A festa do bode, de Mario Vargas Llosa
Por Rafael Kafka
A festa do bode é o terceiro livro de
Mario Vargas Llosa que leio e o primeiro sobre o qual me decido a escrever. Já
lera dele Conversa na catedral e A casa verde e mesmo tendo sido
profundamente tocado pelos dois grandes romances, em especial o primeiro, não
tive coragem de escrever sobre ambos. O motivo era simples: a grandiosidade do
gênio literário que Llosa se mostrou me assombrou.
Os enredos das duas obras acima citadas utilizam-se de um processo de
construção muito complicado e cheio de artimanhas para prender o leitor. Tendo
como mote uma conversa em um bar e uma antiga casa de prostituição, o Prêmio
Nobel de 2010 constrói uma série de histórias que se entrelaçam, se cruzam e se
remexem numa espécie de quebra-cabeça vivo. São dois ou três focos narrativos
contados simultaneamente em tempos diferentes, com recuos e avanços constantes
no tempo transformando a ação em algo vertiginoso e multifacetado.
Como se não bastasse isso, os temas escolhidos para serem abordados não
são nada simples. Crimes de corrupção, ditaduras militares e seus bastidores de
poder, luta de classes, miséria social, a feminilidade da mulher latina dentre
outros são assuntos que surgem dentro das linhas tortuosas de Llosa que
consegue de forma incrivelmente hábil criar cenários políticos e humanos
repletos de poesia e crítica social. Por conta disso, a sua obra é a todo
instante um convite para uma reflexão visceral sobre temas os quais ainda estão
presentes em nossas vidas, como a corrupção, a violência policial e as marcas
do passado de colonização de nosso continente.
Em seu ato de escrever, Llosa se utiliza de recursos muito caros a
autores como García Márquez e Cortázar no tocante ao uso da estrutura narrativa
como forma de provocação, de convite ao pensamento, de descompressão do ser
leitor. Assim como Gabo, as reminiscências e os avanços no tempo são muito
comuns e mostram o tempo como uma massa amorfa,viva, mesmo dentro de um simples
processo de fluxo de consciência. Por outro lado, é impossível não lembrarmos
de Cortázar com seu O jogo da amarelinha
e suas múltiplas possibilidades de leitura.
Com alguma atenção, podemos pegar as histórias entrecruzadas de cada um
dos romances aqui mencionados e chegarmos à produção de duas, três quatro
novelas que juntas formam um cabedal profundo de experiências articuladas pela
capacidade narrativa do peruano para mostrar como fatos sociais, em sua origem,
são bastante mais complexos do que nossos olhos nos fazem crer.
Impossível também não citar Saramago aqui. Há em Llosa a presença de um
uso experimental da pontuação muito interessante, o qual nitidamente procura
ressaltar a oralidade da linguagem e facilitar o fluxo de consciência,
elementos caros a todo leitor do português também Prêmio Nobel.
O curioso e interessante do realismo mágico é justamente que mesmo com
a presença de vários pontos comuns em seus autores, ao mesmo tempo temos uma
presença marcante de estilos que representam bem a individualidade de cada
escritor. Se Saramago usa um estilo mais fabulesco, Gabo já tem uma linguagem
mais próxima da crônica jornalística pela qual ele era apaixonado, enquanto
Cortázar tem uma linguagem mais parecida com as conversas coloquiais típicas
das cidades grandes e que me lembram, mesmo que de longe, os diálogos e viagens
beats. Llosa já se utiliza de um estilo espelhado muito seu, capaz de ir de uma
linguagem documental para uma viagem mais surrealista e surpreendente em poucos
segundos. Além disso, em Llosa uma maior ambição no tocante a fazer o seu
leitor entender as raízes dos grandes conflitos da atual América latina.
*
A festa do bode é um livro
escrito de forma mais simples. Ainda assim, ele não é uma leitura simplória se
comparado aos livros anteriormente conhecidos por mim. Mesmo que de forma menos
ousada, Llosa aqui aborda um fato político importante por meio de recursos
narratológicos e estéticos primorosos e construindo personagens extremamente
vivas e profundas.
O tema central do presente romance é o período de dominação do ditador
Trujillo na República Dominicana. Tal período dura por mais de trinta anos nos
quais o ditador manobra de todas as formas uma intricada maquinaria política,
com direito inclusive a presidentes fantoches, sem nunca se afastar do poder em
todo esse longo período de domínio sobre um povo. Ao mesmo tempo em que se
aproveita de uma figura histórica cheia de controvérsias, Llosa trata com um
respeito quase místico a capacidade do Benfeitor, como é conhecido por seu povo
o ditador, de causar um imenso fascínio e controle em seus aliados e inimigos.
Ao mesmo tempo em que fala do ditador e suas manobras para se manter
governante, mesmo que de forma não oficial do país ainda nascente, Llosa aborda
outros dois focos narrativos que abordam uma conspiração para a derrubada do
Generalíssimo e a vida de Urania,mulher anteriormente ligada ao regime por ser
filha de um senador muito importante, o qual depois se afunda nas manobras
sujas da roda política de Trujillo. Em cada um desses focos narrativos, temos,
mesmo que de forma ainda não tão trabalhada, os recuos no tempo que procuram
elucidar todo o contexto político no qual se passam os fatos aqui narrados.
Assim como ocorre em livros de Gabo, Llosa se utiliza de um curioso artifício
que poderia tirar o prazer da leitura para muitos, mas que sempre o deixa no
máximo de clima de tensão: o adiantamento de fatos futuros. Mesmo sabendo do
que virá adiante, ficamos presos ao objeto lido, não apenas com o intuito de
chegar ao final, e sim com a ambição de conhecer todos os pontos de vista sobre
uma complexa conjuntura política e sobre uma figura política peculiar.
Aqui mais uma vez vemos o jogo da amarelinha da literatura negando a
ordem lógica do universo. Se o mundo é um ambiente de atroz absurdidade, para
que a arte subverta seus limites ela também deve reproduzir esse absurdo de
falta de sentido e lógica. Nesse sentido, uma narrativa linear se debruça sobre
todo um conjunto de outras narrativas e temos diante de nós um narrador
onisciente que brinca com nosso olhar incapaz de se tornar divino mas que tudo
quer ver. Vemos diversos tempos narrativos, diversos pontos de vista e ainda
assim nos chocamos com uma grandiosidade factual que parece nos ultrapassar o
tempo todo.
O texto é escrito em um ritmo baseado em ciclo de três capítulos. Cada
ciclo é iniciado com um capítulo sobre Urania, outro sobre Trujillo e um último
sobre o complô para matar o benfeitor. Ficamos tentados a ler cada sequência
por conta própria para entendermos de outra forma a história, como se fosse
pura brincadeira de ser livre. Tal esquema é mais simples do que os presentes
em Conversa na catedral, por
exemplo,em que chegamos a ver parágrafos escritos de forma alternada entre
focos narrativos e diálogos que falados em um tempo acabam sendo respostas de
outras conversas faladas anos antes em uma viagem vertiginosa pelas letras do
autor peruano. Ainda assim, como ocorre quando lemos um Claraboia, já vemos bastante presente as marcas dos grandes textos
que viriam a ser produzidos depois desse.
Mesmo nos últimos tempos tendo
assumido posturas políticas mais conservadoras, Llosa tem um lugar muito
marcado entre os grandes da literatura hispano-americana. Algo que o
caracteriza de forma até mais ousada e brilhante do que os outros grandes
escritores é sua capacidade de aliar a história e a literatura em uma produção
artística experimental ao extremo marcada por um desafio constante aos dois
saberes, o histórico e o literário. Em Llosa, parece o tempo todo que
literatura e história estão a romper seus limites próprios e a ficção, que para
muitos é uma fuga da realidade, torna-se uma visão mais aguçada dos fatos
circundantes.
Assim como os demais grandes
escritores dessa escola realista mágica, Llosa se utiliza de figuras do povo,
marcadas pela humanidade excessiva para criar enredos ricos e tocantes. Ao
mesmo tempo, mostra-se profundamente conhecedor das peculiaridades culturais de
seu e de outros países bem como os mecanismos de poder ali existentes que
assolaram durante muito tempo, e ainda assolam, os países da América latina.
A festa do bode e os outros romances de Llosa lidos por mim acabam
sendo verdadeiros tratados políticos sem uma opinião pronta a ser dada ao
leitor. O absurdo presente na narrativa intricada é o desejo de causar no
sujeito que lê tais textos uma vertigem diante da crueldade e da crueza do
real. E acima de tudo é um lembrete de que ditaduras podem surgir a qualquer
momento, bastando haver o clima necessário para elas.
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