O que é a Literatura?, de Jean-Paul Sartre
Por Rafael Kafka
O que é a Literatura? é o ensaio de
crítica literária de Jean-Paul Sartre, escrito logo após o lançamento de seu
grande clássico, O Ser e o Nada. Nesse pequeno livro que aborda o ato de
escrever, muitos dos pressupostos utilizados no volumoso ensaio de ontologia
fenomenológica são utilizados para se avaliar em quais condições são produzidas
obras literárias em nossa sociedade. Foi mais uma tentativa, bem sucedida eu
diria, de tornar os temas existencialistas mais facilmente aplicados na prática
por meio de textos claros e concisos.
Para se
entender a obra sartreana, devemos nos ater ao conceito primordial de
homem-em-situação. Para o existencialismo defendido por Sartre, o homem não é
determinado pelo meio e nem está acima dele. Tanto o materialismo quanto o
idealismo são rechaçados. Para a fenomenologia, o mundo é um ente concreto e
deve-se ter em mente que toda consciência é consciência de algo: cada pessoa
tem sua percepção do mundo, é rodeada pelos objetos, pelas pessoas, pelos
fatos, tem sua história, seus valores. Sua situação.
Para
entender os motivos que levam a determinado ato, é preciso que avaliemos as
condições de tais atos e os seus contextos de produção. E nesse sentido,
percebemos que Sartre desmistifica a literatura, tornando-a mais um ofício,
cuja peculiaridade é o de lidar com a linguagem humana. Cai por terra, então, o
mito burguês que prega a literatura, ou a arte em geral, como uma forma de
expressão elevada destinada a seres especiais e/ou privilegiados por Deus ou
pela natureza.
Sendo a
literatura um ato, precisamos avaliar as condições em que sua produção é feita
e a sua leitura realizada. Sartre fala da existência de um pacto entre leitor e
escritor. O escritor precisa do leitor, pois é por meio desse que a obra ganha
sentido e plenitude ao ser lida. O leitor empresta ao livro os seus sentimentos
de amor, revolta, etc. no ato de leitura. O leitor procura o autor, pois em
seus pensamentos encontra-se representado. Claro que devemos não ignorar jamais
o fenômeno da interpretação textual: cada leitor é um ser humano em situação,
tem seu contexto pessoal e sua própria intencionalidade. Nesse sentido, por
mais concordantes que sejam em diversas questões, é logicamente impossível dois
indivíduos fazerem duas leituras idênticas de uma obra.
A partir
desse pacto entre leitor e escritor, Sartre resolve discutir a questão do
engajamento da literatura. Contudo, ele não fala da literatura em geral. Fala
especificamente da prosa, cuja leitura para ele se diferencia da poesia por ser
esta última uma forma textual puramente imagética, contendo em si mesma um uso
das palavras similar ao que o pintor faz de suas tintas. A obra possui o
caráter de obra aberta, de leitura continuada a cada virar de páginas, criando
uma espécie de conflito entre o leitor e o escritor, com este tentando prender
aquele e aquele buscando neste voz para seus pensamentos.
Mostrando o
homem em situação no ato de escrever, Sartre mostra que cada escritor realiza o
ato da escolha no momento de produzir sua obra. Há um determinado assunto em
seu meio social e o escritor precisa falar sobre tal assunto. Mas ele prefere
se manter calado. O fato de ele ter se mantido calado já diz por si só algo,
assim como o ato de se abster da escolha já é uma escolha. Questões de estilo
aqui perdem um pouco de sua importância e percebemos um maior cuidado com o
conteúdo produzido em certa obra.
Sartre
realiza ainda um interessante exame das condições de produções da literatura no
decorrer dos séculos mais recentes da cultura ocidental. Percebemos em seu
ensaio que a literatura na maioria do tempo se limitou a um nicho social que
corresponderia à classe alta nobre ou burguesa. A burguesia, a partir do século
XVIII, começa a se valer da literatura para criar o seu rol de valores morais,
artísticos e comportamentais. O escritor torna-se então um grande propagandista
dos hábitos burgueses falando dos próprios burgueses para eles mesmos. É o
momento em que a arte literária adquire contornos clássicos como o romance e sua
predominância enquanto gênero.
A burguesia
representada pelo escritor é a própria burguesia em seu contato com o mundo:
uma classe de visão limitada, sem contato com o proletariado, fala de si como
se falasse de uma essência humana, de uma natureza. Nasce aí o humanismo que
com o passar do tempo passará a falar de temas mais variados, mas sempre
apregoando, nas entrelinhas, que há uma essência humana e que proletários e
burgueses são acidentes que não afetam a substância humana. É percebido aí uma
forma de anulação da luta social, pois se o mais importante que um ser possui é
sua humanidade, pouco importa o modo de ser burguês ou proletário.
Falando de
si para si, o burguês enxerga-se como o modelo humano. É nesse momento que as
convenções sociais, os salões de festa, os gostos burgueses tomam conta das
obras. E mesmo as suas perfídias são exibidas como acidentes que não abalam a
natureza humana burguesa.
No século
XIX, cansados dos salões, os escritores simbolistas resolvem ir para as ruas e
falar daquele lado social o qual a classe alta julgava abjeto. Todavia, tais
escritores não rompiam os laços de dependência social e econômica com a classe
burguesa e sua revolta era mais uma brincadeira (o que Benjamim fala de
Baudelaire por exemplo em artigo a ser consultado) do que um grito de protesto.
Até mesmo Satã se torna um símbolo de uma estética revoltada que busca por meio
do grito e do desespero romper laços sociais que em verdade não serão jamais
rompidos.
Percebemos
na leitura de O Que é Literatura? que o pacto leitor e escritor se deu em um
nicho bem restrito. Os escritos produzidos até meados do século XIX refletiam
valores de uma classe para si mesma, como já ocorria na Idade Média quando
padres escreviam para padres sobre temas que só a padres concerniam. Percebemos
aqui o surgimento de temas ligados ao horizonte de expectativa de um público
virtual, um público almejado.
No século
XX as coisas mudam drasticamente, ao menos para uma pequena parcela social. O
proletariado se torna uma classe social com amplos direitos de cidadania em
diversos locais do mundo e começa a participar mais ativamente da vida
cultural. As duas grandes guerras mostram ao mundo que todos estavam sob a
ameaça de uma catástrofe inimaginável. Aos poucos o cenário deixa de ser estático
e as classes sociais começam a interagir mais. Em um mundo caótico, a
literatura é posta em xeque com sua função.
Analisando
a situação do escritor no período do ano de 1947, Sartre começa a defender que
a literatura plena só é possível em uma sociedade sem classes, pois em tal
sociedade haveria o respeito a liberdade de produção do escritor e de leitura
do leitor. Nessa sociedade, o leitor verá no escritor alguém que reflete as
questões importantes para a humanidade e vê seus anseios postos em suas obras.
Em suma, se antes o escritor era o porta-voz do status quo paralisado,
estático, agora ele é a voz da mudança social, é aquele que deve por meio das
palavras mostrar a sociedade como ela é e a partir de então começar a luta
social.
Vale
ressaltar que Sartre sabe da utopia de seu empreendimento e durante o texto
desse ensaio pesados ataques são feitos contra o Partido Comunista francês.
Servir de porta voz da revolução não significa para ele ser lacaio de um
movimento social omisso e sim alguém dono de uma verdade e que quer passá-la
adiante. Vemos então a literatura justificada e o pacto leitor/escritor dando
ao prosador a função social de dirigir a multidão, por meio da literatura, o
povo rumo à liberdade de ação.
Apesar do
tom de livro-manifesto, essa obra é importante pois mostra de forma bem
interessante as relações existentes entre literatura e meio social. A
literatura engajada seria a literatura disposta a abordar os mais variados
temas sociais, sem se prender a uma ilusão humanista de natureza humana. Tal
literatura reflete o homem em situação para outros homens em situação e o
escritor não deve nem querer se omitir em seus textos pregando uma morte do
autor, nem anular o direito de voz do leitor que nas entrelinhas do texto cria
sua própria significação.
O objetivo
da literatura engajada é uma sociedade em que toda potencialidade humana seja
posta em prática, em que cada ser humano possa exercer sua liberdade de modo
concreto, o que Sartre julgava ser possível apenas em uma sociedade socialista.
Podemos
considerar o movimento existencialista francês e o nosso modernismo como
movimentos que saíram do nicho social restrito e tentaram criar elos entre
burguesia e proletariado. Por isso mesmo, as obras e atitudes de ambos os
movimentos, desde um comportamento sexual libertário até mesmo idas ao bar com
amigos, eram vistos como altamente imorais pelas classes superiores que se viam
ultrajadas.
Tais
classes, forçosamente, viam sua forma de ver o mundo ser abalada em estrutura e
conteúdo: viam romances abordando a miséria e temas grotescos, quando até então
só falavam de dramas amorosos bem rasos no aspecto situacional. É a partir
desse momento que percebemos com bastante clareza como a arte, no caso
específico a literatura, tem o poder de escandalizar forçando o homem a se ver
como realmente é e a contemplar de modo global a sua situação social.
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