Descobri que estava morto, de João Paulo Cuenca
Por Pedro Fernandes
Este livro
de João Paulo Cuenca aparece como uma peça rara na extensa produção literária
na última década no Brasil porque reintegra a nossa tradição com uma das vertentes
da literatura latino-americana melhor desenvolvida – a do realismo mágico.
Claro que não inaugura esse diálogo porque esse é já uma parte de nossa
tradição representada por obras de extrema valia como as de um José J. Veiga ou
um José Cândido de Carvalho, para citar dos exemplos. Mas sua retomada, ainda
que não em sua inteireza, porque o tom aqui prevalece na atmosfera que envolve
o relato, é, reiteramos, uma acertada decisão para um escritor cuja obra
encontra-se ainda na jovem fase de busca pelo acerto estilístico. Talvez seja
preferível enxergar nessas raízes não propriamente um realismo do tipo mas uma
forma do que honestamente chamaríamos por realismo insólito, aquele cuja narrativa é decorrente de uma situação embora quase trivial coloca os envolvidos nela, de um instante para outro, numa redoma na qual nunca esperariam estar.
Nessa linha, Descobri que estava morto é ainda uma
daquelas peças que combinam abertamente o tratamento do vivido com o do
imaginado cujo exemplo melhor realizado na produção literária recente no Brasil
é o romance O irmão alemão, de Chico
Buarque. A partir de um acontecimento vivido pelo escritor em 2011 – a
descoberta da existência de um cadáver identificado com seus dados de
identificação – desenvolve-se um romance que é investigação sobre o acontecido
e, no plano literário, transmuta-se na já famosa mas não vencida questão da
morte do autor. Nos dois casos, estamos confrontados não com um defunto autor,
para recobrar o tom machadiano em Memórias
póstumas de Brás Cubas, mas a afirmação de outrem sobre a morte de alguém
que permanece vivo: um, porque não é a figura real determinada na extensa
papelada de identificação do morto e o outro, porque ainda que se fale na morte
do autor, não dá para levar a sério o automatismo de uma obra literária. Isso não significa dizer que a criação machadiana não tenha aqui seu reaproveitamento. A narrativa desse romance culmina com uma paródia ao famoso defunto autor, quando o leitor se encontra, depois das dois primeiros casos, a voz possível do morto com a identidade do escritor.
O episódio
do acaso, por isso insólito, torna-se não apenas em problema cuja solução terá
de buscar a personagem principal, mas em invólucro a partir do qual se constrói
o tom em suspenso que adquire a narrativa. Ciente da situação, o que leitor
acompanha, é não diretamente uma crise de identidade do vivo na relação
duplicada que assume com o morto, mas o mergulho, enquanto espera uma solução
para o caso, numa redoma ora onírica como se tudo se tratasse de um daqueles sonhos
entre o sono e o acordado do qual costuma-se demorar para acordar, ora
semirreal, devido à maneira como o protagonista se relaciona com toda sorte de
situações fora do fluxo normal das coisas
indefinidas e simultaneamente definidas temporalmente. É sua condição de
distanciado que coloca o relato em suspenso com certas cores da palheta
kafkiana.
Agora, há
uma força animadora na narrativa de Cuenca que é a tentativa de reprodução de um
retrato do Brasil do início da década – o de um país cuja pungência ganhava
outros impulsos, um daqueles arranques numa direção capaz de nos fazer sair da
condição de periferia global. Toda essa euforia especulativa, entretanto,
nutre-se, pela maneira como o protagonista do romance se relaciona seja com as
opiniões seja como dizíamos com as situações, de uma expressão crítica muito
coerente; não se trata da feitura de um espírito desacreditado e mergulhado num
marasmo em que tudo ao seu redor, ainda que sejam flores, é o prenúncio puro e
simples da catástrofe. É a mirada de um cético – o mesmo que custa acreditar na
descoberta de um morto com sua identidade – e preso ao dado histórico que não o
deixa mentir sobre a maneira diversa assumida pelo país para projetar-se
enquanto grande nação só serviu aos interesses escusos dos que sempre se
desviaram do interesse pelo coletivo para pensar nos projetos individuais.
É aqui que aciona
uma aguda denúncia sobre as constantes investidas sobre o apagamento da memória
da gente comum que de fato sustém toda a engrenagem social; desde a retomada
dos tempos imemoriais da escravidão, quando o país colônia tornou-se o maior
entreposto de negros escravos entre os séculos XVIII e XIX à matança
indiscriminada de seus descendentes na periferia do Rio de Janeiro pelo
envolvimento com o tráfico de drogas – a mesma droga que circula livremente
entre a gente que os condena.
O narrador, preso a uma festa de bacanas da zona
sul carioca, aproveita o bizarro, o tom das falas, depois de circular pelo
cenário possível do crime, onde foi encontrado o corpo com sua identidade e
constata toda sorte de apelo financeiro no que a elite chama de revitalização
urbana da cidade, para não poupar abrir uma crítica muito conveniente para os
atuais tempos: a exposição da relação assumida entre os diversos setores sociais
(o da classe política, da polícia, da mídia etc.) em nome de um único
interesse, o de enriquecer ainda mais ou esconder os mandos contra a gente simples, sempre a sacrificada em ocasiões quando a soberania dos ricos é posta em xeque.
O tema chega ao romance através da discussão sobre o apagamento da memória numa
cidade mestra nesse crime se formos lembrar sobre as diversas vezes em que se
tentou incutir um modelo chamado moderno e civilizado sempre almejando o
apagamento e silenciamento do que verdadeiramente nos defina. Nessa denúncia
sobre as relações de classe sequer poupa seus antepassados para expor de
maneira muito contundente que sobre nossas costas pesam culpas que não nos
permitem dizer que se pode falar, no Brasil, sobre glórias, honras, tampouco em
distinções de raça, numa clara alusão ao debate ainda caro da diferenciação
entre brancos e negros, entre cultura civilizada e bárbara.
Questões sociais à parte, o livro de leitura fluente, capaz de, quando muito, preencher uma tarde agradabilíssima, é um projeto bem realizado: quatro planos, como quatro grandes tomadas cinematográficas, que confluem. Como leitor, só gostaria de deixar um alerta, que o escritor não caísse em continuísmos, dada a indeterminação do narrado. Séries cansam. E Descobri que estava morto tem já sua medida justa, equilibrada. O mesmo não poderia ser dito se o escritor reabrisse o caso. É o preço que se paga quando se constrói castelos de ar com linguagem, para recuperar uma expressão que, noutra ocasião, utilizei para tratar da narrativa de Chico Buarque. O plano narrativo assim como situação que acontece é captada pelo narrador é a principal característica que faz desse romance uma intriga das boas.
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