Uma pedra no caminho para a modernidade: o projeto drummondiano de humanizar o Brasil
Por Thomas Sträter
Os poemas do
início da formação artística de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), os dos
anos vinte e trinta, ainda refletem a difícil busca da estética do jovem poeta,
suas incertezas e angústias, seu entusiasmo e suas idiossincrasias. Embora
estes textos tenham permanecido até hoje como os mais conhecidos do poeta
mineiro, carecem do amadurecimento característico de sua fase posterior. Sem dúvida
neles estão definidos mais nitidamente os problemas estético-sociais de um
poeta latino-americano à procura do seu lugar dentro de sua cultura específica.
Em 1924, um
grupo de artistas brasileiros, chefiados pelo assim chamado papa do modernismo,
Mário de Andrade, viajou em busca das raízes do Brasil para o estado de Minas
Gerais, famoso por sua arquitetura barroco-colonial. Na capital, Belo
Horizonte, a caravana era esperada ansiosamente pelos jovens poetas mineiros;
entre os quais se encontrava o jovem poeta de vinte e um anos, Carlos Drummond
de Andrade. Numa crônica autobiográfica publicada na coletânea Confissões de Minas (1944), conta
Drummond o encontro destas poucas mas decisivas horas com “um homem maduro”,
que assumiria mais tarde, através de suas cartas, a função de orientador artístico
de toda uma geração de intelectuais brasileiros:
“Havia
excesso de boa educação no ar das Minas Gerais que é o mais puro ar do Brasil,
e os moços precisavam deseducar-se, a menos que preferissem morrer exaustos
antes der ter brigado. Para essa deseducação salvadora contribuiu muito, senão
quase totalmente, um senhor maduro, de trinta e um anos (quando se tem vinte,
os que têm vinte e cinco já são velhos imemoriais), que passou por Belo
Horizonte numa alegre caravana de burgueses artistas e intelectuais, adicionada
de um poeta francês que perdera um braço na guerra e andava à procura de
melancia e cachaça [este poeta era Blaise Cendrars, que escreveu em vários
livros sobre sua convivência com os modernistas]. Foram apenas algumas horas de
contato no Grande Hotel; os burgueses agitados regressaram a São Paulo, o
senhor maduro com eles; e de lá começou a escrever-nos” (ANDRADE, 1971, p.548).
Mário de
Andrade e seu aprendiz Drummond mantiveram uma intensa correspondência durante
vinte anos, até a morte de Mário, em 1945. Nesta correspondência revela-se a formação
do poeta mineiro dentro dos cânones do modernismo brasileiro e sua reação às exigências
do programa vanguardista. Anos mais tarde, em 1930, Drummond publica seu
primeiro livro, Alguma poesia.
Juntamente com três outras obras, Libertinagem,
de Manuel Bandeira, Pássaro cego, de
Augusto Federico Schmidt, e Poemas,
de Murilo Mendes, ele marca o surgimento dos poetas líricos, a chamada geração
de 30, uma segunda geração modernista que, nas palavras de Mário, deixou o “ismo”
pretensioso e se entende simplesmente como moderna.
O poeta
mineiro – nascido em 1902 na tantas vezes evocada cidadezinha provinciana de
Itabira – dedicou seu livro a Mário de Andrade, “meu amigo”. Este, por sua vez,
num balanço a respeito destes autores, destaca Drummond, pelo uso do ritmo,
como o mais prometedor dos quatro. O juízo de Mário significou uma consagração
prematura do poeta: “Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo, é ao mesmo tempo
extremamente inteligente e sensível, rasgos que se contrapõem com ferocidade;
de todo este combate está feita sua poesia” (ANDRADE, 1982).
Como leitor
muito perspicaz e sensível, não lhe passou despercebido, sob a superfície das
palavras coloquiais e das temáticas nacionalistas, este “feroz” dualismo. Raciocínio
versus sensibilidade,
intelectualidade versus corpo e sexo,
província versus metrópole, indivíduo
versus sociedade. Observa-se que
conceitos opostos lutam entre si em quase todos os poemas do livro e nos muitos
livros em verso e prosa a serem publicados no futuro, produzindo uma alta tensão
e refletindo, desta maneira, a situação complicada mas sintomática do poeta,
situado entre a vanguarda, o compromisso e a etnicidade, esta ˙última entendida
como o elemento nacional.
Fora o início
de uma amizade, o encontro de 1924 produziu como “primeiro efeito evidente [o]
de forçar Drummond a apreciar seu próprio país”, como destacou John Gledson no
seu livro sobre a poética de Drummond (1981: 33). Nos ensaios publicados antes
de abril de 1924, o Brasil aparecia unicamente como país importador de ideias já
superadas na Europa. É bastante reveladora a confissão de Drummond numa carta a
Mário (citado e criticado pelo destinatário numa carta a Drummond): “Pessoalmente
acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus
pouco civilizados. [...] Acho o Brasil infecto. Perdoe o desabafo que a você, inteligência
clara, não causará escândalo” (ANDRADE, 1982, p.13).
A erupção da
revolução modernista na cultura brasileira a partir da notória Semana de Arte
Moderna de 22, em São Paulo – cujas consequências marcam decisivamente ainda
hoje, e supostamente marcarão ainda por muitos anos, a cultura brasileira –,
reflete um movimento duplo, quase paradoxal, da produção artístico-intelectual
no Brasil. Ao mesmo tempo em que o modernismo brasileiro busca atualizar os
elementos nacionais, sente-se atraído pelas vanguardas europeias.
O grande
projeto dos modernistas era criar uma arte autenticamente brasileira, que
lograsse estar no mesmo nível estético dos modelos europeus e norte-americanos,
sem cair na armadilha de uma pura imitação. Para evitar este perigo, de certo
modo uma aporia, os participantes do movimento andaram por diversos caminhos.
Carlos Drummond de Andrade – hoje unanimemente considerado o maior poeta
brasileiro e na opinião de Luiz Costa Lima “o último poeta ‘modernista’ do século
passado” – ficou famoso por encontrar uma pedra em seu caminho para a
modernidade.
O antológico
poema “No meio de caminho” foi publicado pela primeira vez no órgão mais
importante dos modernistas, a Revista de
Antropofagia, em julho de 1928, e, dois anos mais tarde, no livro de estreia
do jovem poeta de Itabira, embora os críticos concordem que o livro foi escrito
já antes de 1924, ano decisivo para Drummond pelo seu contato com o grupo
modernista:
No meio do
caminho tinha uma pedra
tinha uma
pedra no meio do caminho
tinha uma
pedra
no meio do
caminho tinha uma pedra.
Nunca me
esquecerei desse acontecimento
na vida de
minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me
esquecerei que no meio do caminho
tinha uma
pedra
tinha uma
pedra no meio do caminho
no meio do
caminho tinha uma pedra
(ANDRADE, 1971,
p.12).
Obviamente a
estranha pedra no meio do caminho tem sua história literária (“nel mezzo del
cammin di nostra vita”, primeira frase da Divina
Commedia de Dante) e uma função metafórica, apesar de seu realismo
cotidiano e da recusa a ser outra coisa senão uma pedra. Citado centenas de
vezes por seus intérpretes, ganhou qualidade de fórmula proverbial, mágica ou
de conjuro, que todo mundo no Brasil conhece, rivalizando em popularidade
apenas com outro poema antológico de Drummond, “José”, de 1942.
Contudo, é um
poema-chave da sua obra. Este obstáculo petrificado simboliza a questão crucial
para o homem e o poeta Drummond, que autodefiniu seu lamentado gauchismo no mundo, sua alienação, na expressão
do anjo torto. O problema
artístico-estético se colocou da seguinte forma e, presumivelmente, não só para
ele: como percorrer, sem tropeçar, o caminho pedregoso para a modernidade? O obstáculo,
como uma das ideias recorrentes de toda a obra de Drummond, já foi destacado
por Antonio Candido em seu magistral ensaio “Inquietudes na poesia de Drummond”
(1977).
O caminho pedregoso funciona como imagem poética da Terra Brasilis e do poeta brasileiro
moderno, no caso específico, Drummond. A pedra imóvel e irritante seria então a
Europa, com sua influência atual e passada, a tradição nefasta de um país ainda
sob o signo da colonização. O crítico Alfredo Bosi analisou em seu grande livro
Dialética da colonização a problemática
inerente a um país como o Brasil, que aspira à mais avançada expressão nas artes
e na tecnologia, enquanto muitas estruturas de sua vida social, política e econômica
revelam traços históricos da dependência. De qualquer forma, a pedra-obstáculo
dificulta ou impede a passagem para a modernidade brasileira. Drummond sublinha
esta tensão no ensaio “Tá-í”, datado da mesma época em que foi escrito o poema:
“Evidentemente não posso negar o passado: um enforcado não pode negar a corda
que lhe aperta o pescoço. Mas tenho o direito de afirmar que a corda está apertando
demais, puxa” (citado por GLEDSON, 1981, p.51). Toda a obra de Drummond pode
ser entendida como a tentativa, senão de se livrar, pelo menos de afrouxar a
corda asfixiante.
Pouco depois da mencionada visita dos paulistas em Belo Horizonte,
Drummond publica, em julho de 1925, um artigo no órgão dos modernistas
mineiros, A Revista, sob o título de
“Para os céticos”. Típico de um programa da vanguarda artística dos anos vinte,
trata-se de um manifesto entusiasmado com as perspectivas do futuro, um manifesto
no qual Drummond reclama a ação como a coisa mais urgente do momento. O ideal propagado
consiste para ele num “franco e decidido nacionalismo” aberto às influências de
fora: “A confissão desse nacionalismo constitui o maior orgulho da nossa
geração, que não pratica a xenofobia nem chauvinismo, e que, longe de repudiar
as correntes civilizadoras da Europa, intenta submeter o Brasil cada vez mais
ao seu influxo, sem quebra de nossa originalidade nacional” (TELES, 1982, p.337).
Como isso pode ser alcançado ele não nos revela. Drummond denuncia como engano
a vaidosa presunção de achar que com a república instalada estariam destruídos
os jugos colonial e escravista, sendo dever dos brasileiros, segundo ele, não
se conformar, para o que defende veementemente um engajamento político e intelectual,
um compromisso que não permita cruzar os braços frente aos problemas nacionais.
Termina sua exposição com um apelo: “Resta-nos humanizar o Brasil” (p.338).
Na verdade, humanizar é uma
palavra pouco usada nesses tempos mais comprometidos com ideias políticas ou
estéticas radicais do que com conceitos ético-morais ainda vagamente definidos.
O dicionário Aurélio explica assim o termo: “1. Tornar humano; dar condição
humana a; humanar. 2. Tornar benévolo, afável, tratável; humanar. 3. Fazer
adquirir hábitos sociais polidos, civilizar”. Lembrando a queixa sobre o
“inculto” e “pouco civilizado” a respeito de seu país, este último significado,
no sentido de buscar uma humanitas em
solidariedade, é o que Drummond tem em mente: trata-se de um refletido conceito
antropocêntrico ligado à consciência humana e cujo objetivo é a valorização do
homem, excluindo todo tipo de alienação. Um desdobramento ético-cultural das
forças humanas através da forma estética mais elevada, unido à compaixão e ao
sentimento de humanidade. O estabelecimento de uma humanidade (humanitas) como objetivo da humanização
de um grupo de indivíduos emancipados num país como o Brasil é um ideal da
Ilustração, que ainda está por ser plenamente realizado. Tal ideal foi definido
por Kant com ênfase no elemento social imprescindível.
Esta humanização se manifesta nos poemas drummondianos que tratam do
problema cultural-geográfico crucial do nacional e do estrangeiro. A relação
entre os dois conceitos encontra várias manifestações no tratamento lírico do
Brasil, da nacionalidade e do mundo, especialmente em suas primeiras obras: Alguma poesia, de 1930, e Brejo das almas, de 1934, pertencentes à
fase pós-heroica do modernismo. Nos livros de poemas a partir de Sentimento do mundo, de 1940, e depois
com José e A rosa do povo, de 1945, a preocupação crítica com o nacional perde
em quantidade em favor da temática do compromisso político-social.
A problemática desta procura de uma autodefinição como artista de
periferia, longe dos centros culturais e envolvido no projeto de humanização,
fica muito evidente, por exemplo, no poema “Europa, França e Bahia”, também do
primeiro livro Alguma poesia, que
começa ainda com um tom parnasiano, à maneira de Olavo Bilac: “Meus olhos
brasileiros sonhando exotismos”. A seguir o eu-lírico de Drummond enumera as
diferentes nações europeias, começando pela França e Inglaterra [...], e
critica tanto a repressão do pós-colonialismo como a monarquia, para ele
ultrapassada e ridícula:
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas
Formam um tapete para Sua Graciosa
Majestade Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.
No decorrer do poema, nem a Alemanha pré-fascista, nem a Itália de
Mussolini, nem a incomprometida e neutra Suíça chegam a despertar o interesse
do poeta interiorano, cujos “olhos brasileiros se enjoam da Europa”. Nem a Rússia
revolucionária, que abriga o mausoléu de Lênin, oferece uma perspectiva a um
artista dos tristes trópicos. Para se livrar da náusea é necessário dirigir o
olhar para a própria terra brasileira. Num saudosismo entre o patético e a
piada, favorecido pelos modernistas, Drummond cita os famosos versos do
romântico abolicionista Gonçalves Dias, quando de seu exílio parisiense:
Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a “Canção do exílio”.
Eu tão esquecido da minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
Onde canta o sabiá!
(1971, p.6).
Aqui é evidente uma certa autocrítica de alguém que se sente culpado
porque esqueceu seu país. Este poema é muito representativo da época e revela o
doloroso processo de busca do artista de um caminho viável para a própria
produção. Num outro poema do primeiro livro, cujo título bem expressivo alude à
mesma problemática, “Também já fui brasileiro”, Drummond brinca com estereótipos
do brasileiro de pele morena, que é musical e vive atrás do volante de um automóvel
importado, distanciando-se de qualquer nacionalismo e consequentemente
renunciando – irônica e ritmicamente – a
virtudes literárias como a ironia e o ritmo:
Eu também já fui brasileiro
Moreno como vocês
Ponteei viola, guiei forde
E aprendi na mesa dos bares
Que o nacionalismo é uma virtude
Más há uma hora em que os bares se fecham
E todas as virtudes se negam.
[...]
Eu irônico deslizava
Satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não
(1971, p.5)
Poucos anos mais tarde, em Brejo
das almas, encontramos um Drummond menos saudoso, agora aparentemente desiludido
de sua procura pelo Brasil: seu crítico “Hino Nacional” pré-tropicalista, mas
longe de qualquer ufanismo (um exagerado nacionalismo estivera em voga no
Brasil dez anos antes: “Porque me ufano do meu país”), faz um levantamento do
chamado país do futuro. Seu país natal tornou-se Brasil sofrido, escondido atrás
das florestas, dormindo e sonhando. No final, depois de várias exortações típicas
de um manifesto, com vários “precisamos”, chega à conclusão inesperada, mas
inevitável, de que “Precisamos esquecer o Brasil!”, porque o Brasil-Pindorama,
tantas vezes louvado, exaltado e cantado pelos artistas, não existe, é um
fantasma:
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
(1971, p.36)
A pergunta que fica no ar, sem resposta, pode ser considerada como
ponto de partida para a futura obra de Drummond. O nacional, o Brasil e os
brasileiros, incluindo a vanguarda, o compromisso e a etnicidade, já não são
tomados como realidades indiscutíveis. O Brasil e os brasileiros ainda estão
por ser criados, definidos e descritos por ele e por outros. A interpretação do
Brasil e dos brasileiros deve partir de uma incondicionalidade, focalizando
antes a procura como próprio objetivo.
O poema “Canto brasileiro”, do livro As impurezas do branco, de 1973 – cujo título já expressa a condição
de ser brasileiro – resume os pensamentos de Drummond. Todas as palavras-chaves
estão aí: caminho, Brasil, popular, mundo, brasileiro, homem, amor, humano:
ou sou eu mesmo o caminho a procurar-se?
Brasa sem brasão brasilpaixão
de vida popular em mundo aberto
à confiança dos homens.
Assim me vejo e toco: brasileiro s
em limites traçados para o amor humano.
[...]
Brasileiro sou,
moreno irmão do mundo é que me entendo
e livre irmão do mundo
me pretendo. (Brasil, rima viril de liberdade.)
(1982, p.296-98).
Drummond exerceu durante toda a sua vida uma grande influência, seja
direta ou indireta, sobre outros autores brasileiros. Mesmo quem não leu seus
poemas encontrou-se com o mundo do poeta mineiro na imprensa. Carlos Drummond
de Andrade exerceu como colunista um ofício que é chamado no Brasil de
cronista, tendo criado uma obra em prosa quantitativamente muito maior do que
em poesia. Escreveu, por exemplo, durante décadas quatro vezes por semana para
o Jornal do Brasil miniaturas de
textos que lembram na literatura de expressão alemã um Kurt Tucholsky ou um
Peter Altenberg. Bastante popular ficou sua figura do joão-ninguém brasileiro,
um herói cotidiano chamado João Brandão, que compartilha características com o
próprio Drummond. Antonio Candido lembrou que “Na sua despretensão, / a crônica
/ humaniza”, pois, “num país como o Brasil, onde se costuma identificar superioridade
intelectual e literária com grandiloquência e requinte gramatical, a crônica
operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o ponto máximo
nos nossos dias” (1980, p.5).
Quase meio século depois, um de seus mais atentos leitores, o cronista
Luiz Fernando Verissimo, fez uma crítica a seu país que lembra a de Drummond.
Na figura do chamado “Popular”, um indivíduo qualquer, descendente, por sua vez,
da personagem drummondiana João Brandão, crônica-título de sua primeira coletânea,
denuncia o brasileiro indiferente e passivo frente aos acontecimentos, que não
se intromete nos destinos de seu país, crítica feita meio século antes por
Drummond em seu programa “Para os céticos”. E, assim como Drummond duvidou da existência
de uma quimera chamada “Brasil”, Verissimo vê seus compatriotas apenas como
“americanos imaginários”: “Você e eu somos americanos imaginários. Nossa experiência
do Novo Mundo se deu, até agora, vicariamente, no escuro e seguro recesso das
salas de cinema. Não vivemos nossa história; nós a assistimos” (1984, p.70).
Podemos acrescentar o drummondiano “de braços cruzados”. Numa crônica com o
mesmo título, Verissimo compara a conquista do território norte-americano
refletida nos filmes de western com a
do Brasil:
Claro que o “western” clássico não representou para a imaginação
norte-americana o mesmo que representou para a nossa. Lá a trajetória
glorificada do herói desbravador codificava, ao mesmo tempo que absolvia, a violência
da conquista. Primeiro na literatura popular e depois no cinema, o “western”
elevado a categoria de mito consagrou-se como a alegoria oficial para a grande
e brutal aventura americana. [...] É a nossa vez de subir ao palco a fazer
história. O Novo Mundo está conquistado. Falta ajustá-lo (1984: 73-74).
O projeto de humanizar o Brasil não acabou, ainda está por se fazer. A
ação ou, para usar as palavras de Theodor W. Adorno, as intervenções (“Eingriffe”)
na vida social são hoje mais necessárias do que nunca. Os americanos
imaginários, que são na verdade os brasileiros, devem assumir a responsabilidade
pelo futuro do País. O terreno do Brasil está conquistado, falta ainda o
“ajuste”. Verissimo escreveu esta crônica-ensaio durante a repressão da
ditadura militar.
Depois das experiências desiludidas do século, ao longo do qual os países
mais civilizados testemunharam a bancarrota do conceito de humanidade como ideal, Verissimo já não tem coragem de falar de um
conceito tão marcado como o de humanizar,
como o fizera Drummond. Em sua concepção, ele entende a sociedade menos
antropocentricamente do que Drummond e sua “Grande máquina do mundo”, para
citar uma imagem poética do autor de Os Lusíadas
que virou o título de um poema de Drummond. Para Verissimo, os mecanismos de convívio
são defeituosos, mas reparáveis, e a sociedade ideal seria a sociedade
humanizada em todos os sentidos.
Na obra de Drummond este processo de humanização percorreu quatro estágios:
a primeira fase, de Alguma poesia e Brejo das almas, era a de revolta contra
os modelos retóricos do passado, em que a poesia está mais ao rés-do-chão; a
segunda fase, de Sentimento do mundo,
José e A rosa do povo, na qual a poesia reflete um compromisso político e
social, focaliza os problemas éticos e morais, como é o caso de “Mãos dadas”. A
compaixão do homem desumanizado marca esta etapa.
Depois da experiência desastrosa da Segunda Guerra Mundial e da crise
espiritual dos anos 40 e 50, os temas políticos e sociais empalidecem
temporariamente na obra lírica de Drummond, porém não em sua prosa. Sua poesia
se baseia na ideia fundamental da existência do homem e de sua condição. Nos
chamados Novos poemas delineia-se
claramente esta nova tendência. Correspondendo ao conteúdo metafísico do
destino do homem e sua existência, seu verso ganha qualidades clássicas em
ritmo e forma. Sempre presentes em sua obra, o erotismo e o amor carnal – “Sejamos
pornográficos, docemente pornográficos”, de Brejo
das Almas – são postos em primeiro plano, embora de maneira camuflada, na
quarta fase de sua poesia e a partir de Lição
de coisas. Tudo indica que, junto a este interesse pela estrutura orgânica
nasce aí uma nova tendência para o experimentalismo. Assim Drummond fecha o círculo,
voltando à sua produção inicial dos anos vinte (O’Brien 1986, p.230).
Em seu grande projeto de humanizar o Brasil, na época formulado ainda
com certa ingenuidade, Drummond inclui não só um ideal ético-moral, mas também,
nas entrelinhas, uma faceta estética. A humanização traz em si a exigência de
humanizar a poesia, no sentido de escrever não só para uma elite erudita, mas
também para o povo, sem renunciar a um alto nível filosófico-estético. Por isso
Drummond foi visto por seus intérpretes como o primeiro poeta moderno e ao
mesmo tempo popular. Pouco antes de sua morte, a escola de samba da Mangueira
ganhou o primeiro prêmio do desfile carnavalesco com um samba inspirado em sua
poesia. Sua obra poética, assim como sua prosa, fizeram-no conhecido em todos
os recantos do território brasileiro por pessoas de várias camadas sociais.
Na expressão “humanizar o Brasil” estão sintetizados ao mesmo tempo o
problema estético da vanguarda periférica sul-americana, o compromisso político-social
e a etnicidade brasileira. Não que Drummond tenha conseguido resolver os
problemas do homem do século vinte, mas em sua obra explorou a fragilidade do indivíduo
sob o perigo da alienação. A pedra continua no meio do caminho, tanto para o
Brasil como para todos nós.
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A seguir, preparamos um catálogo com fotografias, poemas e um texto sobre a obra de Drummond
Referências: ANDRADE, Carlos
Drummond de. Obra completa. 2 ed. Rio
de Janeiro: Aguilar, 1967 •
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião:
10 Livros de Poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971 • ANDRADE, Mario
de. A lição do amigo: Cartas de Mário
de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1982 •
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999 •
CANDIDO, Antonio. “Inquietudes na poesia de Drummond”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 93-122 • CANDIDO,
Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. Prefácio a Para Gostar de Ler. São Paulo: Ática,
1980, vol. 5. • Gledson,
John. Poesia e poética de Carlos Drummond
de Andrade. São Paulo: Duas Cidades, 1981 •
O’BRIEN, Pat. “Carlos Drummond de Andrade: An Overview”. In: WILLIAMS,
Frederick G.; PACHA, Sergio (Org.): Carlos
Drummond de Andrade and his Generation. Santa Barbara: Jorge de Sena Center
for Portuguese Studies, University of California/ Bandanna, 1986, p. 225-231 • TELES, Gilberto
Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo
brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e
conferências vanguardistas, de 1857 até hoje. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 1982.
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