Lawrence Ferlinghetti
Lawrence Ferlinghetti numa leitura pública no Jazz Cellar |
A Geração
Beat não está tão longe de nós – espacial e temporalmente. Ainda que muitos
continuem a acreditar que todos os nomes que deram forma a uma das estéticas
mais importantes da literatura estadunidense contemporânea só estão acessíveis
pela leitura de suas obras ainda é possível citar pelo menos numa ocasião dessas
que ainda há alguém biologicamente vivo. Clássico e muito bem vivo, diga-se,
porque está em pleno estado de lucidez e em atividade: com 97 anos, há alguns
meses fez uma participação num sarau em San Francisco e seu livro – o segundo –
Um parque de diversões (publicado em
1958) – ainda é lembrado como uma obra inquestionável para a poesia contemporânea
na literatura dos Estados Unidos.
Agora, além
dessas qualidades, todas elas grandiosas, qual a importância de Lawrence
Ferlinghetti, é este seu nome, nessa ocasião? Ele foi – respondendo com mais
atrativos sobre seu trabalho – o editor do popular e também clássico Uivo, de Allen Ginsberg e esteve à
frente pela liberdade de imprensa e de expressão nos anos 1950, quando os rumos
da tão falada liberdade estadunidense ganhavam uma forma duvidosa. Esses outros
feitos não são nada pequenos se pensarmos que nos tempos atuais é cada vez mais
comum a figura do escritor ou intelectual acomodado ante os desvarios da
comunidade humana como se fosse ele próprio um senhor de que o que lhe rodeia não
lhe atinge.
Para os brasileiros
a obra de Ferlinghetti não é desconhecida – ao menos de um todo. Há dois
títulos que figuram no catálogo da única casa editorial que desde sempre demonstrou
interesse pela literatura da Geração Beat: o já citado livro de 1958 e Amor nos tempos de fúria. Mas a obra do
poeta espalha-se por quase 40 títulos; uma vasta biblioteca para uma geração
que tem outra marca, quase sempre, salvo raras exceções como esta, não esteve
interessada em produzir uma bibliografia muito extensa. Terá preferido investir
toda energia para escrever a obra que colocasse o escritor no eixo da
literatura de seu tempo: foi assim com Ginsberg e o já citado Uivo, antes, com Jack Kerouac e seu On the road ou Burroughs e o Almoço nu.
Mas, os dois
títulos de Ferlingheitti são suficientes para mostrar grande parte do fulgor
literário e crítico de alguém que, sem qualquer dúvida, foi um dos envolvidos
na construção do espírito transgressor na literatura contemporânea – alguém vindo
da estirpe do Renascimento de San
Francisco, território para o qual se mudou ainda nos anos 1940, motivado
pelo boom da cena cultural desse período.
O poeta fundou
o selo City Lights – editora,
livraria e revista que são fundamentais para a aparição dos Beat; basta lembrar
que grande parte deles, para não dizer todos, teve grande dificuldade de se
inserir nessa fechada confraria que é o território das artes. Foi a casa de
Ferlingheitti que recebeu e apostou em figuras como Charles Bukowski e coleção
de poesia que foi inaugurada com a publicação de seu primeiro livro, Pictures of the gone world, recebeu o
mais importante título de Ginsberg, publicação que levou Ferlingheitti ser
preso por incitação à obscenidade; atenta ao espírito crítico, foi dela também
o mérito de publicar obras como Noam Chomsky – o conceituado linguista que se
tornou depois uma das vozes mais atuantes contra os desvarios da sociedade e da
cultura capitalista.
Por longa
data seu nome se manteve nos bastidores da cena literária; em parte porque sempre
se viu como um fomentador e não um “produtor” da literatura, em parte porque
esteve eclipsado – mesmo não esquecido dos seus contemporâneos – pela portentosa
notoriedade de um Allen Ginsberg, o talento selvagem de um Kerouac ou ainda a
peculiar violação da linguagem de um William Burroughs. Nesse último caso,
pensemos: se já é ousadia brilhar num universo feito de uma só estrela, imaginem
o que é angariar luzes num cuja força vem de uma constelação.
Mas o tempo
tem sido generoso com quem nunca se descuidou da voz alheia – porque viu sê-la
distinta e primordial para a oxigenação da atmosfera literária na qual
respirava – e do próprio trabalho silencioso com a linguagem. De modo que, nessa
altura, Ferlinghetti tem sido motivo de vários reconhecimentos oficiais dentro
e fora de seu país; em todas as ocasiões fez-se voz ativa por “um mundo seguro
/ para anarquia”; é o poeta acrobata e hiper-realista que “escala sobre a rima
/ executa piruetas / e de pela força perceber / a tensa verdade”; é o surfista
em busca d’“a onda perfeita / com o perfeito ritmo sublime”, que busca a luz
infinita ou “o pequeno charles chaplin /
no ar vazio / da existência”.
Com um estilo
marcado pela oralidade, muito joguete com a linguagem, e extrema ironia, em
poemas curtos ou em fluxos discursivos, Ferlinghetti é um cronista do instante
e do cotidiano; alguém que contempla e retrabalha as situações até torná-las em
absurdo porque quer saber o que há no fundo de sua existência – essa inquietação
não-rara entre os trabalhadores da palavra – (“Espero que alguém descubra realmente
a América”) e no satírico a realidade sem subterfúgios (“A roupa interior
controla tudo em última instância”). Mesma na poesia, a palavra lhe serve para bofetear
“o império invisível / do genial capitalismo abutre”, o credo do consumo que “come
a terra e o homem / disfarçado de democracia”, sem esquecer do aparelhamento econômico,
midiático, do governo e das forças militares – Ferlinghetti foi veterano da
Segunda Gueirra Mundial; em serviço percorreu lugares com a Normandia e
Nagasaki.
Seu discurso
lírico não apenas está a serviço de uma profunda revisão da consciência política
a ponto de assumir-se como um discurso militante como não se descuida de
explorar temas de ordem metafísica, como a eternidade, a beleza, a
espiritualidade ou “o renascer do sentido do belo”; aponta em sua poética
múltiplas alusões culturais e históricas – nenhuma delas gratuita mas nascida
da convivência com academia (Ferlinghetti tem doutorado pela Sorbonne) e com a
cultura de outros países (viajou por Espanha, Itália e outros países como
corresponde para periódicos estadunidenses, entre elas, a revista Time).
A grande pulsão
da vida de Ferlinghetti é a de levantar os de sua comunidade (escritores e
leitores) a sair da letargia a que foram submetidos pelo modus vivendi do capital; que sejam figuras ativas, atuantes pela
renovação das formas de existir e estar no mundo. É um poeta que constantemente
revisa seu labor literário como quem sabe que o valor de peça dessa natureza
passa pela lapidação do criador e se em seu Manifesto
popular (1974) clamava “temos visto as melhores mentes de nossa geração / destruídas
pelo tédio dos recitais de poesia” e “as crianças selvagens de Whitman seguem
dormindo por aí. / Despertem e caminhem ao ar livre”, em Adieu a Charlot (1979) perguntava “poetas de outra visão / Quem
dentre vocês fala ainda em revolução”. E insistia dizer em Poeta cego, “Vou ver o mundo real / Consegue tua própria venda para
os olhos / Não pode ser aminha / Terás que encarar o mundo sem ela” e em seu
mais recente título de poesia, Blasts,
cries, laughter (2014), onde atira contra Barack Obama e seus aviões não tripulados,
pergunta ao leitor qual é seu lado na guerra contra o Terceiro Mundo, ou
proclama, “o primeiro grande dia da Ocupação de Wall Street / para implantar
sobre este continente uma nova nação”.
Desde a
década de 1950, Ferlinghetti não parou de publicar; a vasta obra não é composta
só por poemas; na prosa, há, além de Amor nos tempos de fúria, títulos como Her
(1960) e Tyrannus Nix (1969) e no
teatro Unfair Arguments with Existence
(1963) e Routines (1964). Trata-se de
um nome cuja atenção sobre seu trabalho é indiscutível.
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