulher a receber o Prêmio Literário Internacional Neustadt.
Dentre as publicações da poeta no Brasil está a antologia Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop (2012) organizada e traduzida
por Paulo Henriques Britto.
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004). Autora de uma vasta obra que inclui títulos de literatura
infantil e ensaios, foi um dos nomes que fizeram frente à ditadura em seu país,
exercício que reverberou em parte de sua poética também fortemente alimentada
pelo ideal artístico grego. A poeta portuguesa recebeu inúmeros prêmios, entre
os quais se destacam o Prêmio Camões (1999) e o Reina Sofía (2004). Pouco publicada
no Brasil, sua obra poética começa a ganhar fôlego no país a partir da aparição
da edição da Revista 7faces em homenagem à sua obra publicada em 2015. Em 2018,
outra antologia, com mais poemas foi publicada – Coral e outros poemas – com organização do poeta Eucanaã Ferraz. No
mesmo ano sai a edição com a obra completa, já publicada em Portugal em 2005.
Wislawa Szymborska (1923-2012). A poeta
polonesa ganhou, em 1996, o Prêmio Nobel de Literatura, galardão que a levou
ser reconhecida mundialmente. Seu primeiro título foi publicado em 1949 e então
censurado pelo regime comunista. Testemunha dos grandes horrores do século XX,
pôde, ainda assim, compor uma obra livre de sentimentalismos e voltada para uma
objetividade e uma simplicidade que em muito destoa do início do seu projeto
poético, então marcado pelos ventos das vanguardas. No Brasil, foram editadas
até agora duas antologias – Poemas (2011)
e Um amor feliz (2016) –, ambas com
tradução de Regina Przybycien.
Ligações a esta post:
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