Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony
Por Rafael Kafka
Carlos Heitor Cony (detalhe). Paulo Monteiro |
Um dos debates mais acirrados do século XX no campo
literário é sobre qual seria a posição do escritor diante dos mais diversos
conflitos políticos que nos cerceiam. Para muitos, a função do escritor é
simplesmente escrever, nem sendo obrigado a falar daquilo que é objeto de
angústia para muitos seres humanos em determinado momento. Para outros, o
escritor deve engajar suas letras e se possível até mesmo pegar em armas para
chegar a uma mudança política concreta.
O livro que
melhor me deu uma resposta sobre isso é (o bastante citado por mim) ensaio de
Jean-Sartre O que é a literatura?. Nesse texto, Sartre fala que a literatura é
uma relação entre escritor, leitor e objeto de leitura e que o escritor escreve
sobre aquilo que ele julga importante. Se não fala da miséria, da pobreza e do
que as origina isso denota que para este escritor tais temas não são importantes.
Em uma interpretação radical dessa leitura, podemos dizer que todo escritor é engajado a uma visão de mundo.
Os
escritores românticos, por exemplo, falavam do que era vivido por ele e sua
classe econômica. Os simbolistas malditos agiam como rebeldes sem causa por sua
pouca força para romper os elos com essa mesma classe social que se afundava em
salões de festa e boemia. Os existencialistas falarão de cafés e viagens por
ser esse o clima existencial do momento vivido por eles. Todos nós somos
leitores de mundo e falamos daquilo que lemos do mundo que se encontra ao nosso
redor. O exercício de leitura, porém, exige, para receber o rótulo de crítico,
uma constante releitura de si mesmo que o leva à amplitude de seu alcance. Um
leitor que se fecha em uma única leitura de mundo, ou a um único gênero
textual, é um leitor preso em suas amarras, sem coragem, provavelmente, de
romper os limites de seu olhar para novas coisas que se encontram mais à
frente.
Isso nos
faz pensar naquele escritor burguês tradicional, o qual longe de todos os
conflitos sociais julgava ser a arte algo sublime que não deveria perder tempo
em falar das coisas baixas da vida. Para este escritor, falar do sabor sublime
dos vinhos e da beleza etérea de belas mulheres era fazer arte pura, arte
limpa, arte burguesa. Os grandes movimentos literários do século XX, todos com
raízes modernistas, contestarão o próprio fazer artístico tradicional e por
isso acabam criticando bastante da própria estrutura social, mesmo quando não
há neles uma agenda revolucionária, caso da literatura beat. Se antes a arte se
preocupava em falar da vida do homem economicamente bem sucedido, agora os
indivíduos marginalizados, do povo, são os protagonistas das grandes obras
literárias. Por conta disso, tais obras acabam servindo de grandes instrumentos
de denúncia social, mesmo quando elas estão bem longe de almejarem este objetivo.
Mas
voltemos a falar daquele escritor burguês que se propõe a fazer uma arte
sublime a qual reflita o seu cotidiano. Um belo dia, ele expande sua leitura de
mundo e passa a enxergar o que se encontra além de sua existência individual e
rotineira. Quem sabe, ele já enxergasse aquilo e apenas se negava a entender as
relações presentes entre a sua existência individual e a existência de
coletividades as quais eles provavelmente nunca dera a devida a atenção. Talvez
seja neste momento que ele se proponha a fazer uma reflexão a qual o leve a
finalmente perceber ser impossível querer viver em uma redoma protegido do que
ocorre lá fora.
Na vida
real, há uma situação ligada a Sartre que geralmente serve de explicação para a
mudança de rumos encontrada em sua filosofia. Tal situação é sua prisão pelo
regime nazista, fato que o leva a refletir sobre a impossibilidade de ficar
quieto em seu canto enquanto lá fora o mundo transcorre impassível. De uma
forma ou de outra era preciso agir e Sartre volta para Paris determinado a
convocar o povo de sua cidade para uma luta, mesmo que intelectual, contra os
ocupantes da cidade e seus colaboradores.
A partir de
então, passa a montar peças e outras ações de cunho clandestino que provocam em
massa considerável da população parisiense o desejo de uma revolução contra a
situação corrente. Sartre diz sobre esse período que o que levou a mudar sua
posição foi justamente a impossibilidade de não se sentir tocado por tudo
aquilo que ocorria no mundo, situação que mais cedo ou mais tarde iria afetar a
sua existência e a de seus pares.
Em suma,
uma situação forçada, uma prisão, fez Sartre acordar para o que se passava ao
seu redor. Em seus diários, ele diz não se sentir na guerra e sentia apenas sua
presença em um ambiente hostil pela preocupação sentida por Simone de Beauvoir.
Ao sair dali, com a mente modificada, passou a engajar sua filosofia e sua
literatura na luta contra todas as formas de opressão.
Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony relata o tema discutido até aqui de forma
magistral. Por meio de uma narrativa seca, direta, ácida, Cony mostra como os
fatos são mais fortes do que nossa vontade de nos envolvermos em problemas
concretos que exigem uma tomada de posição nossa. O romance faz uma clara
alusão ao êxodo hebreu durante a fuga da escravidão do Egito e, conforme
avançamos na leitura, encontramos diversas referências, de forma clara ou não,
quanto ao mito bíblico.
A começar a
idade do protagonista: no dia em que completa 40 anos, Paulo tem uma conversa
com um amigo de nome Sílvio que o coloca a par de um plano de derrubar o regime
ditatorial que impera no Brasil. A idade de Paulo é o mesmo período de tempo
levado pelo povo hebreu para se revoltar e, liderado por Moisés, sair do Egito
rumo à liberdade. Paulo, assim como grande parcela dos hebreus da época, não
quer se libertar de sua situação cômoda, sem sentido, mas cômoda. Os escravos
hebreus tinham toda uma situação de conforto dentro da escravidão, em especial
a certeza de um amanhã certo. Em dado momento do texto, Paulo fala que mesmo
dentro da escravidão há uma liberdade, pois a certeza dada pela condição serve
como paz para muitas pessoas.
Escritor
cujas abordagens giram em torno de temas ligados à existência humana, Paulo é
visto como um homem não envolvido com nada prático, ainda assim considerado de
grande potencial para entrar no movimento. Todavia, ele se nega a todo custo,
dizendo estar satisfeito com sua existência presa aos ditames de alguém que
vive em suspenso, sem desejo algum de engajar. Sílvio, que se encontra
acompanhada de uma camarada de movimento de nome Vera, insiste bastante, mas
não consegue demover Paulo de sua decisão.
O
aniversário de Paulo em seu restante é uma síntese do que ocorrerá durante todo
o livro. Preocupado em escrever e viver o resto de seu dia na solidão de seu
apartamento, o escritor passará o dia todo sendo impedido de manter sua paz por
conta de uma série de fatos que começam a ocorrer, como uma visita inesperada
de sua ex-esposa. No dia seguinte, percebe-se sendo seguido e para sua surpresa
descobre que quem a segue é Vera. Interpelada, ela explica que procura ver em
Paulo algum traço de possível ameaça para os planos do movimento, mas o enxerga
apenas como um homem inofensivo.
Mais a
frente, quando tenta sair da cidade para se concentrar na produção de um novo
romance, Paulo recebe de Vera o pedido de que a tire da cidade do Rio de
Janeiro por conta do medo tido por ela de ser presa pelas forças policiais por
conta de um incidente ocorrido na embaixada dos Estados Unidos. Paulo acaba
aceitando em uma prova de comportamento estranhamente passivo que desde então o
colocará cada vez nas teias de uma complicada conspiração que a princípio
parece algo bobo e mal articulado, mas depois se revela bastante organizado e
intricado.
Por mais
que tente, Paulo não consegue sair de onde se envolve e aos poucos começa a
questionar a si mesmo dos motivos que o levaram a ter aquela existência que
para ele era um grande galardão de liberdade e autonomia, mas de repente começa
a ser analisada por um outro prisma. Em dado momento, Paulo se convence da
farsa que foi existência, algo similar ao que ocorre coma GH de Clarice
Lispector. Esta, ao se deparar com uma barata, percebe o quanto sua existência
era fingida e ilusória: uma circunstância minúscula a fizera rever toda uma
existência a qual fora julgada por um prisma completamente errôneo. Paulo, da
mesma forma, pela força das coisas, percebia que nunca fora livre e passara sua
vida toda fugindo de si mesmo e do mundo: negara-se enquanto judeu e negara-se
enquanto intelectual que deveria fazer algo pelo mundo que o rodeava.
Aos poucos,
percebe que escrever em si de nada adianta. Se queria mudar o mundo, era
preciso fazer algo mais, mesmo que no plano da escrita. Mas a sua mudança é
radical, como que para compensar os seus quarenta anos de escravidão. As armas
acabam seduzindo-o e mesmo diante de um futuro atroz e da possibilidade
iminente da morte, Paulo se encontra feliz por finalmente se sentir integrado
ao mundo e a sua própria existência.
Pessach:
a travessia foi mais um livro lido por mim neste ano com o tema da ditadura
militar. O curioso é que todos os romances possuem uma abordagem diferente de
um mesmo fenômeno político: o fascismo. O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago aborda a
ditadura salazariana em Portugal; Verão no aquário de Lygia Fagundes Telles,
mesmo que tangencialmente, fala da nossa ditadura; A festa do bode de Llosa
fala de uma forma brutal e engenhosa da ditadura ocorrida na República
Dominicana; e Café central, do paraense João de Jesus Paes Loureiro, procura
abordar de forma ampla como a ditadura se deu dentro da cidade de Belém do
Pará.
Todos esses
romances me fizeram atentar para um tema muito caro a mim e que é pouco
conhecido de grande parte da população brasileira, a qual procura soluções
desesperadas para seus problemas sem entender as raízes dos mesmos, muitas
delas encontradas no período de pouco mais de vinte anos que cerceou todas as
liberdades de nosso povo, em especial a de pensar. A literatura com sua capacidade
de recontar a realidade por meio de recursos estéticos variados permite
entender esse período por um outro prisma o qual promove uma reflexão
aprofundada sobre uma época tão mal conhecida de nossa história e que muito mal
ainda nos causa.
Cony, no
entanto, procura discutir, provavelmente influenciado pelas ideias de Sartre,
como o escritor deve agir perante o mundo que o rodeia. A solução do livro é
radical e cabe ao leitor questioná-la ou não. O certo é que como instrumento
provocador, a leitura de Pessach trabalha bem demais, seja por conta da
personagem controversa de Paulo, seja por conta da abordagem muito bem feita de
um tema indigesto que pode ser resumido em uma simples pergunta: quando
sairemos do conforto de nossas cadeiras e faremos o que precisa ser feito?
Por meio
dessa pergunta, Pessach acaba se tornando uma das leituras mais
metalinguísticas já feitas por mim. Há muito de reflexão sobre o próprio fazer
artístico e sobre como o escritor em geral tende a gostar do silêncio para
poder escrever em paz. Porém, se ele se isola no silêncio, sobre o que irá
escrever? Temos diante de nós o paradoxo da condição humana do escritor: ele
tenta fugir o tempo todo daquilo que é combustível de sua escrita: a realidade.
Paulo, como
todo escritor que se preze, mais cedo ou mais tarde se debaterá sobre o que
deverá ser feito de suas palavras. O que deverá ser feito de sua vida? A
reflexão é indigesta, pois além de ser uma provocação a sair do lugar tranquilo
do escritor o qual se contenta em brincar com as palavras, não dá uma resposta
precisa sobre o que ocorrerá em seguida quando o primeiro passo finalmente será
dada. Pessach conseguiu materializar muito bem o que é a angústia de existir.
Comentários