O futebol não preenche coisa nenhuma*
Por Graciliano Ramos
© Elton Manganelli |
Pensa-se em introduzir o futebol, nesta terra.
É uma
lembrança que, certamente, será bem recebida pelo público, que, de ordinário,
adora as novidades. Vai ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a idéia
fixa de muita gente. Com exceção talvez de um ou outro tísico, completamente
impossibilitado de aplicar o mais insignificante pontapé a uma bola de
borracha, vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo
de fogo de palha capaz de durar bem um mês.
Pois quê! A cultura física é coisa que está entre nós
inteiramente descurada. Temos esportes, alguns propriamente nossos, batizados
patrioticamente com bons nomes em língua de preto, de cunho regional, mas por
desgraça estão abandonados pela débil mocidade de hoje. Além da inócua
brincadeira de jogar sapatadas e de alguns cascudos e safanões sem valor que,
de boa vontade, permutamos uns com os outros, quando somos crianças, não temos
nenhum exercício. Somos, em geral, franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma
pobreza de músculos lastimável.
A parte de nosso organismo que mais se desenvolve é a
orelha, graças aos puxões maternos, mas não está provado que isto seja um
desenvolvimento de utilidade. Para que serve ser a gente orelhuda? O burro
também possui consideráveis apêndices auriculares, o que não impede que o
considerem, injustamente, o mais estúpido dos bichos.
Muito melhor é ser-se dono de um braço capaz de rebentar um contendor, se ele é fraco, ou de uma perna suficientemente ágil para fugir, numa velocidade de léguas por minuto, se o inimigo é forte.
Ora, no estado em que nos encontramos, não só não temos energia para atacar ninguém, mas falta-nos até o vigor necessário para recuar. O que é comum é conservar-se um pobre diabo num lamentável estado de inércia, a sofrer tormentos com resignação, coragem, se quiserem, mas coragem negativa, que muitas vezes não é mais que inaptidão para evitar o perigo.
Fisicamente
falando, somos uma verdadeira miséria. Moles, bambos, murchos, tristes - uma
lástima! Pálpebras caídas, beiços caídos, braços caídos, um caimento
generalizado que faz de nós um ser desengonçado, bisonho, indolente, com ar de
quem repete, desenxabido e encolhido, a frase pulha que se tornou popular:
"Me deixa..."
Precisamos fortalecer a carne, que a inação tornou
flácida, os nervos, que excitantes estragaram, os ossos que o mercúrio escangalhou.
Consolidar o cérebro é bom, embora isto seja um órgão a que,
de ordinário, não temos necessidade de recorrer. Consolidar o muque é ótimo.
Convencer um adversário com argumentos de substância não é mau. Poder
convencê-lo com um grosso punho cerrado diante do nariz, cabeludo e ameaçador,
é magnífico.
O direito é bonito. E é só o que é, segundo penso. Mas a força é útil.
A paz de Santo Wilson, apóstolo decadente e mártir risonho, abriu falência. Venceu a paz francesa, de mandíbulas agressivas e caninos à mostra, pronta a estranhar a terra germânica.
Se voltarmos o olhar para baixo, para o microcosmo social em que vivemos, é o mesmo fenômeno. A razão está sempre ao lado de quem tem rijeza.
Ora entre nós é extremamente difícil encontrar um homem forte. Somos um povo derreada. Topamos a cada passo seres volumosos, mas raramente se nos depara uma criatura sã, robusta. O que anda em redor de nós é gente que tropeça, gente que corcova, gente que arfa ao peso da barriga cheia de unto. É andar um quilômetro a pé e ficar deitando a alma pela boca.
Para chegar ao soberto resultado de transformar a banha em
fibra, aí vem o futebol.
Mas por que o futebol?
Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em
jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de
ponta, por exemplo? Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas entre
nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis ou não.
No caso afirmativo, seja muito bem vinda a instituição
alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que possa viver cá em
casa. De outro modo, resignemo-nos às broncas tradições dos sertanejos e dos
matutos. Ora, parece-nos que o futebol não se adapta a estas boas paragens do
cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve.
Para que um costume intruso possa estabelecer-se
definitivamente em um país é necessário, não só que se harmonize com a índole
do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja tomado por outro
mais antigo, de cunho indígena. É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna,
como diz o chavão.
O futebol não preenche coisa nenhuma, pois já temos a
muito conhecida bola de palha de milho, que nossos amadores mambembes jogam com
uma perícia que deixaria o mais experimentado sportman britânico de queixo
caído.
Os campeões brasileiros não teriam feito a figura trise que fizeram em Antuerpia se a bola figurasse nos programas das Olimpíadas e estivessem a disputá-la quatro sujeitos de pulso. Apenas um representante nosso conseguiu ali distinguir-se, no tiro de revólver, o que é pouco lisonjeiro para a vaidade de um país em que se fala tanto. Aqui seria muito mais fácil o indivíduo salientar-se no tiro de espingarda umbiguda, emboscado atrás de um pau.
Temos esportes em quantidade. Para que metermos o bedelho em
coisas estrangeiras?
O futebol não pega, tenham a certeza. Não vale o argumento
de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância. Não confundamos.
As grandes cidades estão no litoral; isto aqui é diferente,
é sertão.
As cidades regurgitam de gente de outras raças ou que pretende ser de
outras raças; não somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda
ou galego.
Nas cidades os viciados elegantes absorvem o ópio, a
cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda fumam liamba.
Nas cidades assiste-se, cochilando, à representação de peças que poucos entendem, mas que todos aplaudem, ao sinal da claque; entre nós há criaturas que nunca viram um gringo.
Nas cidades há o maxixe, o tango, o fox-trot, o one-step e outras danças de nomes atrapalhados; nós ainda dançamos samba.
Estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O
futebol, o boxe, o turfe, nada pega.
Desenvolvam os músculos, rapazes, ganhem força, desempenem a
coluna vertebral. Mas não é necessário ir longe, em procura de esquisitices que
têm nomes que vocês nem sabem pronunciar.
Reabilitem os esportes regionais que aí estão abandonados: o
porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão
que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto,
a cavalhada e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira.
A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência!
Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos
outros. Logo na aula primária habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos
falta a confiança no cérebro - e a rasteira nos salva. Na vida prática, é claro que aumenta a natural tendência que
possuímos para nos utilizarmos eficientemente da canela. No comércio, na indústria,
nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira
triunfa.
Cultivem a rasteira, amigos!
E se algum de vocês tiver vocação para a política, então
sim, é a certeza plena de vencer com auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há
político que a não pratique. Desde S. Exa. o senhor presidente da República até
o mais pançudo e beócio coronel da roça, desses que usam sapatos de trança,
bochechas moles e espadagão da Guarda Nacional, todos os salvadores da pátria
têm a habilidade de arrastar o pé no momento oportuno.
Muito útil, sim senhor.
Dediquem-se à rasteira, rapazes.
* O título deste texto é uma atribuição nossa tomando de uma passagem do texto. Na versão original ele é apresentado sem um designativo. Assinado com o pseudônimo de J. Calisto, a crônica foi publicada pela primeira vez numa coluna alimentada por Graciliano Ramos chamada "Traços a esmo", no jornal O Índio, no dia 10 de abril de 1921.
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