As mulheres do boom
Por Rafael Ruiz Pleguezuelos
Clarice Lispector |
Sempre é um
bom momento para recordar o boom. E
para revisá-lo. É algo tão nosso que ainda há quem possa julgar o quanto quiser
seu conceito. Os que viveram aqueles anos do boom ou do postboom foram
presenteados com algo que não tinha preço: a possibilidade de sonhar que eram
testemunhas de certa grandeza. De um dia para o outro, algo muito importante acontecia
às letras em língua espanhola. Ia-se à livraria comprar o novo livro de Carlos
Fuentes, García Márquez ou o que lhe tocasse e, quando, por fim, estava em casa
e mergulhava na leitura, sentia-se que com aquele livro estava se abrindo para
si a história da literatura, de modo que ninguém era como esses arqueólogos que
entram pala primeira vez na tumba de um faraó que soube ser mais hábil que os
saqueadores. O boom foi importante
sobretudo porque nos transmitiu essa grandiosidade. Reconheçam ou não, não
houve membro deste circo de pulgas que é a literatura que não tenha desfrutado desses
anos. Houve ilusão para todos, dos autores aos leitores, dos editores aos críticos,
e além disso muito dinheiro para alguns deles.
As mulheres
do boom são outra parte daquele
sonho; a que ninguém recorda quando acorda. Trata-se de um grupo de mulheres
importantes, muitas delas indômitas, tão interessantes que custa ler, de biografias
tão labirínticas que incitam a perder-se nelas. Mereciam haver sido parte do boom, mas, se alguém não havia se dado conta
todavia e nem todos, aquele foi um clube de homens. José Donoso, nesse livro
impagável – e tremendamente confuso, por outro lado – que é História pessoal do boom o chamou “la
pandilla masculina” [a quadrilha masculina]. O boom é um fenômeno que carece ser analisado adequadamente, entre
outras coisas porque a maior parte dos que até agora levaram tempo em refletir
sobre a ausência de mulheres no âmbito oficial do movimento elegeram como explicação
do fato a saída mais fácil: que simplesmente refletia as condições da mulher na
América Latina, algo que não é apenas uma simplificação derrotista como não
ajuda em nada que essas situações não voltem a se repetir. E é uma má situação,
em primeiro lugar, porque falar da Hispano-América como se se tratasse apenas
de um país é um erro, pois se esquece a idiossincrasia cultural, social e
política de cada um dos Estados, que como se sabe qualquer um que realmente
tenha estado ali, é radicalmente distinta, quando não antagônica. Mas, além
disso, se trata de um erro de enfoque porque, dizendo isso, se esquece o principal:
que o boom da literatura
hispano-americana foi um movimento literário que criou sua música utilizando
partituras americanas (um punhado de obras maravilhosas) mas sob a batuta de
diretores de orquestra europeus, particularmente o casal composto por C. B. e C.
B. (Carmen Balcells e Carlos Barral). Não é necessário ser o maior especialista
sobre o boom para conhecer o peso e a
influência que Carmen Balcells exerceu no nascimento, desenvolvimento e talvez
na morte do movimento. Desta forma chegamos ao primeiro dos paradoxos sexistas
do boom: que foi em grande medida um
fenômeno de homens comandado por uma mulher.
A questão é
que não foi um clube de homens pelo mero fato de que estivesse composto exclusivamente
por varões, mas porque em grande medida tentaram ser um movimento masculino-macho.
Muita gente já falou sobre a luta deles por tomar a liderança do grupo (e que
alcançaria proporções verdadeiramente épicas na briga entre Vargas Llosa e García
Márquez), numa rinha de galos de briga que, no fim de tudo, foi uma exibição da
ânsia de domínio associado ao estímulo machista. Já Cortázar meteu a pata com
aquela classificação sua de leitor masculino e leitor feminino, definindo o
primeiro como o indivíduo que luta para encontrar o significado da leitura e
que, portanto, se converte em cúmplice ativo do autor, e reservando ao segundo quem se deixa enganar e pede uma história que seja uma colher de sopa que circule
diretamente do prato para a boca. Houve um momento em que alguém quis suavizar a
triste divisão de Cortázar e rebatizou esses conceitos como leitor ativo (macho)
e passivo (fêmea), mas nestes temas os reparos nunca funcionam. García Márquez
disse (ou alguém disse que ele disse) que aquilo aborrecia às mulheres intelectuais.
Acrescentar anedotas deste tipo, entretanto, não contribui porque fica restrita a esfera de alguém tenha mais razão, mas
o certo é que são tantas as autoras daquela época que praticamente escreveram
escondidas, ou que foram mal publicadas e menos celebradas que é imprescindível
levantar a vista no intuito inventar outro boom.
Quais
mulheres mereceriam estar aí? Os ingleses sempre dizem que qualquer lista é injusta,
embora em sua imprensa ofereçam uma a cada semana. Por genialidade e sentido da
confusão (algo que na verdade é muito do boom),
a primeira da fila poderia ser Elena Garro, um ser infeliz até o imaginável. Companheira
de Octavio Paz e quem odiou profissionalmente o mexicano durante décadas, sua
genialidade somente é igual ao tamanho dos problemas mentais que a afetaram. É
sua aquela frase “Eu vivo contra ele e escrevo contra ele”, que constitui um
dos melhores lemas de ódio intelectual com o qual alguém já tenha cruzado. A
inteligência e a sensibilidade de Elena Garro já se desprende de sua beleza e originalidade
do título que provavelmente é sua melhor obra: Los recuerdos del porvenir, uma peculiar interpretação do passado
recente do México envolta num tempo suspenso que recorda o grande Rulfo. Testemonios sobre Mariana é uma espécie
de jogo autobiográfico convertido em literatura e La culpa es de los txalcatecas é puro realismo mágico avant la lettre. No pessoal também teve
um lado tremendamente obscuro, como informante do serviço secreto de seu país.
Nesta condição pode trair escritores como Luis Villoro, Rosaio Castellanos ou o
próprio Octavio Paz. Como prova de que a visão da mulher no mundo literário não
mudou tanto como se pensava, ao menos quanto ao rol da mulher verdadeiramente
artista, a última reedição de sua obra Reencuentro
de personajes, na Espanha trazia uma faixa, como a única apresentação da
autora, que dizia: “Mulher de Octavio Paz, amante de Bioy Casares, inspiradora
de García Márquez e admirada por Borges”.
Elena
Poniatowska disse coisas impressionantes a respeito do boom e das mulheres, porque é uma figura muito interessante e
quando é entrevista sempre consegue dizer algo especial, mas a análise do
problema sobre o lugar da mulher na América Latina é uma de suas mais
interessantes provocações; para ela essa presença feminina se limita a ser o de
Resistol, uma forte cola que mantenha a família unida. Também disse que uma mulher
escritora tem que se empar sobretudo para ser boa, pela sensível razão de que
“se és má não serves para nada”. Não venderia mal recordar a fase atual de
muitas escritoras que pensam que pelo mero caso de serem mulheres são
testemunhas e bandeiras de alguma coisa. Como autora, Poniatowska publicou
muito, mas o destaque há de sempre ficar com La flor de lis, de 1988, uma obra cativante, enigmática e complexa.
Mas nos tem presenteado com muito mais, como a delícia que é A pele do céu ou Leonora.
O Brasil
perdeu o trem do boom e como país
perdeu a oportunidade de uma autora tão magnífica que poderia ter mais coro no
movimento: Clarice Lispector. Ela enganava o tempo para escrever, dedicando-se
à tarefa das letras entre ruídos domésticos e sua vida antiliterária de companheira
de embaixador. Escrevia conselhos de moda e receitas sob pseudônimos, embora se
diga que era incapaz de fritar um ovo. Isso acontecia porque o que realmente cozinhava
em casa eram obras como essa joia publicada quando tinha somente vinte e um
anos chamada Perto do coração selvagem.
Como Garro, Lispector também teve lemas de escritora variegada e bukowskiana: “Os que me lerem, assim,
levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago”.
Quando Clarice escreve leva ao leitor uma espécie de câmera à consciência, onde
o pensamento é uma espécie de eco incessante que a autora transpõe para o
texto. A paixão segundo G. H., outra
de suas obras mais interessantes é um monólogo interior radicalmente diferente,
kafkiano por mais que o leitor encontre que o que ali se diz é vigorosamente
possível.
Quando María
Luisa Bombal confiou ao seu amigo Jorge Luis Borges o roteiro do romance que
preparava, que finalmente chamou Amortalhada
e é outro título desse boom invisível,
este respondeu com uma sentença sobre os problemas que via no projeto, que
faria mover-se na suposta obscuridade das respostas do oráculo de Delfos: “Duas
qualidades o espreitam, igualmente mortais: um, o escurecimento dos direitos
humanos do romance pelo grande feito sobre-humano da morte sensível e
meditabunda; outro, o escurecimento desse grande feito pelos feitos humanos”.
Apesar disso, María Luisa não cedeu em seu empenho e trabalhou no romance o
quanto pode. O resultado final foi tão bom que o divino Jorge Luis Borges reconheceu
que a autora havia sorteado muito bem os perigos que rondavam o romance, recompensando-a
com outras palavras inesquecíveis, desta vez para celebrar a obra que deveria
estar em todo cânone do boom: “Livro
de triste magia, deliberadamente suranée,
livro de oculta organização eficaz, livro que não esquecerá nossa América”,
disse Borges.
Para encontrar
a parte mais obscura do boom no que
se refere ao papel da mulher é preciso visitar a família Donoso. Pilar, a companheira
de José Donoso, ofereceu o texto chamado El
boom doméstico, que se ocupa dos bastidores do movimento com o acento posto
em como as grandes figuras trataram suas mulheres. Alguém caracterizou as companheiras
de Gabo e Vargas Llosa como las chachas
del boom. Mas o documento verdadeiramente desgarrador é o da filha do casal.
Correr el tupido velo, assim se chama
o livro, é uma crônica da infelicidade e uma biografia negra de seu pai que encontra
profundidades abissais. Oferece detalhes sobre o tratamento de José Donoso à
sua companheira, em sua obsessão por alcançar a excelência literária. Dois anos
depois de deixar a obra na editora, ela morreu. A morte sobrevoou as mulheres
que estavam próximas do boom de uma
maneira tão especial que parece narrada pelo próprio realismo mágico. Conta-se
que a escritora uruguaia Cristina Peri Rossi, quando jovem visitou a casa de um
tio seu, que tinha uma magnífica biblioteca. A futura escritora aproveitava as
ausências de seu tio para ler aqueles livros, até que um dia ele a colocou em
frente às estantes e lhe disse: “Imagino que ainda não lesses todos os livros
que tenho, mas terás se dado conta de quantos livros de mulheres há”. Só havia
três. E Cristina assim sublinhou. As eleitas para estar na biblioteca daquele
tio leitor eram Alfonsina Storni, Virginia Woolf e Safo. A sentença do seu tio
foi tremenda e parece um símbolo de qual era o pensamento da época e uma explicação
transversal de por que não houve mulheres no boom: “As mulheres não escrevem. E quando escrevem se suicidam”.
Os leitores
de língua espanhola tiveram um dos movimentos literários contemporâneos de
maior abrangência e mais prolíficos da história da literatura e para celebrá-lo
colocaram um nome que é um anglicismo: boom.
Assim são, e por isso a grandeza que circula nunca é completa. Passado o tempo,
é necessário revistar o que ocorreu verdadeiramente, embora não se saiba
quantas pessoas estão dispostas a reescrever o cânone. Como ocorre com todos as
linhas torcidas da história, tão grave é que aconteça como ninguém se deu conta.
O boom foi feminino em seu tempo, e
isso não se pode mudar, mas sim, pode ser agora, na visão da história, pois
depende exclusivamente de como queremos construí-la. Se algo nos ensinou o século
XX é que a memória dos fatos não é nem mais nem menos o que alguém quer que
seja, de modo que a memória está aí para ser refeita, para julgar como foi construída,
ampliá-la e comprovar em que momento é necessário ceder. Não se trata de
questionar a postura dos homens que compuseram em seu momento, nem depreciar ninguém
– tentamos ganhar, não perder –, mas incorporar mulheres ao boom. Sublinhar quem mereceu em seu
tempo e não teve, ou não na magnitude que merecia. O verdadeiramente mágico do
realismo mágico foi que nenhuma mulher pode chegar a lutar pelo lugar mais
alto, embora houvesse muitas cuja obra fosse suficientemente digna. Não seja
por isso, no fim alguém vem dizer que, efetivamente, o melhor autor a história
das letras hispano-americanas é uma mulher: Sor Juana Inés de la Cruz.
* Este texto é uma tradução livre de "Las chicas del boom", publicado aqui em Jot Down.
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