Obra completa, de Raduan Nassar


Raduan Nassar é um caso raro na literatura brasileira. Estreou muito tardiamente na literatura e a maneira como o fez parece demonstrar que nunca foi afeito ao exercício da escrita, no sentido de se constituir para si, como é para muitos escritores, uma contínua obsessão ou mesmo uma profissão. Afinal, essa sua estreia, quando contava quarenta anos se deveu, como tem sido demonstrado novamente agora, em 2016, ao esforço outras figuras que não o escritor. Não fosse isso possivelmente ninguém – fora do seu círculo familiar e de amizades saberia quem foi Raduan Nassar porque não teríamos notícia de Lavoura arcaica, seu livro de estreia, em 1975, tampouco de Um copo de cólera, publicado três anos depois.

O primeiro livro só saiu graças ao intermédio de um ex-professor de Raduan que encaminhou os originais à Livraria José Olympio, do Rio de Janeiro em 1974; depois de conquistar alguns prêmios (Lavoura arcaica recebeu um ano depois de sua publicação o Prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Jabuti e o de Autor Revelação da Associação Paulista Críticos de Arte) foi a dedicação de Luiz Schwarcz, primeiro na Brasiliense, onde o livro ganhou a terceira edição em 1985, que deu a obra de Nassar projeção dentro e fora do Brasil.

Em 2016, foi a obra de Nassar a escolhida para marcar o ano de celebrações dos trinta anos da casa editorial que o consagrou; gesto que se configura num impulso de renovação da amizade entre editor e escritor mas não sem um aguçado interesse em suscitar nele a centelha pela reinauguração de sua literatura numa ocasião quando o próprio Nassar demonstra-se mais aberto ao público: a doação do seu sítio para a universidade, o engajamento nas campanhas presidenciais pró-Lula e Dilma e mesmo as participações vez ou outra em eventos de ordem literária – como a Balada Literária em 2012, evento realizado pelo escritor Marcelino Freire, e responsável pelo reacendimento da presença de Nassar fora do silêncio quase total que se fez desde quando anunciou sua retirada do trabalho de publicização da sua escrita em 1985.

Se olharmos de perto, a literatura de Raduan Nassar é a recriação de seu tempo, o produto de um registro que nasce como a crônica, da observação de seu entorno, e é lapidado pelo escritor até ofuscar a situação trivial e elevá-la à condição de peça literária. É um trabalho de ourives: quem de posse da matéria bruta colhida na bateia entre uma sorte diversa de materiais encontra a forma ideal capaz de torná-la preciosa.

Há ainda outro elemento tão fundamental quanto a perspicácia do processo de lapidação resultar em joia que a confluência de uma diversidade de elementos favoráveis à consolidação quase que imediata do escritor e sua curta obra: para além da amizade com um editor capaz de fazer um escritor – dádiva cada vez mais rara porque os editores só querem talento e criatividade capazes de fazer sua conta bancária ir à estratosfera – Nassar dispôs do bom mocismo da crítica de plantão e logo sua obra tornou-se figura cativa entre os da academia, forja onde se constrói o brilho que se espera da peça lapidada pelo ourives. É suficiente citar aqui algumas das opiniões e dos nomes que desde sempre se posicionaram e reverência à obra de Raduan Nassar; são opiniões de quando veio a lume o primeiro livro:

1. “Lavoura arcaica é uma realização literária do mais alto nível, uma indiscutível obra de arte. Raduan Nassar é a revelação de um autêntico escritor, e seu romance ficará” – Geraldo Ferraz.

2. “Lavoura arcaica é uma alegoria da sociedade brasileira do presente. Mostra como se organizam e se articulam a disciplina do trabalho e o equilíbrio do poder; mostra como se rompem, por dentro, de modo inexorável, a disciplina do trabalho e o equilíbrio do poder” – Octávio Ianni.

3. “Conheci um escritor nato, para quem o mais perfeito domínio da língua serve a um núcleo denso e profundo de experiências vitais. Lavoura arcaica é uma revelação dessas que marcam a história da nossa prosa narrativa” – Alfredo Bosi.

4. “Livro impressionante, magistral, revelação de um autêntico escritor” – Tristão de Athayde.

5. “Raduan Nassar construiu esse esplêndido Lavoura arcaica de modo tão firme, e tão seguro, num ímpeto decidido e tão belo, que não há como não saudá-lo como grande escritor. Lavoura arcaica ficará na nossa literatura como uma afirmação inequívoca” – Octávio de Farias.

A concisão da sua escrita – um limite da obsessão pela objetividade como um aplicado aluno de Graciliano Ramos ou João Cabral de Melo Neto, para quem o trabalho com a palavra consiste num amplo esforço pela desengordura do texto – logo integrou-se, da simples relação apontada, entre o romancista de Alagoas e o poeta de Pernambuco, numa tradição literária no mesmo instante em que, pela maneira acentuada como se comporta a escrita o fez ser lido, numa ocasião em que se abria um extenso hiato em nossa literatura, como o autor de uma obra inovadora.

Agora, a prova de que não estava nos planos mais sensatos de Raduan Nassar ser um escritor se justifica para além dos intermediários que deram por conhecer sua obra: está no suposto abandono da escrita depois dos dois livros citados quando todos os leitores já esperavam por uma regular assiduidade nas publicações, na quase total ausência dos debates literários de seu tempo e mesmo no ar de desdém com que olha para o que escreveu. Desde então, a obra vive por si como se uma prova irrefutável de algumas das compreensões sobre a autonomia do livro; repetindo um fenômeno que não é estranho à literatura: basta lembrar, para citar só um, de Juan Rulfo, exemplar da literatura latino-americana com apenas dois livros, o romance Pedro Páramo e a antologia de contos Chão em chamas.  

Se o escritor escolheu uma persona cujo ar misantropo favorece a curiosidade de um mercado famigeradamente interessado na novidade a qualquer custo e continuamente, não se sabe. Mas a obra aí está. E agora, a única alternativa encontrada por esse mercado foi – no embalo dos sucessos das publicações de obras completas – em gesto de homenagem, quando passam-se 40 anos da primeira edição de Lavoura arcaica e 30 da Companhia das Letras, reunir tudo num só volume como se uma biblioteca definitiva de um escritor cuja obra está findada.



O gesto de 2016 com a aparição de Obra completa se espelha nas celebrações de 1994, quando a Companhia alcançou a marca de 500 títulos publicados e organizou uma edição não-comercial reunindo os contos de Nassar na antologia Menina a caminho; embora 1961 tenha sido o ano de criação do texto que dá título à obra, até então fora publicado só numa coletânea alemã. Menina a caminho esteve ao alcance maior do público em 1997. A edição trouxe outros quatro textos de Nassar: “Hoje de madrugada”, “O ventre seco”, “Aí pelas três da tarde” e “Mãozinhas de seda”.

Obra completa, além de reunir os três livros de Raduan Nassar, traz dois contos inéditos: “O velho” (de 1958, publicado pela primeira vez numa antologia francesa em 1998) e “Monsenhores” (também de 1958) [ver final desta post], além de um ensaio publicado numa coletânea alemã em 1987 com depoimentos de escritores latino-americanos e só agora conhecido no Brasil, “A corrente do esforço humano”.

A edição agora apresentada repete, na sua organização, a força e independência da obra de Nassar, quando se mostra nua – sem quaisquer apetrechos da crítica: prefácio, posfácio, textos de suporte, notas. Ao invés disso, porque apesar do ar de obra definitiva não responde por essa responsabilidade, os organizadores preferiram um apêndice com um levantamento sobre a crítica e a recepção da obra de Nassar, oferecendo ao leitor interessado a se aprofundar melhor, pistas para encontrar o necessário: assim, há uma compilação de referências com entrevistas concedidas pelo escritor em vários veículos, outra com indicações de resenhas e estudos acadêmicos, mais outra com um levantamento sobre as edições ao redor do mundo e uma mais sobre as adaptações cinematográficas bem como suas repercussões assinaladas pelas premiações arrebatadas por esses trabalhos.

Há outros motivos mais próprios do escritor nessa ocasião celebrativa: em 2016, Raduan Nassar recebeu o Prêmio Camões e esteve entre os finalistas do prestigiado Man Booker Prize. Na recepção do Camões, nomes como António Lobo Antunes, eterno candidato ao Prêmio Nobel, considerou a eleição do júri como uma das mais acertadas; Nassar “tem muito talento e é um grande autor”, disse.  E emenda definindo o brasileiro como “Um dos mais importantes escritores do século XX da literatura em língua portuguesa”.

Se as palavras do escritor português sublinham aquilo que a obra em quase meio século tem se mostrado enquanto tal, é preciso voltar à decisão de Raduan Nassar em não se preocupar com novos livros – Um copo de cólera e Lavoura arcaica alcançaram todos os limites possivelmente não imaginados pelo escritor; há, neste gesto do silêncio, uma maturidade grandiosa – uma, de que a literatura jamais se guia pelo padrão da quantidade, outra, em forma de pergunta é: que pode um escritor fazer depois de atingir o limite que não esperava atingir? Pode ser um ato de covardia, deixar-se dominar pelo monstro hidra que foi capaz de criar ao ponto de não dispor mais da possibilidade de reinvenção; pode ser um ato de comodismo, deixar lugar para crescer a criação, essa lavoura que a depender do solo e das condições só tende a multiplicar; também pode ser a reafirmação daquilo que ficou suposto no início deste texto: não esteve nunca na alçada do escritor galgar esse árido solo da literatura até que um acaso fez tudo ganhar a proporção que ganhou.

Dentre todas as possibilidades fica a certeza de que não faltará nunca momentos para se descobrir e redescobrir a obra de Raduan Nassar – porque a boa obra é sempre, muita ou pouca, o exercício de uma obsessão: a de não perecer. Que os editores e estudiosos da Nassar encontrem nos seus escritos as possibilidades que julgam faltar e acrescentem eles próprios os substratos que adubarão esta lavoura. Raduan Nassar é grande pela concisão com que imprimiu sua obra; numa rinha de faladores, perdurará quem melhor escuta e menos diz. A grande biblioteca – aquela Babel sonhada por Jorge Luis Borges cabe em menos de quinhentas curtas páginas. Cabe numa frase. Ou, se preferir, como já disse António Lobo Antunes, cabe numa palavra.

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A seguir reproduzimos um texto inédito do escritor publicado em Obra completa:



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