“Minha salvação é a literatura”. As cartas do jovem Roberto Bolaño
O jovem Roberto Bolaño em Espanha, no final dos anos 1970. |
O leitor de
Roberto Bolaño conhece Noturno do Chile,
um denso monólogo construído de apenas dois parágrafos em que o narrador, o
padre Sebastián Urrutia Lacroix, repassa de modo febril sua vida de poeta e
crítico literário, procurando uma resposta às inquietações que o assaltam já
próximo da morte. Qualquer semelhança,
sobretudo estética e atmosférica, entre este
romance e a carta que o ainda adolescente Bolaño escreve à sua mãe na década de
1970, quando realiza uma de suas primeiras viagens sozinho, pelo interior do
Chile, não será mera coincidência.
Sim, saem da
mesma cabeça, mas não só isso, a carta em questão foi escrita num dos momentos
mais férteis de formação do imaginário literário de um escritor. Também o
leitor encontrará essa necessidade de dizer tudo a um só fôlego na missiva em que
descreve, abismado com tudo, sua trajetória fora de casa ou do círculo marsupial.
A carta é
apenas uma da série de missivas reveladas há alguns meses pelo caderno Confabulario do jornal mexicano El Universal. Na mesma carta à mãe,
quando ainda não havia publicado grande
coisa, é a ideia de ser o escritor aquilo que define, na cabeça do jovem Bolaño, sua profissão: “quando me perguntavam se estudava ou se trabalhava eu
dizia, grosseiramente, ‘Sou EscritorRRR’”.
As demais
correspondências foram escritas para o pai e datam do final da década de 1970. Na época,
Bolaño, sua irmã e sua mãe haviam se mudado para a Espanha. Com o divórcio, o
pai ficou no México e casou-se novamente. No diálogo quase monocórdico o jovem
dá informações sobre suas condições na Europa: os trabalhos diversos pelos
quais passa ao longo do ano, tudo porque não suporta a ideia de ser um funcionário
com profissão fixa – das colheitas de uva e abacaxi às atividades num banco e
de lavar barcos e, claro, as primeiras incursões como escritor, encantado ainda
pelo ofício do verso (é sabido o amor que Roberto Bolaño dedicava pela poesia e
o desejo de se tornar poeta).
Ao pai,
grande parte das correspondências dessa época – para citar a insistência em
determinados temas – a cobrança é sempre financeira; quando não, a necessidade
que tem de vê-lo mais próximo da antiga família, seja pela insistente cobrança
de não esquecer de responder às suas cartas e às da irmã, como um desejo de
integração entre as duas famílias, ao menos no seu plano individual. Bolaño
mostra-se muito apegado à nova companheira do pai e fica em polvorosa ao saber
da chegada de um irmão e depois de uma irmã.
Mostra-se um
Bolaño pouco afeito aos fluxos da política, tal como se lê na carta à mãe,
sobre sua atuação indireta nas passeatas que tomavam às ruas em favor e
contrárias a Salvador Allende; é alguém que não compreende ao certo a quase
devoção das moças e crianças à causa política e que olha com certo desdém a
atividade cruel da ditadura contra esses grupos.
Por fim,
salva-se a ideia de que o espírito ligado à escrita estava, desde cedo, encarnado
nele; não apenas por se reconhecer escritor, mas pelas perquirições ao começar com as colaborações no caderno literário mexicano Plural; Bolaño cobra ao pai pela leitura de
seus textos e que guarde as publicações, visto haver certo distanciamento entre
ele e os do comando do periódico. São, portanto, a exposição viva de alguém em
pleno fazer-se adulto e fazer-se escritor.
As cartas estão à disposição, pela primeira vez do leitor brasileiro, no catálogo abaixo com um ensaio foográfico também inédito de quando Bolaño estava em Espanha entre o fim dos anos 1970 e início da década seguinte.
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