Submissão, de Michel Houellebecq

Por Carlos Zanón



No início parece as trombetas de Jericó. Mas no final são só violinos desafinados tocando ao pé do ouvido. Discussão midiática, livro, entrevista, tocata e fuga: um bom suflê. Para alguns, ao ponto. Para outros, demasiadamente amargo. Banal, polêmico, fútil, lúcido ou valente. E de uma forma ou de outra todos falam e muitos compram. Descobrem que dentro do suflê há um livro e dentro do livro um autor com mais ingredientes de escritor do que aparenta. Houellebecq é como escreve. Você ama ou odeia.

Sem seu talento, faro e essa artesanal e personalíssima maneira de urdir sua mecânica intelectual de tese, ficção, autobiografia, piada, sexo mecanizado, suicídio roudinesco e niilismo hedonista, Houellebecq não haveria aguentado nem o primeiro round do combate. Mas segue. Marcando o passo. Gerando debate porque, na sua maneira de expor o feio e não ceder à tentação literária de criar beleza do lixo, nos enfrenta com algo mais doloroso que a nossa própria imagem no espelho. 

Houellebecq levanta o véu a todas as verdades que damos por certas e corretas e que são só construções voluntárias, intelectuais, quimeras que não nos temos tomado a audácia de analisar ou ver a profundidade de seus fundamentos. Castelos de cartas que enquanto chega o lobo – violência – ou um simples cachorro mal-encarado – crise – se derrubam ao primeiro sopro. 

A Europa tem usado mal conscientemente sua única ética. E, à maneira de seus cidadãos, é profundamente conservadora. E o mal se universaliza. Queremos uma coisa durante o dia, mas à noite, ao irmos dormir, rogamos aos outros que limpem as ruas dos mendigos, não deixem assaltar nosso espaço e os Estados Unidos sigam acreditando que Deus está do seu lado. Isso é o que esculpe o escritor francês, um moralista que espera algo de um queijo ou um polvo, mas nada do ser humano.

As trombetas venderam islamofobia com Submissão, mas mesmo que você tenha a pele da raiva muito fina não chegará a passar nem do nojo. Porque o espantalho é França, Europa, esta sociedade decadente, esclerosada, preconceituosa que, para Houellebecq, tem se matado em nome de Deus, do prazer, da violência, ideias e quimeras, masculinidade, alergias e irritações adolescentes para converter-se num tio solteirão e inofensivo que nada viu e de que quem ninguém espera que deixe herdar o lugar central. 

A Houellebecq não importa os valores ilustrados se não fazem chegar os trens pontualmente. Se o injusto (o patriarcado, as mulheres em casa, o matrimônio tornado um negócio patrimonial de confiança) funciona, para que empenhar-se em fazê-lo justo se isso o converte em inutilidade? O que seríamos capazes de abrir mão em troca de menos prisão, menos delinquência, mais prazer e mais ordem? Mais do que nos atrevemos a reconhecer.

Em Submissão o romance de tese se transforma em romance de hipótese. Numa França muito próxima – que na verdade é um agora depois de amanhã – as eleições presidenciais demonstram o fim do bipartidarismo tradicional. Assim, é depois da disputa entre a Frente Nacional de Marine Le Pen e um partido islamista moderado, que tem um líder inteligente e carismático, Mohammed Ben Abbes. Quando estamos a ponto de imaginar um desenlace favorável à esquerda, o que acontece é um levante contra Le Pen e Ben Abbes é levado ao governo.

Como romance, Submissão tem umas cento e tantas páginas soberbas em que Houellebecq demonstra inteligência e talento ao manejar materiais perigosos que nas mãos de outros escritores só ganhariam a forma de puro panfleto, tese sci-fi, quando muito, um arquetípico cenário de medo e clichês simbólicos. Nessa primeira metade do livro, o escritor acerta ao convocar o leitor para sua hipótese expondo-o não a revoltas ou à queima do Louvre, mas construindo uma trajetória possível, verossímil, quase tentadora, e aparentemente inofensiva – estará aqui as acusações de louvação ao Islã? A visão de Ben Abbes não é se não a Europa de Augusto. A velocidade de uma viagem de navio, o autor introduz clima e ritmo de thriller pré-apocalíptico, no advento do fim do mundo tal e como o conhecemos.

O protagonista, François, é um professor especialista num escritor do século XIX, Huysmans. François é um tipo com uma vida pessoal tomada por uma solidão desamparada e com um futuro acadêmico seguro mas sem prestígio nem vaidades. É um homem que ocupa uma posição numa sociedade deteriorada depois que o secularismo dinamitou a ideia tradicional de família, coletividade e rebanho. Algo que François também deprecia, mas não acerta encontrar as saídas dessa ruína. É necessária uma transfusão. Sangue novo. Um Deus pré-Iluminista e não explicado.

É bem verdade que num dado momento alguém apaga as luzes da Casa Houellebecq. E só acordamos com isso. Como se o autor já desse por acabado o romance antes de terminá-lo. Como se o tédio dele, se converter-se na falta de esforço exigido e já estivesse pensando no momento seguinte ou em pedir um sushi em domicílio. É quando Houellebecq coloca sua dose prévia de sexo no cartão de crédito, que mais parece Almodóvar quando traz sua mãe para um filme. É quando nos coloca a tese ou as leituras com os caroços do purê esquecido que dá força à ficção para a qual nos arrastou até ali e não discute o resultado ensaiado.

Mas, no fim, Submissão remonta alguma coisa, e quer mesmo ser algo desleixado e em vias de desintegrar de maneira rápida a substância exibida no início. E certamente a ironia de que a submissão, o armistício, a derrota seja entregando valores que são transcendentes não tem sentido se a troca é por mais petrodólares para as instituições acadêmicas, boas jubilações e a guinada da poligamia para uma sociedade em que o masculino nunca deixou de ser visto às escondidas vergonhosamente no quarto dos hóspedes sempre infantil  e estúpido. Talvez. Mas basta só ver o que diz nas camisetas dos grandes times de futebol ou do que seríamos capazes em troca de não acabar a vida em fraldas trocadas por gente que não é do seu clã.

Ligações a esta post:
>>> Tão logo foi publicado na França trouxemos detalhes sobre o romance de Houellebecq.
>>> Leia uma entrevista com escritor francês a The Paris Review (em português) que editamos aqui.

* Este texto é uma tradução livre de "La tentación" publicado em El País.


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