O espírito da ficção científica, de Roberto Bolaño
Por Pedro Fernandes
Como se faz
um romance? A pergunta cuja resposta terá motivado um extenso grupo de
pensadores, entre críticos, teóricos e mesmo romancistas, está longe de um fim.
Não porque seja uma indagação sem resposta definitiva ou que as diversidades de
reflexões e conceitos sejam insuficientes. Desde quando apareceu, sem nome e
aparência próprias, o romance tem se transformado e na mesma medida tem se
inventado novas perspectivas de pensá-lo.
Mas a
pergunta aqui não tem o efeito de servir de uma linha a mais nesse debate. Sua
função é outra: compreender como O
espírito da ficção científica, um romance dentre os póstumos de Roberto
Bolaño e que possivelmente não ficou para ser publicado e mesmo assim publicou-se,
não sem uma celeuma, ao menos entre os da América Hispânica, é fundamental para
colocar a nu a tessitura estrutural com que o escritor modelou seu universo ficcional.
A resposta, se oferecida, nasce de uma aproximação indireta da obra romanesca do
chileno e é motivada tão somente pela leitura da obra ora publicada.
Não é caso
de ser o livro em questão uma obra de um todo inacabada. É muito provável que
Bolaño ainda voltasse outras vezes ao que para ele pareceu um projeto abortado,
muito embora, todos saibam que o bom escritor nem sempre está de um todo
satisfeito com sua produção e a ideia de acabamento de um texto seja outra
questão das que têm desafiado gente de toda parte. Corrobora com a ideia de
que, da maneira como está, Bolaño não teria publicado O espírito as diversas correspondências que citam o texto: cronologicamente
acompanham o drama do escritor com a escrita e nunca se referem ao trabalho como algo concluído e sim em
progresso, capaz de até, num certo exagero, sucumbir o escrevente.
Entretanto,
não se pode acusar esta obra de não possuir o substancial para que se mostre
enquanto unidade. Caberiam ainda uma diversidade de ampliações e de reescritas,
como é comum a todo trabalho de criação textual, capaz de oferecer uma maior
robustez. É verdade. Mas, quis o acaso que a obra se apresentasse assim. A
morte prematura do escritor – tinha só cinquenta anos – fez com que o projeto
que o derrotava não ganhasse essas substâncias boas à musculatura da narrativa,
mas, não é O espírito da ficção científica
uma obra que se permita conceituar pela característica da incompletude. E
fora as intervenções possíveis de terceiros ou mesmo o esquecimento de Bolaño
em relação ao manuscrito, isto é, acreditando que o escritor tinha ciência da existência
da obra, se não destruiu, é porque sabia da unidade do texto e, portanto,
poderia ser lido sem se notar deficiências graves.
O destino que
nem sempre é justo, ao menos dessa vez, portou-se. Não é um texto que desmereça
o projeto literário de Roberto Bolaño. Nem mesmo que mereça o epíteto de
obra-menor. Há por aí situações muito mais graves como as de reconstrução de textos
a partir de restos deixados por escritores ou a publicação de borrões como se
fossem uma nova obra descoberta, verdadeiros atentados contra a memória do exercício
crítico e criativo dos escritores e mesmo assim, no cenário medíocre onde estamos
encerrados, há ovações que colocam desastrosamente o produto de um fetiche no
mesmo limite da obra-prima.
No caso de O espírito da ficção científica, o que o
leitor encontra é um romance cujo objetivo inicial parece ser o de investigar
os pilares do gênero ficção científica e depois torna-se um vivo painel sobre o
universo criativo do escritor em formação.
A obra está construída por duas interseções: a da própria ficção científica e
da literatura de corte social-realista. Isto é, o trabalho de Roberto Bolaño
quer se situar à fronteira das determinações no intuito de oferecer uma
desfronteirização das determinações. O que parece ter sido sempre seu comportamento
– bastando lembrar de seu afastamento proposital dos modelos literários que
deram forma ao chamado Boom Latino-Americano, para a composição de uma obra capaz
de abrir outras linhas de força na literatura de seu país e da América Latina,
muito embora sem se descuidar totalmente de uma vez ou outra usar uma pitada de
tais modelos. Não há criação espontânea.
E o romance
aqui apresentado prova isso: a maneira insólita como se organizam alguns
episódios, antes de remeter o leitor para o âmbito da ficção científica, mais
dialogam com o universo do maravilhoso, pela maneira sintética com que são
construídos (um claro pastiche do modelo figurado no título da obra) e pela maneira
como se recorre a uma atmosfera em suspenso, como se se tratasse de uma lucubração
onírica, que em várias ocasiões aproxima o leitor da narrativa de A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares.
Ou mesmo, fora desse universo de ficção científica, quando a prosa é invadida,
sorrateiramente, pelos laivos de poesia: “A própria escada que antes não
significava nada de especial, se transformou numa coisa extraordinária, metade
serpente, metade despenhadeiro”; “A noite de que falo – noite gatesca de sete
vidas e com botas de vinte léguas – desapareceu ou se foi em momentos díspares
e, à medida que se ia como um jogo de espelhos, chegava e persistia uma parte e
portanto toda ela”; “Fazia uma noite clara e a lua naquele bairro, mais que
lua, parecia um lençol posto para secar à ventania do céu”. E, notemos, não
poesia qualquer, mas aquela em que a realidade é transmutada tendenciosamente
para formas que lembram o real maravilhoso: “No entanto, e depois de pequenas
aventuras sem maior importância, Jan teve à sua disposição todos os livros que
desejava. Estes, sublinhados, anotados, sublinhados de novo, foram se
empilhando por todos os rincões do nosso quarto de uma forma caótica que
chegava a impedir a circulação; sair para urinar de noite sem estar bem
desperto e sem acender a luz podia ser perigoso: um chato – E. E. Smith, um
ratinho – Olaf Stapledon, ou quase toda a obra de Philip K. Dick brincando de
ser uma pedra podiam te derrubar a qualquer momento”.
A ânsia por
revelar o espírito-tema do romance está nas mãos de Jan Schrella, um rapaz que
nunca sai de seu quarto, num edifício cinza-esverdeado, “como o uniforme da
Wehrmacht”, na avenida Insurgentes, Cidade do México, e que gasta o tempo escrevendo
cartas, “todas são dirigidas a escritores de ficção científica dos Estados
Unidos”, e um romance do gênero. Nas missivas, Jan, que se apresenta como um
aspirante-escritor talvez abandonado num país cujo interesse por essa
literatura é zero, sonda, indiretamente, entre elogios à obra do destinatário e
a revelação da possibilidade de um enredo de ficção científica, o que constitui
um texto dessa natureza. Mas, antes de aparecer as cartas de Jan, o leitor é
levado a um enredo que se desenvolve a partir de uma conversa entre um escritor
de ficção científica e uma jornalista na recepção de importante prêmio para
literaturas do tipo (Jan no futuro, depois de escrever seu romance, este que é
integralmente diluído na conversa com a entrevistadora?). Não há resposta. Mas
essa é uma das linhas principais das duas que compõe a narrativa do romance de
Roberto Bolaño.
A outra centra-se
em Remo, outro jovem saído do interior do Chile para ir morar com Jan; sua
aspiração é também pelo mundo da literatura, mas seu interesse é outro: o da
poesia. É através de Remo que o leitor toma contato com o mundo fora das lucubrações
imaginativas, o mundo social, que embora não seja revestido de um interesse
histórico ou político – e bem poderia, afinal, nos 1970, quando se passam os acontecimentos
dessas narrativas, o país entrava num dos períodos mais difíceis de sua história
com o levante da Ditadura. Os acontecimentos aí referidos são apenas os de
ordem literária. A diversidade de oficinas de escrita criativa, de periódicos
literários, de jovens iguais a Jan e Remo, interessados na vivência da criação.
Revela-se, assim, as diversas faces, do sucesso, da reprovação, da hipocrisia do
meio, dos embates ideológicos, das decepções, das ingenuidades, das descobertas,
das fragilidades das relações, dos interesses, da desvalorização dos jornais
para com a literatura etc. Isto é, um panorama amplo e diverso do universo cultural
literário marginal do Chile daquele período.
E justamente
aqui não se deixa esconder a criticidade desse romance: primeiro desfavorável ao
que uns acusam de excesso a demasiada cultura literária. É necessário citar
aqui o encontro entre Remo, o amigo José Arco, quem o conhece numa oficina de
poesia, e um tal dr. Carvajal, crítico ferrenho aos novos meios de propagação
da literatura, para quem se configura um ofício de qualidade duvidosa
interessada apenas a quem quer fazer um nome, uma fama. Assim, o que a
princípio se apresenta como o sintoma de um levante da literatura, a ruptura
com o lugar de marginal que essa arte ocupa num país com elevados índices de analfabetismo
e de poucos leitores, pela quantidade excessiva de revistas literárias, no fim
entra em cena o avesso dessa compreensão: o excesso é um atentado contra a
própria maneira como deve se portar a literatura, em que o menos pode ser
sempre o mais; porque a literatura, diz Carvajal, se guia por outra esfera, a
qualidade. Não deixa de ter razão.
A crítica à
cultura do excesso, aliás, é uma resposta para nossa própria realidade de
agora, marcada pelos excessos de produtos literários mas de pouca ou nenhuma
valia. Um tapa na cara da geração do consumismo, então nascente e agora a pleno
vapor. “Nos Estados Unidos estão viciados em vídeo, tenho bons dados. Em
Londres os adolescentes brincam por alguns meses de ser estrelas da música. E
não acontece nada, claro. Aqui, como era de se esperar, procuramos a droga e o
hobby mais barato e mais patético: a poesia, as revistas de poesia; que podemos
fazer, não por nada esta é a pátria de Cantinflas e de Augustín Lara”.
Mas, por
outro lado, esse esforço de criação, mesmo que rude, não representa uma
alternativa de ruptura com determinados padrões estabelecidos e se configura na
renovação constante e necessária às artes? Remo e o amigo vêm nisso um indício
para novas possibilidades de criação e o levante contra determinados modelos e
opressões impostas pelo capital cultural e proteção contra os modelos outros de
entretimento. Isto é, longe de se pensar numa crítica ao excesso da arte, é
preciso pensar numa crítica ao seu esvaziamento e como em breve tudo poderia
ser substituído por outras atrações mais significativas no que diz respeito ao
entretenimento. É notória a visão que Remo desenvolve depois daí aos diversos
tipos de jogos para videogame, febre nascente nos Estados Unidos e na maneira
como aquele país tratavam os da América Latina nessas novas representações –
como povos necessários à extinção pela guerra. Tudo isso leva Remo a concluir:
“Que triste, pensei num lampejo de lucidez ou de medo, um dia contarei histórias
sobre poetas-lumpens, e meus interlocutores se perguntarão quem foram esses
infelizes”. Também não deixa de ter razão. Ou seja, nesse território da arte, o
verdadeiro espírito – parece ficção científica – é regulado por outras determinações
históricas não-alcance de uma ou de outra visão. E, na dúvida, não se mover é
que é o pior perigo. “Está cheio de gente assim. Chamam-se a si mesmos de
filhos da Revolução mexicana. São interessantes, mas na verdade são uns filhos
da grande puta, não da Revolução”, conclui o amigo José Arco. Uma alfinetada contra
os modelos já estabelecidos e cerrados para as novas experiências como os
jovens Jan e Remo? É o espírito da rebeldia o que move as ações desses jovens criados
por Bolaño.
A própria ficção
científica sempre designada como um gênero menor ou o poeta como figura
marginal se oferecem aqui como exemplos de forças desestabilizadoras, entretanto,
fundamentais para os lugares de ressignificação da literatura. Ignorá-los como
uma horda é se valer do mesmo princípio grosseiro que o consumismo faz da literatura
como um todo. Isso parece sair da boca de um jovem escritor, que mesmo invisível
aos olhos dos já-consagrados sabia do seu projeto literário e do compromisso de
renovação estética que sempre se cobra do escritor. É um Roberto Bolaño em
formação, mas muito ciente de sua condição. Por isso, dizer que nO espírito da ficção científica estão as
bases para a obra do escritor chileno. E isso não faz desse romance nenhum pouco
menor. Do contrário: se mostra como uma aula de criação, porque é o corpo magro
do romance o que se exibe e através dele é possível ver as engrenagens que o
sustentam, como destacado sobre sua estruturação; e porque não deixa de se
despir de um compromisso quase ideológico sobre a criação literária de uma
forma geral. Tanto que é uma obra que se oferece com boa entrada ao universo ficcional
de Roberto Bolaño.
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