As crônicas marcianas, de Ray Bradbury

por Pedro Fernandes 



Grande parte dos leitores em língua portuguesa conhecem – ao menos de nome – um título que já virou clássico, Fahrenheit 451, chegado ao Brasil pelo selo Biblioteca Azul, da Globo Livros. Agora, através deste mesmo selo e editora recebemos dois outros títulos, menos conhecidos do escritor estadunidense, mas igualmente importante para uma compreensão sobre sua obra e estilo: As crônicas marcianas e A cidade inteira dorme e outros contos. Aqui, comentaremos acerca do primeiro título e noutra ocasião voltaremos a falar sobre a obra de Bradbury a partir de seus contos.

Se Fahrenheit 451 é considerado por grande parte da crítica como uma distopia da humanidade ou uma falência do projeto de civilização posto em construção desde o aparecimento da razão e cada vez mais difícil de sua concretização, pode-se dizer que As crônicas... é mais uma peça nesse processo de decadência da existência. Isso nos leva a pensar que o projeto literário de Bradbury não se configura apenas pela engenhosa construção de uma realidade paralela e desencantada ao futuro eufórico de avanços humanos. Talvez as condições históricas tenham feito o escritor pensar por esta via e a partir dela construir uma obra literária cujo principal interesse está em verificar o que de humano resta a estes homens deslumbrados com o poder de suas próprias criações. Esse deslumbramento não pode ser uma alucinação, já que as consequências de todo avanço da existência é sempre pautada na catástrofe de nossa própria raça?

Mais que o pai da ficção científica, Bradbury vai se mostrando como um humanista; não no sentido lato do termo. Mas alguém que consegue se maravilhar com a capacidade humana e ao mesmo instante se indagar sua limitação para conseguir resolver questões aparentemente mais simples que o impede de conferir uma certeza sobre a razão enquanto condição que nos faz diferente dos outros seres. Se ele a literatura do escritor estadunidense tornou-se uma das mais lidas ao redor do mundo pelo tom fantasioso com que sua escrita se revela, é importante que fique claro pelo menos para o leitor que se deparar com essas notas, que a fantasia bradburiana não é gratuita. Ela tem um forte engajamento com as questões de seu tempo: quando a ciência está a galope desenvolvendo técnicas de manipulação da vida e da consciência; quando os Estados Unidos em igual forma desenvolve suas formas de apropriação das culturas estrangeiras e exaure apenas pelo fogo consumista do capital a natureza.

E o futuro de tudo isso é muito amargo. Não há espaço para se pensar nessa felicidade humana buscada a qualquer custo. Bradbury alerta-nos que é preciso parar e antes de toda estupidez da destruição compreender sobre que projeto civilizacional nós queremos para a humanidade. Nas crônicas reunidas neste livro este é o tema principal em torno do qual se amalgama os textos.

Interessa observar aqui como foi feita a composição orgânica desse livro, escrito como se no futuro – entre 1999 e 2026, sendo que livro apareceu em meados da década de 1950 já depois de outras produções literárias do escritor. Importa ver na engenhosidade com que elabora sua escrita. Antes de sonharmos como a ideia de comunidades virtuais e simplificação dos códigos escriturais ou ainda com a redução da escrita ao nível dos caracteres, Bradbury ensaia uma escrita pautada na objetividade, na frase breve, no texto curto e coeso, no diálogo quase conduzido teatralmente. Então, o leitor contemporâneo estará muito à vontade com seu texto cujo estilo propositalmente dispensa toda parafernália do adorno linguístico. Nessa elaboração estilística é preciso dizer, ainda, sobre o tom poético com que envolve determinadas sentenças, atentando o escritor para outro fenômeno que mais tarde será recorrente na narrativa: “O sol tinha se posto. Lenta, muito lentamente, a noite caiu e preencheu a sala, engolindo as pilastras e os dois, como um vinho escuro derramado do teto. Apenas o brilho prateado da lava iluminava os rostos”.

Sim, falamos em narrativa e nos deparemos com outra operação textual que demonstra que sua natureza inventiva não apenas se restringiu à criação de uma realidade futurista, mas esteve preocupado com a destituição de determinadas fronteiras estabelecidas culturalmente com a ideia dos gêneros do texto. Apesar de o título fazer menção ao termo crônica, o que leitor tem diante de si tem muito mais o caráter de um conto porque encerram em si uma narrativa. E não finda nisso. O conjunto de textos acaba por mexer com as próprias fronteiras do que entendemos por romance; afinal, se repararmos bem, nós notaremos que este conjunto de narrativas constitui um texto maior.

Nessas crônicas, prevalece uma tentativa de materialização por um olho caleidoscópio do imaginário acerca da vida extraterrestre e sobre o modo como os de outro planeta, no caso Marte, reagiriam ao nosso encontro e vice-versa. É este o fio narrativo que alinhava esses textos ao nível de um roteiro para o romance.

Ora, estamos diante de uma civilização construída com base nos modelos que elegemos aqui na Terra, mas mais sofisticada, embora também padeça de alguns sentimentos presentes em nossa base cultural, como o amor, a desconfiança, o ciúme, a solidão, a imaginação. Do mesmo modo que os terrestres anseiam por saber de uma vida fora do planeta e, por vezes, acreditam na vinda de uma criatura descida dos céus, também os marcianos padecem igualmente dessa curiosidade; é notável aqui, quem assume essa intuição de outra forma de vida – uma personagem feminina. E se a intuição se cumprisse? O sistema extraterrestre estaria fadado a um desequilíbrio e sua extinção; eles reagiriam com curiosidade ou não, ingenuidade ou inteligência.

Ora estamos diante uma mera projeção imaginária do homem que terá avançado tanto a ponto de se processar a criação de outras realidades paralelas tão ou mais complexas que as criadas por eles. Ora estamos diante de uma civilização totalmente diferente da nossa; que aprendeu, no meio de sua existência, a dar outros rumos e alcançaram o equilíbrio entre as formas diversas de manifestação do pensamento – uma equidade difícil de ser pensada pelos homens entre ciência, arte e religião. Todas essas nuances aparecem contempladas nAs crônicas.

Em todas as situações, Bradbury não deixa de imaginar essa chegada do homem a Marte como desastrosa, destilando aqui uma crítica sobre o próprio estágio em que se encontra a humanidade de seu tempo: “Os homens da Terra têm talento para acabar com coisas grandes e belas. A única razão por que não montamos barraquinhas de cachorro-quente no meio do templo de Karnak, no Egito, é porque estava fora de mão e não era uma grande oportunidade comercial”; “Éramos e ainda somos um povo perdido”; “o animal não questiona a vida. Simplesmente a vive. Sua única razão para viver é a vida; aproveita e saboreia a vida”. Todas essas sentenças colocadas na boca de uma personagem não quer dizer de uma regeneração do homem, mas o destaque no burburinho da existência, da voz de poucos que têm, por uma condição de sujeito desassossegado, se perguntado sempre o porquê das coisas. De certo modo é também uma brecha pela qual o escritor espreita: e se? Essa indagação que sustenta toda grande obra de arte é também a indagação com que Bradbury se aparelha para a construção desse universo de pães de cristal e fogo elétrico para beber.

Numa futura colonização de Marte, quando a Terra já em colapso, pensa Bradbury, esse processo não poderia ser diferente do de outros marcados na história dos descobrimentos? Não há redenção imediata para um homem que primeiro pensa em fugir daquilo que ele próprio construiu para si: “Foram para lá porque tinha medo ou não, porque eram felizes ou não. Porque se sentiam como Peregrinos ou não. Cada um tinha seu motivo. Estavam deixando para a trás más esposas, empregos ruins ou cidades ruins; foram até lá para encontrar algo, abandonar algo, conseguir algo, desencavar algo, enterrar algo ou deixar algo de lado.” A única esperança aqui é que o fim da civilização terrestre é o princípio de outra civilização. Mas Bradbury prefere uma segunda chance ao homem. No seu tempo havia espaço para se pensar seriamente sobre isso; hoje já nem tanto. O uso desenfreado da natureza terrestre e a incapacidade de colocar um limite nessa situação porque o modo de vida que criamos não permite retornos conduz para a certeza de que chegaremos à completa extinção antes de chegarmos a um além da Terra.

Por fim, é preciso ressaltar que este conjunto de textos foi o que deu destaque para a literatura de Ray Bradbury. Antes ele havia escrito Dark Carnival e passou quase que despercebido pela crítica. As crônicas marcianas, portanto, são um marco na consolidação da escrita do estadunidense. Mais uma razão para colocar este título na lista de leituras necessárias.


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