Mother!, de Darren Aronofsky
Por Pedro Fernandes
Mother! é um longo poema alegórico. E o
poema que dá forma ao imbróglio cinematográfico se faz no seu interior. Isto é,
estamos diante de um meta-poema. Logo, o poema é, a um só tempo, ele próprio, o
filme e a representação simbólica do genesíaco; esta, por sua vez, designa tanto
a criação poética, quanto a fílmica, como a criação do mundo. Aronofsky
constrói, assim, um rico jogo de matrioscas no qual cada camada revela, por sua
vez, uma poderosa metáfora sobre nós mesmos, desde o mito bíblico da criação à
ruína apocalíptica.
Além das
metáforas e do vasto conteúdo simbólico sugerido – o próprio filme conforma um
símbolo – é necessário notar a forma circular, a desidentificação das
personagens e a descontinuidade do que, na ausência de um designativo melhor
elaborado, chamaremos de enredo. Distinguiremos aqui não o motivo principal, a criação,
nem as simbologias diversas propositalmente forjadas pela unidade poemática. E
sim o símbolo principal que estabelece uma amálgama entre o conjunto disperso
de imagens e que, não sem razão, nomeia o próprio filme: a mãe.
A escolha de
Aronofsky deste elemento não é gratuita. Para um filme que se mostra como uma
revisão crítica sobre um modelo ou ordem social estabelecida, desde os tempos
imemoriais, em torno do culto ao macho (o poeta, nesse caso, assume bem essa
função, já que a Mãe lhe dedica todo o zelo, amor e cuidado pela casa e depois
todos que dele se aproximam o idolatram), não restaria outra imagem a servir de
contrapeso se não a da mulher.
Mother! reanima toda a sorte de
elementos que demostra ser este modelo civilizacional fadado ao fracasso, porque
ora se guia pelo cego potentado da razão, ora pela ganância de ser e ter o
máximo possível, ora porque ignora um elemento predeterminante de tudo – aquele
capaz de ver o mundo para além das aparências, capaz de provê-lo desde suas
menores partes. Nesse ponto, impossível não associar essa figura feminina às
mulheres criadas pela literatura de José Saramago já que numa e noutra
representação elas são uma possibilidade para a revisão do mundo. Pensávamos
nisso enquanto víamos o grande esforço da Mãe na reconstrução da casa, na manutenção
da ordem depois da chegada dos invasores – os que poderíamos tratar por
primeiros, segundo e terceiros habitantes – ou na sua capacidade de ver o
interior da casa e sentir da pulsação do espaço a existência e seu apagamento.
Na construção
das simbologias em torno da mãe, Aronofsky elege os mitos propostos ou formados
a partir de um livro em grande parte definidor e mantenedor desse modelo que aí
está. Primeiro, a Mãe de todas coisas
viventes, a que zela pela ordem do paraíso, o mito pagão da Mãe Terra; depois a
confluência entre habitante e espaço, a figura que é tentada a conhecer o fruto
da vida; depois a Mãe caída em pecado mas que concebe um salvador capaz de redimir
todos os pecados do mundo; a estas, soma-se o grande grito que este poema
propõe e que poderíamos descrever como a formação em contraponto ao grande mito
contemporâneo à história do homem depois de Cristo; isto é, à Mãe amorosa se
contrapõe a Mater dolorosa.
Contra todas
elas sempre pesou uma determinante: a da mulher apagada, silenciada,
desrespeitada nos seus próprios interesses, negada nas suas vontades, tratada
enquanto objeto de reprodução e ódio, ora reduzida ao culto da musa, da pulsão
da criação, ora tornada material de escárnio. Embora haja sinais de sua
presença em toda história, ela é sempre a coadjuvante que todos ignoram. E nas
ocasiões de revolta, a que a todo custo precisa ser contida.
Não é apenas
a retomada gratuita dos episódios e símbolos bíblicos. É a proposição de uma
interpretação acerca das interpretações feitas verdade e tornadas cada uma em modelos
de opressão de homens sobre mulheres. Embora contra isso pareça não existir uma
saída aparente – se há, o filme não se interessa em apresentá-la porque está
mais interessado em destacar os silenciamentos às mulheres, os impostos e os autoimpostos
– há algumas revisões de interpretação fundamentais para não passar despercebidas
por aqui.
Noutra
ocasião deste texto falamos sobre o amor. E há pelo menos duas de suas variantes
que se apresentam em Mother! O
manifestado pelo gesto e pela ação e o manifestado
pelo perdão e pela compaixão. Este forjado pelo homem e aquele pela mulher. Não
é necessário problematizar para saber que, numa sociedade pensada por homens o
que se tentou prevalecer foi o segundo modelo. Um modelo cristão. Este,
entretanto, é aqui apresentado com o grande desagregador; porque baseado num
modelo de culto, idealista demais, esse amor do perdão e da compaixão não se
sustenta enquanto propiciador comunitário da humanidade porque nega
peremptoriamente o que verdadeiramente somos, sujeitos da ação e idiossincráticos.
É significativo
que o símbolo da redenção seja simplesmente produto de uma vontade imposta e
ferozmente devorado. Porque um amor fundamentado na palavra e na valia
idealista, que está para além, é multiplicado à sensaboria dos sentidos e o que
menos se exercita é sua prática, mesmo entre aqueles que se mostram seus sacerdotes.
Idealizado
e, por isso, interpretado de maneira diversa, o amor nascido do perdão e da compaixão
é modo apassivador; logo, não condiz com o que deve ser o propulsor e uma
possibilidade de significar uma mudança entre os homens. O amor-ação está em
toda parte – tal como as mulheres – mas é igualmente não percebido e, se percebido,
negado.
Há muito um
filme não colocava tanto seus espectadores para pensar. Embora tudo pareça
muito óbvio em Mother! – isto é, os
símbolos e as metáforas sejam fáceis de captar desde o início – não é condizente
negar que as camadas de sentido que propõe são variadas e complexamente bem engendradas.
O que aqui apresentou-se foi apenas a superfície de uma delas.
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