Ricardo Piglia

Ricardo Piglia. Fotograma do documentário 327 cuadernos

Ricardo Pigilia foi aquele menino que nasceu e cresceu na ausência da literatura mas tão logo aprendeu a ler quis ser escritor para encontrar o mecanismo capaz de lhe revelar a magia daquelas combinações de palavras que o arrebatavam deste mundo. O leitor e mais tarde crítico, editor, roteirista, professor de literatura e, sobretudo, escritor, nasceu em Androgué, província de Buenos Aires, no dia 24 de novembro de 1940. Viveu entre seu país natal, os Estados Unidos e a literatura, mas passou seus últimos dias na capital argentina por causa de uma esclerose lateral amiotrófica (ELA) que afetou seus músculos mas não deu fim à lucidez intelectual e criativa e, por isso trabalhou até quase o último momento de vida – Piglia morreu no dia 7 de janeiro de 2017.

Desde sua estreia como escritor, por sua vez, em 1967 com o volume de contos A invasão, começou a receber o reconhecimento de seus colegas. Um livro onde aparece Emilio Renzi, seu alter-ego jornalista e aspirante a escritor, figura comum em sua obra. Suas histórias se caracterizam por serem tramas sentimentais ou sobre interiores que escondem algum segredo, rodeadas por uma empreitada policialesca que o leva indagar sobre poder e seus desmembramentos.

Autor de três livros de contos, seis ensaios e uma novela, Piglia escreveu cinco romances, entre 1980 e 2013. Deste o primeiro, Respiração artificial, ganhou um lugar cativo entre os autores latino-americanos indiscutíveis de depois do boom. Depois dessa história sobre a ditadura militar de seu país seguiu-se doze anos de silêncio até a publicação de A cidade ausente. Cinco anos mais tarde, em 1997, sua literatura ganhou o grande público com Dinheiro queimado. Quando da publicação deste romance se passaram mais treze anos para o próximo livro – Alvo noturno (2010). Seu último romance foi O caminho de ida.

Antes de Respiração artificial, escreveu contos e ensaios sobre literatura em suas diversas dimensões – sobre escritores, a arte de escrever, crítica literária; entre todos, além da edição de estreia, se destacam: O último leitor,  conjunto de seis ensaios em que identifica modalidades de leitura na tradição literária ocidental a partir de um percurso personalíssimo por situações de leitura encenadas em textos centrais ou marginais da literatura (de Dom Quixote, de Cervantes a Madame Bovary, de Flaubert, das Ficções, de Jorge Luis Borges ao Ulysses, de James Joyce) e da imaginação criativa sobre a formação de determinados leitores, como Che Guevara – num ensaio extraordinário Piglia reconstrói a experiência de uma metamorfose, a transformação pela qual através do poder das palavras um jovem é levado a ser uma das personagens mais importantes de sempre da América Latina; e Crítica e ficção, uma série de entrevistas que revelam a reflexão lúcida e apaixonada sobre literatura, teoria da literatura e estética e sua faceta de leitor atento. Os temas aqui tratados abarcam desde um alfabeto panorâmico da literatura argentina contemporânea – Arlt, novamente Borges, Cortázar – até algumas de suas principais influências – como Benjamin, Gombrowicz e Brecht –, passando por relações da literatura com a política, o cinema ou a psicanálise e suas experiências pessoais de leitura.

A obra de sua vida

Aos 16 anos, Piglia adquiriu um caderno e começou o projeto de sua vida: seus Diários. Esses cadernos foram se ampliando em silêncio enquanto se convertiam em lenda, porque embora se soubesse de sua existência ninguém os havia lido. Até que em 2011, o escritor publicou alguns fragmentos da obra no caderno espanhol do jornal El País, Babelia. Começou quando sua família se mudou de Androguéa Mar del Plata, na intenção de seu pai de deixar para trás o passado: “3 de março de 1957 (Vamos depois de amanhã). Decidi não me despedir de ninguém. Despedir-se das pessoas parece ridículo. Saúda-se na chegada, no encontro, não a quem se deixa de ver. Ganhei o bilhar, fiz duas tacadas de nove. Nunca havia jogado tão bem. Tinha o coração gelado e o taco golpeava com absoluta precisão [...] Depois fomos à piscina e ficamos até muito tarde. Mergulhei do alto do trampolim. De tão alto as luzes do clube flutuavam na água. Tudo o que faço me parece que faço pela última vez”. 

Ricardo Piglia fotografado na estação de Constitución, Buenos Aires, anos oitenta. Foto: Daniel Mordzinski 

Naquelas palavras já estava seu futuro. A mudança de cidade, de vida, foi o que o levou a planejar o que gostaria de ser e fazer. Anos depois explicaria: “O diário, sem dúvida é uma comédia. Alguém se converte automaticamente num clown. Um tipo que escreve sua vida dia após dia é bastante ridículo. É impossível levar-se a sério. A memória serve para esquecer, como todo mundo sabe, e um diário é uma máquina de deixar pegadas. Gosto muito dos primeiros anos de meus diários porque ali luto com o vazio total: não acontece nada, nunca acontece nada na realidade, mas nesse tempo me preocupava, era muito ingênuo, estava a todo tempo buscando aventuras extraordinárias. Comecei a roubar a experiência das pessoas conhecidas, as histórias que eu me imaginava que viveria quando estavam comigo. Escrevia muito bem nessa época, a propósito, bem melhor do que agora, tinha convicção absoluta que é sempre a melhor garantia para construir um estilo”. Não era nostalgia, mas a sensatez e a lucidez do crítico que era.

Se com 16 anos conhecia o caminho, com 18 descobriu alguns de seus deuses formadores: William Faulkner. E já não havia mais volta. A mansão caiu em suas mãos e já não pode deixar sua obra: “A leitura de Faulkner é um dos grandes acontecimentos de minha vida”.

Não havia nada a fazer ante essa descoberta. Sua família, que queria que ele estudasse engenharia, precisou se conformar com seus estudos em História na Universidade de La Plata. Alguém que tem a certeza que quer ser escritor vai estudar História ao invés de algo afim? Sim. “Pensava, com razão, que se estudasse Letras ia custar seguir interessado por Literatura”. Não queria ler por obrigação nem para que avaliassem seus conhecimentos sobre literatura. Ao lado de Faulkner estavam os argentinos Jorge Luis Borges e Roberto Arlt.

“Escrever é sobretudo corrigir, não acredito que se possa separar uma coisa da outra”, dizia como uma litania o escritor argentino.

Por trás de todo esse amor e paixão pela literatura e pela arte de escrever estava Steve Ratliff, um estadunidense a quem chamavam O inglês, que trabalhava numa companhia exportadora de pescado do Mar del Plata. Foi quem primeiro lhe falou sobre Faulkner, Scott Fitzgerald e de outros escritores estadunidenses.

Depois de diagnosticado com ELA, Piglia se dedicou a organizar e editar os textos que tinha pendentes ou inacabados – tal como os Diários que findou reunidos em três volumes. 

A descoberta do amor pelos livros, disse a Leila Guerriero numa entrevista ao caderno Babelia em 2010, se deu por um amor por um garota: “Eu já lia, mas sem método. Havia tido uma paquera em Adrogué. O pai era de família de anarquistas, liam muito. Íamos caminhando, havia um muro alto, ela me disse: “Está lendo alguma coisa?” E eu havia visto numa livraria A peste, de Albert Camus. E  lhe disse: “Sim. A peste”. E me disse. “Empresta-me”. Tenho vergonha contar isso, mas comprei o livro, li numa noite, o amassei um pouco para que parecesse usado, e levei-o no dia seguinte. Aí comecei a ler”.

Uma lembrança do último erudito

Por Walter Lezcano

Quando se lê toda a obra de um escritor como Ricardo Piglia, um corpus extraordinário de textos que inclui romances, contos, aulas, entrevistas, prefácios e ensaios, entre outros gêneros que se tornam em outras formas mais pessoais e anfíbias, chega-se à conclusão de que foi um homem que colocou sua existência em função da literatura e pode alcançar algo incrível: ter uma vida realmente aventureira em torno da leitura. Sua grandeza esteve no tamanho desta aposta. Talvez, e isso sabemos agora com as publicações de seus Diários, foi uma aposta que estava feita de humildade, silêncio e astúcia. Onde brilhavam as luzes e os ventríloquos que escrevem e sempre querem chamar a atenção dos demais, Piglia não estava. Esse interesse furtivo para escapar dos espaços centrais onde sempre queriam situá-lo foi vital para que ele fizesse do desterro (Adogué, Mar Del Plata, La Plata, Buenos Aires, Princeton são algumas das cidades onde viveu com maior ou menor sorte) um modo de encarar sua relação com os livros e as bibliotecas. É que Piglia, como Bob Dylan, tratou de fugir dos lugares que quiseram consagrá-lo.



Para compreender melhor a natureza de sua operação é preciso recordar que Piglia era formado em História. Este não é um dado que rompe as barreiras da pura data biográfica para converte-se numa peça importante dentro das qualidades com as quais contava para fazer uma leitura transversal, diferente e, de alguma maneira, fronteiriça do campo literário e levar adiante uma abordagem inovadora na hora de criar suas obras de ficção. Aí está, por exemplo, “Las actas del juicio”, para comprovar: um dos melhores contos argentinos de todos os tempos. Por isso frente à pergunta lacerante de como escrever depois de Borges, Piglia compreendeu que a confrontação ou o parricídio eram ações inúteis: havia que aproveitar esse caudal de excelência e usá-lo a favor de sua geração. Nesse sentido, sua leitura de Borges (a quem nunca deixou de voltar e reler) em relação com a de Robert Arlt desestabilizou os sistemas esclerosados que buscavam um enfrentamento. “Arlt e Borges têm mais em comum do que se acredita”, disse e abriu todo um território de novas possibilidades que foram frutíferas para analisar nossa história. Piglia era esse tipo de crítico (que tem muito do leitor compulsivo) que buscava desmantelar os ódios que fomentavam as tribunas e a demagogia.


Ricardo Piglia em Princeton. Foto: Robert P. Matthews. Princeton University


“Busco que minhas personagens tenham uma vida que supere as experiências dos leitores”, disse numa entrevista, essas palavras nos levam diretamente a aparição de Respiração artificial. Sua publicação em plena ditadura militar marcou um ponto de ruptura no que diz respeito à forma de relacionar literatura e política, porque demonstrou que frente aos contextos implacáveis, os escritores, sem ser panfletários nem condescendentes, sempre têm algo para dizer e revelar: mecanismos de opressão que normalmente não são advertidos. E isso também se pode noutros textos seus como Dinheiro queimado, A cidade ausente, O caminho de ida, Prisão perpétua ou nome falso entre outros. Há algo de ordem da valentia aí que serve para entender também que Piglia buscava os modos de inclusão da ficção na realidade. Isto é, de que forma a forma de um relato cria realidades concretas na vida cotidiana dos demais. Nesse sentido, seu labor como professor serviu para tornar mais visíveis suas teorias e lograr a elaboração e o desenvolvimento do pensamento tiveram a contundência irreprimível do concreto, do real.  Estar frente a ele e ouvi-lo ou lê-lo fazíamos nos sentir que também podíamos ser inteligentes.

Tanto em livros como Crítica e ficção, As três vanguardas, A forma inicial, Formas breves, O último leitor, Escritores norte-americanos, assim como em seus programas na Televisão Pública, Ricardo Piglia expôs uma maneira de aproximar-se ao imaterial da literatura e expandir o poder transformador da leitura.

Sempre havia preenchido seu tempo entre um livro e outro: outro modo de chamar a atenção. Por exemplo, quando publicou Alvo noturno, com o qual ganhou o prestigiado Rómulo Gallegos, há 13 anos não publicava ficção. Daí em diante, seus livros foram saindo sem tanta espera. Mas o que chamava atenção era que apesar da passagem do tempo, a potência de Piglia na página se mantinha. A edição de seus Diários significou no campo literário argentino como a abertura da tumba para a obtenção do santo graal. E não decepcionou.

Ricardo Piglia fez tudo certo (leitor descomunal, escritor exemplar, editor inovador, professor magistral, prefaciador revelador) durante toda sua vida. Mas se tornou melhor no fim de seus dias. Como David Bowie e Roberto Bolaño, Piglia foi desses seres que não se entregaram facilmente à morte e deixam um legado importantíssimo: uma obra que ocupa uma biblioteca e uma forma de viver. Há muito para aprender com isso.

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A seguir, traduzimos os excertos de seus Diários publicados por Babelia.


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