Um teatro às escuras, de Pedro Tamen (Parte 2)

Por Pedro Belo Clara



Entre os avanços e os recuos das figuras centrais à obra, Ele e Ela, as suas súbitas certezas que logo se transformam em dúvidas dobradas e ansiedades frementes, desaguamos numa espécie de clímax que só o é graças a um maior descortinar do mistério instalado. As questões sucedem-se naturalmente, é claro, assim como os poemas, mesmo que a sua aparição só contribua para o adensar da perdição instalada devido ao seu efeito repetitivo: «Como te posso amar se não te vejo»?; «Este escuro é morte?».

Uma voz do público, até aqui emudecida, traz um prenúncio de luz:

Mas onde está ela, onde está
ele, onde está esta gente
(…)
nisto que não existe
(…) ?

E então desembocamos no admitir do teatro como um palco de indagações por excelência: «E porque é que todos aqui nos perguntamos? / Porquê tantas perguntas?». Assim como o momento mais escuro da noite é aquele que antecede a aurora, também aqui o instante de maior desnorteio abrirá caminho para o retorno da luz. Nesse exacto momento, sublinha-se a sua expressa necessidade. Tal é vincado pela personagem Ela, de início tão titubeante e insegura, agora num momento de clara sapiência: «Um caminho pode ser a luz ausente». Poderá, assim, a escuridão, que nas personagens removeu a memória de quem eram, servir de prelúdio à luz, reveladora das suas autênticas identidades?

A questão pairará no ar, e antes que possa obter a devida resposta, Ela, novamente, num dos poemas mais acutilantes deste trabalho, expõe a dúvida maior:

Não te vejo mas vejo
um qualquer fogo sobre mim pairar.
Se mais ninguém o vê, nem sequer tu,
que fazemos aqui (…),
e que teatro é este em que nos movemos?

Que fazemos aqui, quando não sinto
uma força de carne
e um luar nos olhos?

Servindo o teatro como uma perfeita metáfora da existência, e no segmento das inquietações de Ela, perguntamos: o que é a vida quando não a sentimos? Quando a escuridão invade cada recanto e, num mundo desprovido de cor, a mera ideia de existir parece tão absurda como cómica?

Na sua primeira e única aparição, o Electricista, além de se expurgar de responsabilidades pelo sucedido, revela-se a primeira das personagens a atingir um elevado grau de discernimento em relação à ocorrência. É claro que questões como as que Ela colocou são necessárias, pois só elas alongarão a estrada onde a busca é levada a cabo até ao instante em que a sua inutilidade é aceite, dando assim espaço para o ansiado retorno da luz. Porém, duma clara observação, como aquela que o Electricista realizou, um entendimento mais vasto num célere instante pode ser revelado:

Eu não tirei a luz,
eu não sou o pai da escuridão:
foi um fogo,
o que desceu do céu
(…)

Sei hoje o que não tinha sabido.
Não sou todo, sou parte.

O derradeiro verso do poema que marca a sua única intervenção reveste-se de uma significância extrema: «Não sou todo, sou parte». Em tom sentencioso, mas sem se expurgar da certa dose de humildade, a personagem recorda a verdade que a escuridão ajudou a lembrar: a identidade individual não passa de uma ilusão. O “todo” que julgavam ser, afinal não passava de um mero fragmento. Só ao ver-se (e aceitar-se) como “parte” é que o Electricista abre em sua consciência espaço a algo que o transcendia, algo que, em funda verdade, também dele fazia parte. Uma espécie de personalidade além-personalidade, portanto.

Naquele teatro, todos, mesmo sem o saberem, são uma coisa só. Aplicando esta compreensão à existência humana, teremos sem dúvida uma percepção de cariz universal sobre a vida em si: o Homem não vive isolado da restante existência; o Homem e os demais seres são a própria existência. É um fundamento de bases quase divinas sobre o conhecimento do Homem que na fala do Electricista se permite explorar.

Quanto aos amantes, esses continuarão a sua busca e aproximação até ao término da obra. Por isso, não se estranha o ritmo que se sente nos derradeiros poemas, próprio em algo que, a cada passo, mais próximo se encontra do que tanto buscara. «Sei que existes, e nisto se resume / o estar aqui (…)» – dito por Ele, prova como os amantes encontram o propósito da sua existência («(...) já não sei se é palco ou vida») no coração daqueles que amam, e desse encontro fazem a mais sólida razão da própria vida. Compreensivelmente, a crença num desfecho favorável, à parte toda a turbulência da viagem, sai reforçada por cada privação ultrapassada: «Piso estas tábuas e rebrilha / a crença em qualquer coisa que aconteça» (Ela).

Antes falámos sobre a sensação de vazio que a escuridão fermentava nas personagens desta “peça poética” e na sua capacidade de apagar personalidades. No caso do Electricista, como vimos, foi capaz de lhe recordar a identidade primeira, aquela que sempre cintilou além-ilusão. Os poemas finais deste livro, praticamente a cargo de Ele e Ela, irão desenvolver esses tópicos e aplicá-los à realidade daqueles que ainda não experienciaram tal revelação. Desde logo, pelo Ponto, isto é, o próprio ponto existente no palco que também para a obra serve de personagem, ele que desvendará o carácter infinito dessa origem, dessa natureza que poderemos chamar “real” ou “verdadeira”: «não há caixa onde o vazio caiba». A vera identidade é assim uma espécie de nada, pois na mais divina natureza o ego, ou a personalidade que se teceu de memórias, não pode subsistir.

De seguida, Ele assume um momento de profundamente eloquente onde a razão mais profunda da existência poderá ser descoberta:

Nascemos vindos do escuro
e ora de repente aqui voltámos
ao escuro onde de novo nos fazemos.
E assim se faz fértil o negro nada
pelo qual perpassamos para o dia
de não ser preciso procurar
a mão ignorada que estendemos
(…)

E se o Homem for, na verdade, Deus? Um raio de luz oriundo de um sol imenso? Todos os Homens, na sua mais remota origem, não cessariam assim de ser uma coisa só. Dotados de um corpo próprio, sim, mas removido o ruído da personalidade, não teremos o silêncio do divino? Parte-se, portanto, do fragmento para a unidade, da antiga “unidade”, que agora se revela fragmentada, para uma “unidade universal”. E os amantes provam-no: «E até lá nenhum de nós está só, não há escuridão que nos separe.» (Ela) ; «Tocas o próprio corpo / e assim te vês. (…) / (…) // Assim te vês agora. E em breve me verás» (Ele) .

De facto, não tardará. O último poema do livro, construído em diálogo alternado, marcará a realização mais ansiada: «– Pressinto um outro mundo. // (…) // – Estamos aqui parados / até que a luz nos veja».

E de súbito a anotação final desvende o mistério:

Vem a luz.
O Teatro ilumina-se.
O palco está deserto.

Como se todos os participantes se tivessem dissolvido nas partículas da luz então reposta, damos nós, na condição de leitores, com o completo vazio do cenário onde tanto acontecera. E essa, sem dúvida alguma, será a fina espuma da magia maior oferecida por Um teatro às escuras.

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Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).

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