De profundis, Valsa lenta – de José Cardoso Pires
Por Pedro Belo Clara
No final do presente mês
assinalar-se-ão dezoito anos desde a morte de tão ilustre autor no panorama
literário português do século XX, razão mais que suficiente para materializar esta
nossa sugestão de leitura mensal. Mas não só por esse aspecto meramente
contabilístico, é claro. Como poderemos ignorar a justa celebridade do
escritor, granjeada em vida e certamente muito posterior à sua morte? O seu inegável
génio criativo, o impacto da sua obra nas letras lusitanas? Estas e muitas
outras seriam, por si só, justificações mais do que suficientes para a escolha
de uma obra da autoria de José Cardoso Pires. No entanto, não elegemos uma das
principais. O motivo tornar-se-á explícito mais à frente, assim esperamos.
Nascido em 1925 numa pequena
localidade do concelho de Castelo Branco, viveu em Lisboa durante a sua
infância e juventude. Acabou por frequentar a Faculdade de Ciências, embora
tenha exercido ao longo da vida diversas profissões. Em termos literários, por
um breve período aderiu aos pressupostos do surrealismo, acompanhando assim nomes
como Alexandre O’Neill e Mário Cesariny. No entanto, o seu primeiro livro,
lançado em 1949, exibia já claros contornos do neo-realismo dominante. Nesse ano
inicia também funções como chefe de redacção da revista Eva, dando assim início
a uma longa actividade editorial que se desenvolveu paralelamente à escrita,
sendo de destacar a sua contribuição na então famosa Ulisseia e no já extinto
Diário de Lisboa, onde desempenhou funções de director-adjunto.
Em 1952 dar-se-ia o lançamento
da obra Histórias de Amor, trabalho esse que viria a firmá-lo como um cada vez
mais seguro talento da literatura portuguesa até então conhecida. Nela,
notavam-se já os ecos da influência norte-americana que o autor recebeu,
nomeadamente de Hemingway e William Faulkner. Mas só lançaria o seu primeiro
romance no final dessa mesma década, mais precisamente em 1958 – um pouco antes
de Cartilha do Marialva, uma obra-pilar erguida em contornos de ensaio, fulcral
para um claro entendimento de todo o seu trabalho ficcional.
Na década de sessenta viria a
lume O Hóspede de Job, merecedor do primeiro prémio de maior prestígio que
Cardoso Pires recebeu, e O Delfim, para muitos críticos considerada a sua magnum
opu s– embora a essa epígrafe também se possa acrescentar, com igual segurança,
a Balada da Praia dos Cães, lançada em 1982. Esse trabalho, a par de mais uns
outros, acabaram por permitir em si a impressão do cunho político do autor, um
simpatizante dos ideais comunistas, bem como a sua luta contra o regime
fascista, mesmo que à data da edição da dita obra já a democracia se instalara
no país (somente o relato aí exposto remete o seu leitor para os tempos
ditatoriais). Foram também estes dois títulos os únicos transpostos para o
cinema, respetivamente em 1987 e 2002.
José Cardoso Pires ainda
leccionaria literatura portuguesa e brasileira em Londres durante dois anos,
experimentaria as singularidades da dramaturgia e a singela frugalidade da
literatura infantil. Ambas as incursões registaram assinaláveis sucessos. Assim
não se estranha o outorgamento, já na década de noventa, do Prémio
Internacional União Latina e do Prémio Pessoa – pela ordem da enumeração atrás
elaborada, recebidos em 1991 e 1997. E é esta última data que fará a ponte com
a obra que hoje escolhemos discutir e, com isso, propor a sua investigação por
parte dos leitores mais interessados. Quem sabe até se o caso neste livro
relatado não terá sido mesmo o impulsionador para a uma tão pronta atribuição
desse prémio? Embora a sua justiça não se discuta, sabemos como se condiciona a
escolha de um determinado autor com obra feita se este se vir a braços com
graves problemas de saúde, não que tal fatalidade amoleça os corações do painel
de jurados, mas certamente se torna mais condigno premiar o visado enquanto a
vida dentro dele ainda lateja. Pois quem pode realmente desfrutar de uma
atribuição póstuma? Não há dúvida de que certos acidentes de percurso lembram
ao Homem o quão frágil e efémera é a sua existência…
Pois bem, acontece que em 1995
José Cardoso Pires sofre um acidente vascular cerebral (AVC) que lhe causa uma
perda de memória total, afectando gravemente a sua capacidade de escrita e
fala. Seria um período que o próprio designou de «morte branca». O efeito foi
de tal modo nefasto que inicialmente as entidades competentes não acicatavam
com veemência as suas hipóteses de recuperação.
Apesar de
posteriormente ter perdido o registo memorial de muitos episódios caricatos, o
autor relata que, durante o sucedido, era comum ele servir-se de uma escova de
dentes para pentear o cabelo. Isto e também a constante confusão quanto ao nome
dos objectos mais banais (chaves, pente, lâmina de barbear). Apenas o primeiro
episódio de um longo percurso, é claro, onde o próprio chegou mesmo a colocar
aquela que talvez se considere a “pergunta de limiar”, para além da qual já só
um abismo absurdo subsiste: «caminho para a loucura, a questão chegou-me com
uma insistência passageira, mas no estado em que me encontrava o que seria para
mim a loucura?». Um autêntico estranho aos olhos de si mesmo, não sobrem
dúvidas, sendo por isso totalmente justa a designação que ao longo da obra
Cardoso Pires utiliza: «esse Outro que eu sou» – «não era mais do que uma
sombra saída de algures de mim».
Constatamos, portanto, que o
presente livro reúne um conjunto de crónicas cuja narrativa se ergue do relato
de todo o mais pertinente sucedido daquele tempo tão sombrio para o autor e sua
família. Deparamo-nos com textos de forte pendor “clínico”, digamos assim, característica
essa que os destaca pela originalidade apresentada, já que exercícios do
género, ao longo da história da literatura, terão sido manifestamente raros. João
Lobo Antunes, médico neurologista e amigo pessoal do autor, aponta isso mesmo
no prefácio que em estilo de missiva assina nesta obra. Vejamos:
"(…) é
escassa a produção literária sobre a doença vascular cerebral. A razão é
simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio
por onde ele se escoa (…)"
O livro
revela-se do mesmo modo um forte atestado da perseverança de um homem diante do
abismo da morte, da sua obstinação convicta quando confrontado com a mais eficaz
das catástrofes. Afinal, cada texto surge de horas e horas de exaustiva e
paciente recuperação de memória, fala e capacidade escrita para se tornar um
símbolo do não-conformismo perante certas inevitabilidades ou desígnios de um
qualquer destino sem rosto. Cardoso Pires nunca abdicou daquilo que melhor
sabia fazer: escrever, claro está. Nem mesmo em circunstâncias tão extremas.
Não nos legou um romance floreado, como se vê, antes um testemunho de um tempo pessoalmente
árduo onde, por semanas, deixou de ser quem era. E a prova de que ainda seria
capaz de exercer primorosamente o seu ofício de eleição encontra-se
brilhantemente organizada nesta obra de nome sugestivo: De profundis – pois
trata-se de relatos oriundos da profundeza de uma memória tomada de assalto,
dos confins de um cérebro ferido quase de morte; Valsa lenta – tão lenta, mas
suave, de encanto pausado, como a custosa recuperação daquele que sem o querer
a dançou.
No entanto,
é importante frisá-lo, o autor não fez disso o seu irradiante baluarte; aliás,
o próprio, no término da obra, despoja-se de todo e qualquer pretensiosismo
sobre o que quer que seja que à interpretação do conteúdo da obra se adicione:
«nenhum escritor (…) trabalha a sua obra como se tecesse um requiem de si
próprio». Foi, pois, insistência sua sublinhar que este trabalho surgiu de uma
«comunicação de circunstância», de um mero «apontamento pessoal». E o que foi
dito, dito está.
Regressando
novamente à discussão da obra, observamos também que em determinados momentos
os textos permitem que deles emerja a rudeza naturalmente associada a uma
situação assim, tão crua por suas inegáveis evidências, tão devastadora em
termos pessoais – não só para quem a experiencia em primeira mão como para
aqueles que, de longe, sem possibilidade de esboçar um significativo gesto
salvador, sequer de auxílio, assistem impotentes à descaracterização de quem
tanto amam e estimam. Logo na abertura da narrativa deparamo-nos com um exemplo
assim:
Foi numa
manhã cinzenta que nunca mais esquecerei, as pessoas a falarem não sei de quê e
eu a correr a sala com o olhar (…) «Sinto-me mal, nunca me senti assim»
Silêncio
brusco. (…) De repente viro-me para a minha mulher: «Como é que tu te chamas?»
Pausa. «Eu?
Edite». Nova pausa. «E tu»?
«Parece que
é Cardoso Pires»
É assim, segundo nos parece, que
se principiou, em janeiro de 1995, o AVC que temporariamente roubou memória e a
possibilidade de escrita ao autor de que falamos. Muito provavelmente, segundo
o próprio também nos conta, terá surgido na sequência de um aparatoso acidente de
automóvel, sofrido na noite de Lisboa após uma longa (e fatigante) viagem
rodoviária, seguida de um jantar tardio com o escritor Antonio Tabucchi e o
famoso cineasta italiano Marcello Mastroianni. Meses depois, dar-se-ia o caso
que confere essência a este livro.
São de facto impressionantes os
relatos que o autor aqui nos oferece, mais extraordinária ainda a fluidez do
seu discurso escrito, sem espaço para lamentos ou demais vitimizações deliberadamente
destacadas em determinados momentos da narrativa, funcionando assim como um
comovente impulso de vendas. Nada disso. Nem tal coisa se esperaria de um autor
deste calibre. Ao invés, opta sempre pela fiabilidade no relato de cada
pormenor, prova da sua total honestidade laboral («procurei não ceder a
especulações de circunstância»). Mesmo quando os momentos invocatórios apertavam
as feridas de um homem entregue à efemeridade da sua condição:
"(…) foi
naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no
espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem
memória (…)"
Acrescentando,
um pouco mais à frente:
"O que
restaria de mim no homem que ficou para ali estendido à espera de coisa
nenhuma?"
Um aspecto deveras interessante
que daqui se consegue retirar, curiosamente, brilhando assim como uma espécie
de flor resgatada ao coração do espinho, é uma certa paz que deriva desse
processo de completa despersonalização, ao invés do fomento de certos temores
profundos por se não saber quem é, pelo ser se olhar ao espelho e não se saber
capaz de reconhecer o rosto que afinal é o seu – imagem essa aliada a toda uma
história de vida e suas peripécias. A personalidade aparenta assim ser uma capa
que, como tantas outras, pelo peso das circunstâncias, tombou num abismo de
esquecimento. Descerrada essa cortina, surge um ninguém livre de todas as
implicações de se ser alguém, pessoa de seus gostos, estilos, opiniões:
"(…) calmo
sempre calmo praticamente sem palavras mas de quando em quando com a luz
discreta dum meio sorriso para manifestar presença (…)"
O autor, ao
relatar a sua própria experiência, lega a todos nós uma substância passível,
bem vistas as coisas, de profunda reflexão, desde logo encabeçada pela pergunta
que, ao escrever estas linhas, quase tropeça na ponta da língua de quem as
digita: será o Homem somente a pessoa que aparenta ser? Que silêncios cantam
para além da personalidade de cada um?
Mas até uma
tortuosa viagem conhece o seu fim. E esta não foi excepção. Felizmente,
poderemos considerar bem-aventurado o término da agitadora experiência, sorte
que não assiste muitos dos que se vêem a trilhar tais caminhos. Quem sabe se
pelas artes da osmose ou pela feliz concordância dos destinos implacáveis,
também os companheiros de quarto do autor, Martinho e Ramires, esses «dois
passarões arruinados», obtiveram a sua salvação – eles que em diversos momentos
permitem o extrair de retratos que mergulham fundo nas fragilidades humanas,
embora quase sempre regados pelo bom humor que sabiam cativar, essa eficaz arma-disfarce
contra as ameaças dos mais sombrios horizontes da vida humana. Mas voltemos às
palavras do nosso escritor:
"(…) reviver
a casa e o mundo e voltar à escrita e aos livros nas últimas linhas em que os
abandonara".
Num golpe repentino tinha perdido a inteireza da fala, no mesmo golpe tinha perdido os valores da grafia e ficara analfabeto de mim e da vida. Subitamente também, retomara tudo isso mas foi preciso algum tempo para começar a ter consciência de tamanha felicidade.
Num golpe repentino tinha perdido a inteireza da fala, no mesmo golpe tinha perdido os valores da grafia e ficara analfabeto de mim e da vida. Subitamente também, retomara tudo isso mas foi preciso algum tempo para começar a ter consciência de tamanha felicidade.
E com elas encerramos o nosso
texto de hoje, como tantas vezes já o fizemos, pois o destaque, a existir neste
espaço, somente poderá calhar ao discurso daqueles que tanto nos têm dado ao
longo dos séculos, seja ideologia ou sentimento, a instrução na arte de
questionar ou simplesmente a valorização do pensamento livre, tudo isso sob os
mais variados estilos e sob as mais variadas formas. Um livro não deixa de ser
a partilha de um pedaço de coração, tão humano quanto o nosso. E assim, de um
modo tão peculiar, a cortina densa que os quotidianos cinzentos alimentam ganha
um novo rombo na sua escuridão opressora. De certa forma, a solidão abandona o
seu abraço sufocante.
"Dois anos.
Já dois anos sobre isto e só hoje é que dou por encerrada para sempre a minha
viagem à desmemória, arquivando-a nestes apontamentos escritos à deriva por
indícios trazidos na corrente. Vou interrogando e retendo, apurando a
caligrafia na recomposição, e quando chego ao convite do meu companheiro de
hospital para uma celebração de lagosta com champanhe, não hesitei em fechar e
pôr assinatura no texto. Disse e vivi, Acta est fabula"
Ligações a esta post:
>>> Notas sobre O Delfim
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Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e
re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados
preservam-se a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado
em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente
centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus
trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de
poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias.
Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e
blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos
livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras
de luz (2012), O velho sábio das montanhas (2013) e Cristal (2015).
Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor
– Recortes do Real; Pedro
organiza também o Uma
luz a Oriente, onde partilha poemas de origem oriental.
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