O homem sem doença, de Arnon Grunberg

Por Pedro Fernandes




A reinserção de Arnon Grunberg entre as obras mais recentes publicadas no Brasil corrige um grave desvio que colocava leitores em condição distanciada de uma das melhores prosas da literatura contemporânea. Desvio porque, depois dois primeiros títulos editados por aqui – Dor fantasma e Amsterdã Blues – já passara uma década que a obra do escritor holandês não era traduzida. Nessa correção, O homem sem doença veio depois de Tirza.

E, argumentos não faltam para justificar a grandiosidade da obra de Grunberg, mas um é suficiente: trata-se de uma literatura que dialoga proximamente com universos como os de Franz Kafka, Samuel Beckett ou os de Herman Broch, que são atmosferas envoltas pela mesmidade da instituição burocrática, do onírico, do homem preso na tessitura de suas próprias ambições e incapaz de romper com o acaso e seus desdobramentos. Isto é, o homem nos seus piores pesadelos e condenado a neles permanecer porque, queira ou não, a vida não é feita apenas do estabelecido pela razão. Aliás, a vida é talvez, sobretudo, acaso; um imbróglio feito de absurdos e mal-entendidos. E mais ainda na atual condição em que a expressão objetiva do mundo só abriu mais o obscuro fosso das relações comunicativas e consequentemente entre os indivíduos.

Muito próximo da estrutura do nouveau roman, algo que na literatura recente é perceptível em obras como a do norueguês Dag Solstad (Romance 11 Livro 18), pela redução da inserção psicológica no romance e ampliação da objetividade no intuito de revelar o impasse dos comportamentos sociais e das relações dos indivíduos com o mundo e o outro, O homem sem doença é a história de Samarendra Ambani, filho de pai indiano que naturalizou-se sueco, e que divide as atividades num escritório de arquitetura com o amigo Dave. Especificamente sobre dois momentos da vida de Sam responsáveis – se o seu desfecho fosse o calculado – pela grande virada profissional; ele anseia alcançar o mesmo posto de respeito com que enxerga o trabalho do também arquiteto Max Fehmer: o projeto de construção de um teatro de ópera no Iraque depois de supostamente vencer um concurso comandado por um figurão apaixonado pela obra de Puccini e, por isso mesmo reconhecer que a deposição de Saddam Hussein significa a possibilidade de abertura cultural do país; e o projeto de construção de uma enorme biblioteca em Dubai, a Meca da arquitetura, onde o emir tem interesse, ao que se sabe, em albergar todas as obras publicadas ao redor do mundo.

As duas condições servem aos sonhos de Sam, quem além de fazer um nome internacionalmente conhecido, espera conseguir dinheiro para levar a irmã Aida aos Estados Unidos e curá-la de uma doença degenerativa que lhe faz, por oposição ao irmão, uma inválida sem grandes sonhos ou a sonhar continuamente com a morte. A natureza de Sam, designada pelo título da obra não se refere apenas a ser o oposto da irmã, nem ao codinome com o qual é reconhecido pelos que acusam-no em Dubai, mas à maneira como ele se vê ante dela e da vida: um homem normal, que assumiu sem saber como pode se portar a chefia da casa tão logo o pai morre numa escalada nos Alpes, um cidadão suíço, arquiteto recomendado e de futuro promissor porque acredita noutra possibilidade para além da usual para a arquitetura, e alguém não preso a quaisquer ideologias políticas ou religiosas – como ele próprio se diz, um “neutro”. Nas duas situações experimentadas – como vítima de emboscada no Iraque e preso primeiro sob a acusação de dirigir bêbado e portar bebida alcoólica onde isso é proibido e depois sob a acusação de manter relações com o terrorismo e a espionagem – é esta sua condição, afirmada tantas vezes ao longo dos interrogatórios aos quais é submetido, que passará por uma revisão ao ponto de colocá-la em xeque. Por exemplo, das sessões de tortura no Iraque descobrirá os desejos sexuais ocultos que o levarão a colocar em prática tão logo volta a Zurique, transformando o insosso relacionamento com sua namorada Nina numa espécie de contínuo exercício da perversão.



Nas duas situações, Sam vê-se num universo de claustrofobia – aliás, esta é uma constante em O homem sem doença [a prisão de Aida à cadeira de rodas, os quartos onde Sam é hospedado, o cativeiro no Iraque, o banheiro onde se prende com Nina para execução do prazer sexual, a instância onde se hospeda em Dubai, a prisão, os bunkers que percorre na prisão, a jaula onde é preso durante as sessões de julgamento e mesmo os projetos que Sam almeja executar – na graduação um mosteiro, em Dubai, um bunker]; nas duas situações o leitor é colocado ante a certeza de que a aparência é insuficiente quando a realidade se impõe. Em todas elas percebe-se o contínuo esforço de Sam por afirmar para o outro aquilo que tem consigo como certeza e, sempre contrariado, seus amparos não lhe fornecem quaisquer verdades – é que todos, tão logo passam a percebê-lo com o outro tal como pintam, o ignoram. Este é um mundo atomizado, onde os indivíduos estão submetidos às suas próprias leis e impossibilitados de reconhecerem o outro.

É notável isso quando preso em Dubai pede aos policiais que entrem em contato com Rose, da Dubai Engineering Authority, e descobre ele próprio que não sabe nada mais que isso da sua relação com a empresa e a funcionária. Assim, é preciso ler atentamente este romance, com vagar sobre as ações ilógicas e que logo alcançam sentido para o leitor – e também para a personagem, que incapaz de lutar com a verdade prefere fazer coro à mentira (supondo que aquilo no qual acredita é verdade e aquilo do que o acusam é falso); nelas se esconde uma ordem oculta, para a qual a narrativa quer levar o leitor. Aquilo que com Sam julgamos irracional participa da vida comum, não é fato comum aos destituídos de nação, de cultura ou mesmo com padrões sociais considerados inusuais. Sam nos obriga a ver que arrastados pelos padrões, o bem-estabelecimento social, os aparatos de segurança, as tecnologias, a liberdade, os direitos, a modernidade, temos nos tornado cada vez mais frágeis à realidade e, portanto, incapazes de reagir ou encontrar saídas para as veredas sem alternativas de fuga.

Tudo em O homem sem doença é arbitrário. Nada que faça ou diga é possível de oferecer alguma garantia. Por mais que grite, que se explique, ninguém ouve a Sam. É o homem sozinho, preso num pesadelo, e do qual, não é capaz de fugir e se fugir não há saídas. Entretanto, nada nesta narrativa é gratuito. O impasse que lhe prende justifica-se pelas suas ações e os indícios dos acusadores só ganham ampla proporção quando lhe é dada a oportunidade de se explicar. Mas, como se defender do invisível, da acusação sobre a qual não se tem acesso? Há toda uma sorte de leis que apagam o diálogo e toldam a possibilidade de uma resposta honesta. No absurdo e no arbitrário não há espaço para a contrariedade. Talvez resignar-se. No entanto, a ambição, tornada obsessão, dessa personagem é tamanha que não lhe sobram brechas pelas quais se possa aventar seu fracasso – ainda que o que leitor encontre seja apenas o fracasso. É este um livro sem retoques, capaz de despertar nos leitores os sentimentos mais contraditórios. Sim, o contraditório, o arbitrário e o irracional não são casualidades; eles participam ativamente das nossas vidas. Nós que não percebemos ou ousamos nos fiar na certeza das coisas. 

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