Até que as pedras se tornem mais leves que a água, de António Lobo Antunes

Por Pedro Fernandes



Há um tema que fez António Lobo Antunes reconhecido dentro e fora de seu país: a denúncia da empreitada fratricida da guerra colonial na África. Os livros de estreia publicados quatro anos depois da Revolução dos Cravos, Memória de elefante, Os cus de Judas e Conhecimento do inferno, se desenvolvem em torno da mesma condição do trauma e do horror da empreitada megalomaníaca do estado ditatorial português na manutenção de seus domínios em colônias no continente africano no que só significaria o emprego vazio de força humana e de recursos financeiros cujas sequelas até hoje são visíveis em Portugal.

O tema da guerra colonial nunca deixou de servir ao escritor e como um regatinho se infiltra mesmo naqueles romances cujo interesse é a apresentação de outro drama caro à sua literatura: o do homem no tempo dos paradoxos terminais. Este tema, aliás, assenta perfeitamente à condição portuguesa pós-colonial, visivelmente marcada por uma ressaca moral, pelo sepultamento de determinados modelos de corte imperialista, o que resulta num mergulho melancólico sobre sua própria história a fim de catar outras possibilidades de ser e estar à mediada que tenta compreender os miasmas do passado.

Agora, que o tema em questão fosse novamente trazido com a mesma força dominante dos primeiros romances, isso é algo que há muito não se verificava. Neste que é o mais recente romance de António Lobo Antunes, todos os fantasmas conhecidos nas obras com que estreou na literatura, adquirem novas feições e reaparecem de maneira ainda mais assombrosa e cruel. Um livro que se lê de sangue nos dentes. Esta é, talvez, sua obra mais violenta – como se tivesse agora a necessidade de exorcizar toda sorte de horrores da guerra que ainda tenha ficado pairando entre a consciência e a inconsciência durante todos esses anos. Ninguém volta são de lugares e condições em que a barbárie se assume com toda sua força.

No intervalo que vai dos romances de estreia a este publicado em 2017, também muita coisa mudou no trabalho literário do escritor português. O abandono do registro psicológico e memorialístico à maneira do relato de divã, ou da rememoração, marcadamente tomados por uma caudal de sensações trazidas à modelação da narrativa pela contínua justaposição adjetiva que dava ao discurso romanesco uma espécie de registro barrocizante, colocou em seu lugar a construção de uma prosa substantiva que parece almejar o até então impossível de se realizar – aquilo que o próprio criador registrou numa crônica com a mesma expressão enunciada neste título de agora. Isto é: fazer da prosa um substrato pesado e ao mesmo tempo capaz de, qual uma máquina de voar, flutuar. Ninguém tentou isso antes, embora se tenha enunciado sobre (leiam Ítalo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio); e dificilmente ninguém repetirá a façanha, porque estilo não se repete e porque a façanha do português é um lugar-limite onde nunca a prosa romanesca – mesmo a engendrada por William Faulkner – ousou pisar.



E como António o faz? Até que as pedras se tornem mais leves que a água é uma obra minada de passagens que podem servir de respostas para esta pergunta e cabe ao leitor buscá-las no curso da leitura. São registros tão bem construídos, de uma beleza tão perfeitamente arquitetada, que deixam no leitor uma contínua reverberação, como se fôssemos charcos a quem alguém nos atira pedras à superfície. Ou para recuperar o conceito clássico proposto por Aristóteles na sua Poética: o efeito catártico vem toda vez que precisamos parar a leitura para admirar com uma exclamação e imediatamente uma interrogação – que belo isso e como pode um texto produzir isso.

Se repararmos bem notaremos à medida que nos afastamos das primeiras obras de António Lobo Antunes mais nos aproximamos da possibilidade de ser o romance uma sinfonia constituída de sons desgarradores – é dela que adquirimos os elementos favoráveis à contínua recriação de uma possibilidade da história e é no percurso da música que somos tocados por acordes cuja melodia atinge-nos em qualquer parte de nosso corpo e daí nos vem o arrepio, o embevecimento.

Numa entrevista para a televisão portuguesa durante o período de divulgação de Até que as pedras se tornem mais leves que a água, o escritor respondeu à pergunta óbvia de todo jornalista diante do autor de uma obra, qual a história deste livro, que este livro não traz uma história. O entrevistador não alcançou a provocação – muitos leitores também não: o que é isto, afinal, de romance sem história, se esta foi, desde sua gênese, comumente atribuída a epopeia grega, um dos seus princípios fundadores; que, mais tarde, quando da constituição da história enquanto verdade de um acontecimento, mais e mais o romance a este princípio se agarra com a ideia de que o narrado é tão crível quanto o fato histórico?

Se aquilo que determina uma história é a realização do acontecimento, então, não é o que se encontra nos romances antunianos desde quando começaram a flertar apaixonadamente com os conteúdos da poesia. O que o leitor encontra é uma extensa colcha de vozes que funcionam enquanto possibilidades, as peças com as quais podemos construir, tomados das sensações, uma história ou histórias. Isto é, cada vez mais estamos próximos daquilo que Jacques Rancière teoriza como escrita inventiva e não enquanto um processo de aplicação de ideias.

No caso de Até que as pedras se tornem mais leves que a água, embora se tenha um início e um desfecho, as duas ações encontram-se em vias diversas do fator ação-reação determinante do modelo tradicional da história. Isto é, não há no desfecho o que poderíamos determinar como consolidação do previsto no início uma vez que pelo menos duas são as possibilidades que este início propicia. Além disso, todos os retalhos que poderiam servir para remontar uma unidade de acontecimento são passíveis de questionamento uma vez se tratar de um embate entre duas figuras que aparentemente estão como regentes das vozes – a filha do oficial e o negro adotado por este.

São duas as vozes que se sobressaem em Até que as pedras se tornem mais leves que a água: a de um retornado da guerra colonial em Angola e a de um homem negro que foi trazido por este retornado e criado como parte da família. Não é preciso dizer que estas duas personagens se constituem em tenso fio de forças, visto que, o jovem é uma testemunha ocular do horror praticado pelo pai no conflito, desde a morte do verdadeiro pai, os abusos sofridos pela mãe e também sua trágica morte. A encenação dessa relação atravessada de ódios, silenciamentos e depois, quando da chegada desse negro à família portuguesa, de provocações, humilhações, é assinalada pela festança tradicional – em vias de desaparecimento – da matança do porco. Os dois episódios guardam relações de sentido e estruturais que não convém relatar aqui sob pena de macular o segredo do texto para o leitor.   

Bem sabemos dessa estratégia formal antuniana: a recuperação de uma informação logo serve à incorporação de outra cujos sentidos se complementam e se ampliam, um e outro, em várias direções. Ou seja, não se trata de um mero efeito de desviar a atenção do leitor para outro foco narrativo e este, costumeiramente preso às certezas unilaterais logo sentir-se alheado numa pirotecnia verbal. Trata-se, isto sim, de uma estratégia criativa cujo intuito é o do alargamento das fronteiras de significação propiciadas pela língua literária.

Um exemplo, é que, no interstício dos frangalhos de memória deste ex-combatente e deste africano, são as intersecções forjadas pela narrativa com as vozes de outras personagens que compõem o que na ausência de outra palavra chamamos de núcleo narrativo ou ainda a pluralidade de compreensões possíveis em torno dos termos que dão título à obra. A mulher do oficial padece do que ficou diagnosticado como pedras nos rins cuja possibilidade de cura é avistada pela necessidade do consumo de água até que tudo se dissolva, ou se torne mais leve que água, e, logo então, provenha a cura. O outro sentido que esta expressão trata de aguçar já dissemos acima: confunde-se com o trabalho do burilar da palavra (a pedra) pelo escritor. A imagem em torno da qual se desfia os rizomas de narrativa ganha múltiplas projeções. Sim, António lida com outra complexa possibilidade relacional do verbal – a correlação imagética.  

Entre a filha e o pai não se preenche a melhor das forças de união: filha única durante largo tempo ela nunca o perdoa por ele trazer um negro para fazê-lo viver como membro da família; odeia as reuniões de família, a hipocrisia das relações, os valores da tradição, os modelos pré-determinados. Se concorda com o ranço que sustenta a relação do irmão adotivo para com o padrasto funciona como uma espécie de sombra que se mostra desejosa de que essa força subterrânea emerja e sirva, para ela, da vingança que se vê incapaz de cometer. Mas quer, por toda força, que seja sua verdade e não a do irmão o que prevaleça enquanto possibilidade histórica.  

Como não é apenas o flerte com a música – é com a imagem – não é apenas com os textos poéticos que a literatura de António Lobo Antunes ensaia aproximações com o interesse de propiciar desconstruções e alargamento de fronteiras para a prosa. Um passeio pelos títulos de sua obra é capaz de mostrar melhor isso. Com Até que as pedras se tornem mais leves que a água, por sua vez, o escritor estabelece estreito diálogo com a tragédia grega. Embora todo o passado das vozes que se atravessam e dão tessitura à obra, o do oficial, do africano, da mulher com pedras nos rins, da filha, há apenas um episódio central que é a matança do porco e a reunião da família em torno dessa celebração. Este episódio, aliás, abre a obra como se um prólogo e nele contém a possível história que levou à situação relatada, quer dizer, às situações possíveis. No mais, toda a obra se constitui do embate de vozes como se fosse seu interesse produzir no leitor uma posição sobre a condição das figuras principais da tragédia. É impossível não permanecer com a ideia formada desde o início de sua obra: a de que não estamos diante de um escritor qualquer, estamos diante de António Lobo Antunes.
          

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