Uma abelha na chuva, de Carlos de Oliveira
Por Pedro Belo Clara
Considerada
pela crítica competente, sem desaguisados de maior, um dos trabalhos mais
emblemáticos de Carlos de Oliveira, a presente obra foi dado aos prelos no já
distante ano de 1953 e comprovou, com a devida propriedade, a extrema aptidão
do autor para o estilo novelístico. Se é verdade que Oliveira iniciou a sua
carreira literária através da poesia, género de que nunca abdicaria, para o
leitor mais comum a faceta de romancista é a que mais sobressai em termos de
divulgação ou de conhecimento geral. Contudo, afirmar que foi nela que o dito
autor demonstrou todo o seu supremo talento é, efectivamente, redutor.
Convém
aqui recordar que Oliveira foi um dos destacados vultos do neo-realismo
português, levando-o até, segundo a opinião de muitos estudiosos, a terrenos
que nenhum outro jamais ousara pisar, o que sublinha a extrema originalidade da
sua voz. A tal aspecto acresce, quase subsequentemente, o cariz regionalista
que viria a imprimir na maioria dos seus trabalhos, concedendo aos mesmos um
adorno original de acessível apreciação ao qual a obra em causa não será
excepção.
Dado
que o autor, antes de falecer, logrou organizar e corrigir grande parte de sua
obra, os trabalhos que hoje se encontram disponíveis merecem o justo epíteto de
“definitivos”. Na verdade, navegar pelas linhas que os tecem constitui um
inominável prazer, dado o carácter maturado e polido das mesmas. Assim, para o
efeito considera-se a edição de 1980 lançada pela extinta editora Sá da Costa,
entretanto recuperada, em 2003, pela Assírio & Alvim. Na década de 70, a
obra seria ainda adaptada ao cinema com um sucesso considerável.
A
narrativa em questão desenrola-se maioritariamente na aldeia de Montouro,
concelho de Corgos, perto de Cantanhede, no distrito de Coimbra – a sua bem
amada gândara, região tão fortemente retratada, tão frequentemente revisitada.
Em pleno Outubro, prenhe de chuvas e ventos irados, são-nos reveladas as
peripécias de Álvaro Rodrigues Silvestre, abastado comerciante («um homem
gordo, baixo, de passo molengão»), e sua mulher, D. Maria dos Prazeres (senhora
de «malares salientes», «cabelos negros aconchegados num novelo espesso»,
«lábios túmidos» e «olhos grandes, vivos, quase ansiosos»). Através desta
relação tensa e imposta, recheada de repressões internas e ódios mal contidos,
entre o descendente de lavradores profícuos e a herdeira duma nobreza em clara
decadência (que só admite o matrimónio com outros que não os de sua casta para
salvar os escassos bens que ainda salvaguarda) é-nos retratado o mais provinciano
Portugal dos meados do século passado.
O
livro é, portanto, uma vívida testemunha de um tempo entretanto consumido,
ainda que certos resquícios seus aqui e acolá se possam descortinar. Repartido
por trinta e cinco capítulos, a obra, para romance, não é extensa – as
referidas divisórias são breves e o estilo de escrita do próprio autor proporciona
uma leitura fluida. O ritmo, apesar de deter uma certa velocidade (se
obedecermos à sinalização distribuída pelas linhas), é ainda assim impresso num
equilíbrio bem conseguido. O livro não oferece uma leitura ofegante, é claro, mas
é composto por um compasso que precipita a passagem para o próximo capítulo. Um
consumo, portanto, na iminência da sadia compulsividade, que vem adensar a
tensão presente no desenrolar da narrativa.
A
escassez de pontos finais é assim notória, bem como de diálogos em determinados
momentos. Ao invés, Oliveira privilegiou, na construção prática da narrativa, o
“ponto e vírgula” (que auxilia a imprimir o referido ritmo antes descrito) e a
inclusão dos pensamentos das personagens e de certas falas passadas no corpo do
texto. Por esse motivo, e embora não se alongue na análise psicológica das
mesmas, assume o papel de narrador interventivo, mas de modo indirecto. Será
assim comum depararmo-nos com momentos em que o dito narrador, omnisciente,
parece dialogar directamente com as personagens, como se fizesse as vezes de
uma funda “voz conscienciosa”. Esta brincadeira literária quase que reinvoca o
estilo de Henry James, mas nas mãos de Oliveira adquire um outro contorno
(evolutivo, por assim dizer) que somente acrescenta uma outra substância ao
quadro final.
De
um modo sumário, o autor com esta obra parece pretender demonstrar como os
efeitos de determinadas acções podem ser catastróficos, não só para quem as
empreende como para aqueles que os rodearem. Estes, sem intervenção directa,
por diversas vezes acarretam o mesmo fardo somente por terem cometido o pecado
da proximidade. Álvaro, o “herói” da narrativa, é um homem com imensos
problemas conscienciais, fruto do seu longo historial de comportamentos
moralmente reprováveis. A carga religiosa (pesada, claro) faz-se sentir, mas a
desesperada tentativa de expiação só vem agravar a já de si complexa situação
onde se encontra. Naturalmente, a enxurrada daí resultante trará nefastos
resultados não só para si como para os que compõem o seu círculo de amizades. O
Doutor Neto, apesar da sua inocência, será um desses exemplos. Ao contrário da
esposa de Álvaro, que anuindo a todas as transgressões lutará apenas para
manter a posição social que ostenta. Não deixa assim de ser curiosa a ideia de
que quanto mais a pequena abelha se debate na teia da vida mais a ela se
prende, auto-condenando-se sem qualquer complacência ou comiseração.
Mas
como se constrói a ponte entre a narrativa e esse ser alado produtor de mel? A
referência à abelha não é de todo infundada. Se virmos o pequeno ser como um
elemento social, um membro da extensa colmeia que o alberga, certas insinuações
obterão um outro sentido. Assim se entrevê o complexo simbolismo adjacente à
obra: o contraste entre as “abelhas manchadas” e as “abelhas puras”,
personificadas nos casais Álvaro e Maria dos Prazeres e Jacinto (o cocheiro do
casal) e Clara (a filha do moleiro). Deste ponto poder-se-á naturalmente
extrapolar o cariz social dos mesmos e a essência que os reveste, já que os
primeiros representam as classes abastadas (em crise plena) e os segundos as
classes menos favorecidas (ainda que felizes em sua condição). Eis, portanto,
os ideais de “corrupção” e os de “pureza” em completa (e quase conflituosa) evidência,
sendo que por seus actos desprovidos de consciência as “abelhas manchadas”
sempre contaminam ou sabotam a existência das ditas “puras”. Em determinado momento da narrativa, até ao
seu término definitivo, tal aspecto sobressairá como um travo que de tão amargo
se sobrepõe aos demais.
Como
vimos, a obra não cessa de deter um simbolismo bem vincado, apesar de forjada
sob os trâmites neo-realistas. Mas não será tudo. Em acréscimo ao que antes se
expôs, sobressai ainda o elemento “chuva” (presente logo no título), que pela
agressividade com que dos céus tomba reforça o carácter denso e opressivo de
certos momentos da narrativa (diga-se que em cada instante de conflito entre
personagens a chuva faz-se fortemente sentir). A “fonte” surge também como o elemento
instigador das diversas analepses que ao longo da obra são encontradas,
sublinhando a pureza e o conforto de um passado ido (em declarado contraste com
a esterilidade e a repugnância de um tempo presente deveras corrompido).
Pelo
que se apresenta, Uma abelha na chuva comprova não só a habilidade de Carlos de
Oliveira para a criação de cativantes romances como também testemunha o ímpar
génio que o assistia. Não pretendemos investir mais tempo numa análise ao
presente trabalho que se arriscaria a ser fastidiosa, já que o propósito desta
coluna prende-se com a sadia discussão das obras propostas e percursos dos seus
autores (se pertinente). As demais incidências ficarão sempre a cargo de quem
de direito: o leitor. Tudo o que antes foi explanado tentou, assim, servir o
intuito da publicação por meios directos e acessíveis. Muito poderia ainda ser
dito, é um facto, mas não se pretende aqui um ensaio sobre a obra. Em todo o
caso, sobeja a esperança de que as palavras impressas tenham sido as
suficientes para o cativar, estimado leitor, na aventura através das linhas de
um dos principais trabalhos deste famigerado nome da literatura portuguesa,
cujo trabalho não merece, de todo, e repito-me ao dizê-lo, o olvido em que
parece ter mergulhado.
«A abelha foi apanhada pela chuva:
vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a
ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte
espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por
levá-la com as folhas mortas».
***
Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
Comentários
Estou encantada com tanta riqueza literária!
Parabéns!
Saudações literárias,
Simone Guerra -http://paracruzaroatlantico.blogspot.com.br/