Livro do Desassossego: o romance possível (var.: impossível)
Por Richard
Zenith
Cena do Filme do desassossego. |
Citamos o Livro do Desassossego como se fosse um
tesouro de frases geniais, um compêndio de ideias, ora mais ora menos
desenvolvidas, uma miscelânea de fragmentos avulsos. E é natural que o
encaremos desta maneira, pois corresponde ao estado em que efectivamente foi
deixado. Em boa verdade, mesmo que Pessoa tivesse revisto e organizado o Livro, e por mais que o tivesse domado e
domesticado, seria sempre uma obra constituída por fragmentos. Isso nada tem a
ver com um projecto putativamente modernista de pôr em causa o livro enquanto
formato literário. Muito menos se deve à impossibilidade de encontrar uma forma
adequada para ele. Pessoa encontrou-a logo no início. O fragmento – aliás, umas
centenas de textos de variado tamanho e relativa autonomia a que chamamos
fragmentos – é precisamente a forma que lhe convinha, dado o livro ser narrado
por alguém cujo estado de alma é um devaneio permanente. Não é que o narrador tenha
a cabeça nas nuvens ou imagine coisas vagas e imprecisas. O seu devaneio
analisa e explora, como que cientificamente. Mas é um devaneio. Observador e
sonhador faminto, interessa-lhe menos o objecto daquilo que vê e sonha do que o
próprio acto de ver e sonhar – acto esse que termina e se fixa na escrita.
Explica-nos esse processo num trecho redigido bastante cedo: «Quem sabe
escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente (e é assim) ou ver em
sonho a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máquina
do devaneio (...)» (da última secção do trecho «Via Láctea»). O Livro do Desassossego é uma sequência de
fotografias estranhamente íntimas, tiradas por um fotógrafo que as revela com
palavras. O fotógrafo vai documentando o seu próprio drama, centrado no como e
no porquê da sua actividade fotográfica. Neste Livro, retratar e narrar são sinónimos de protagonizar.
Mesmo
perdendo de vista o protagonista, que nos primeiros tempos não tinha nome, mas
que Pessoa passou depois a designar por Vicente Guedes e, finalmente, por
Bernardo Soares, a nossa leitura do Livro
continua a ser uma experiência muito proveitosa, pois a escrita especialíssima
vale por si, mas é mais difícil percebermos a beleza do conjunto e apreciarmos
o plano do sentir e conhecer em que os fragmentos se relacionam uns com os
outros.
A identidade
civil e quotidiana do narrador do Livro
foi-se compondo aos poucos. Vicente Guedes acabou por ser definido como um
ajudante de guarda-livros que residia na Baixa, mas no momento em que o seu
nome se associou ao Livro, em 1914 ou 1915, era uma personagem misteriosa, sem
profissão ou origem conhecidas («não se sabe nem quem era, nem o que fazia»
reza uma passagem prefacial1). Para Bernardo Soares – definido como
um «semi-heterónimo», mas também como uma «personagem literária» – Pessoa
esboçou uma infância e fez numerosas referências ao bairro onde habitava e ao
seu trabalho na firma Vasques e C.ª. Ainda assim, não chegou a ser uma
personagem com real espessura biográfica. Porém, o protagonista do Livro, mesmo em 1913-14 quando ainda não
tinha nome, não se resumia a uma simples versão diminuída de Pessoa. Possuía
três traços de personalidade muito marcados: uma grande indiferença em relação
à política e aos assuntos do dia-a-dia, um temperamento assumidamente
antissocial e um ensimesmamento exacerbado. São três facetas, se quisermos, da
mesma rejeição do mundo exterior e concomitante imersão em si próprio. A ficção
do ajudante de guarda-livros que trabalha e mora na baixa lisboeta é
formalmente importante, pois mostra que o autor queria aglutinar o material do Livro em redor de uma história de vida e
fornece um esqueleto para estruturá-la, mas a história que realmente interessa
decorre noutro plano, noutro espaço.
Alguns espectadores do Filme do Desassossego, de João Botelho, embora gostando do filme,
reagiram mal à figura de Bernardo Soares, alegando que existia um erro de
casting. É verdade que a personagem filmográfica, representada por Cláudio da
Silva, não corresponde à imagem estereotipada de um pacato empregado de escritório,
mas tem a virtude de nos transmitir, com o seu ar algo alucinado, a inquietante
estranheza da vida interior de Soares. Uma das conquistas do filme, no meu
entender, é a de nos mostrar que Bernardo Soares é o herói de um romance, cujo
título é Livro do Desassossego.
O
romance-experiência
Sem
cronologia ou enredo, este é um romance de ideias, mas não de ideias
filosóficas ou políticas, como acontece, por exemplo, em O Homem sem Qualidades, de Musil. As ideias que percorrem o Livro do Desassossego são como premissas
e hipóteses que Pessoa quis testar, colando-as ao seu protagonista para ver o
que disso resultaria. Este método «experimental», como se Pessoa fosse um
cientista da alma, foi por ele utilizado repetidas vezes. Vejamos dois
exemplos... Dotou Alexander Search de um racionalismo acentuado, aliado a uma
boa dose de instabilidade mental, e pô-lo a reagir em conformidade nos poemas
que se foram constituindo em colectâneas intituladas Documents of Mental Decadence, Mens
Insana, ou Delirium. Bem mais tarde,
em 1928, criou o Barão de Teive, fazendo-o padecer de uma impotência criativa e
sexual que o impedia de produzir obras completas ou de se relacionar
intimamente com as mulheres.
No caso do Livro do Desassossego, o autor lançou
duas grandes premissas e ergueu sobre elas uma hipótese, ou um teorema, que pôs
à prova através do seu protagonista. Não emprego o termo «premissa» como se
Pessoa pretendesse fazer um silogismo aristotélico, mas sim, para indicar um
procedimento racional menos rigoroso, condizente com o «desconexo lógico» que
caracterizava o estilo de Bernardo Soares. A primeira das duas premissas é a de
que tudo o que existe no mundo é traje, aparência, símbolo. A segunda, quase um
corolário da primeira, é a de que a realidade efectiva é aquilo que sentimos como real. Ou por outras
palavras: a realidade, para nós, reside nas nossas sensações.
Conquanto a
segunda premissa seja relacionável com o Sensacionismo promovido por Pessoa em
seu próprio nome e no de Álvaro de Campos, o Livro cita como teórico na matéria
o pensador Condillac, do século XVIII: «Por mais alto que subamos e mais baixo
que desçamos, nunca saímos das nossas sensações».2 Feita a citação,
que condensa e em parte parafraseia uma afirmação formulada no início do Essai sur l’origine des connaissances
humaines (1746), Bernardo Soares repete o essencial da frase por outras
palavras, numa fórmula ainda mais condensada: «Nunca desembarcamos de nós.»
Esta asserção serve de justificação para o ensimesmamento do narrador, que
termina o trecho dizendo, «O universo não é meu: sou eu».
No mesmo
trecho, como em vários outros do Livro,
o narrador despreza a utilidade das viagens geográficas, alegando que uma ida a
Benfica pode dar maior sensação de libertação do que uma viagem até à China,
visto que a sensação depende de quem vai a um ou outro lugar. Sustenta, ainda,
que as «verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim,
sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram
criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e
posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é minha». Assim,
as «verdadeiras» paisagens criadas pelo narrador e autor ficcional do Livro do Desassossego são aquelas que
ele escreve e de que «Na Floresta do Alheamento» constitui um exemplo
primoroso. Talvez tenha ainda criado algumas paisagens que, mentalmente
visualizadas, não passaram para a escrita. De qualquer modo, a oitava partida
do mundo é o reino da imaginação literária.
Sempre no
mesmo trecho e a propósito da nossa apreciação de paisagens, reais ou
imaginárias, Soares comenta: «Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o
sonho vê com o olhar». Estas palavras sugerem a possibilidade de uma
colaboração entre a nossa deficiente visão ocular e a nossa visão interior,
imaginativa. Tal colaboração está patente nas muitas descrições de paisagens
exteriores que perpassam pelo Livro.
Cito uma, a título de amostra: «Esse céu é de um azul esverdeado para cinzento
branco, onde, do lado esquerdo, sobre os montes da outra margem, se agacha,
amontoada, uma névoa acastanhada de cor-de-rosa morto» (trecho 225). Num ensaio
intitulado «The Birth of Literature»3, António Feijó entende estas
pequenas, prodigiosas descrições do céu e do tempo como esforços, conseguidos,
do observador para tornar os objectos do seu olhar singulares, nada vulgares.
Trata-se do mesmo procedimento que António Vieira elogiava na escrita do Frei
Luís de Sousa, como nos é por duas vezes lembrado no Livro do Desassossego (trechos 36 e 83). E é assim – tornando o
comum requintadamente estranho, algo alheio – que se faz a literatura.
E assim
também o protagonista do Livro do Desassossego se vai apoderando da realidade,
transformando-a e fazendo-a sua. Explica-nos isso no trecho «A Divina Inveja»:
«Esforço-me
(...) para alterar sempre o que vejo de modo a torná-lo irrefragavelmente meu –
de alterar, mantendo-a mesmamente bela e na mesma ordem de linha de beleza, a
linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por
outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito
idêntico no poente – e assim crio, (...) com o próprio gesto de olhar com que
espontaneamente vejo, um modo interior do exterior. »
É
indiferente que os céus verbalmente retratados por Bernardo Soares tenham sido
realmente observados e, em caso afirmativo, que tais retratos sejam fiéis
àquilo que observou. Singularizados pela sua extraordinária capacidade
descritiva, passam a fazer parte da oitava partida do mundo, que é literatura e
é sua.
Pelas leis
que regem o mundo do Desassossego, a
Arte decorre das sensações – profundamente sentidas, particularizadas e
trabalhadas, captadas em linguagem. Nisto reside a verdade possível, segundo
Pessoa, que quis testar a suficiência dessa verdade para uma vida humana. Ou
seja, queria saber se um escritor poderia viver, psicológica e espiritualmente
falando, apenas da sua imaginação e arte, sem precisar de interagir com o mundo
exterior. O protagonista do Livro
serviu-lhe de cobaia.
A
experiência realizada por Pessoa, que desde muito jovem gostava de brincar
sozinho e de lidar com amigos puramente imaginários, pode ter sido motivada por
uma fantasia pessoal de autossuficiência, um velho sonho seu de uma vida que
não dependesse de mais ninguém. Seja como for, o protagonista, ora denominado
Vicente Guedes ora Bernardo Soares, era militantemente solitário. «Conviver é
morrer», sentencia no trecho 209, justificando esse duro juízo com o seguinte
raciocínio: «Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são
fenómenos incertos nessa consciência, e a que seria mórbido emprestar uma
realidade muito verdadeira». Experiencia os outros seres humanos como fenómenos
predominantemente visuais e auditivos, ao mesmo nível que a paisagem
circundante e com o mesmo interesse que esta possa ter. Afirma-o sem rodeios,
no trecho 317: «Os outros não são para nós mais que paisagem». Uma paisagem,
aliás, que tende a provocar-lhe tédio, um estado de ânimo mencionado com
excepcional frequência no Livro do
Desassossego.
Cena do Filme do Desassossego |
Em
substituição das paisagens exteriores, o protagonista sonha com a criação de
uma cidade feita da sua própria alma, que se estendesse longinquamente dentro dele
até «à beira de uma baía calma» (no trecho 114), e imagina a existência, no seu
interior, de todo «um Estado com uma política, com partidos e revoluções»
(trecho 157). A construção de uma terra interior, feita de sonho, recorda-nos
imediatamente do naufragado marinheiro que, no homónimo «drama estático»
publicado por Pessoa em 1915, vai construindo uma pátria natal sonhada que
também incluía uma baía, praias, ruas e gente. Por esta e por outras analogias
com O Marinheiro, o Livro do Desassossego poderia chamar-se
um «romance estático».4 Em vez de viagens terrestres, o narrador do Livro aventa a possibilidade de uma
«geografia» da nossa própria consciência – isto num trecho (76) escrito na
primeira fase redaccional da obra. Na segunda fase, volta à mesma ideia,
dizendo que a geografia da nossa consciência da realidade é «de uma grande
complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos», e traz à
baila o mapa alegórico do Pays du Tendre,
ou «País da Ternura». Integrado num romance francês do século XVII, este mapa
traçava o terreno das emoções humanas (trecho 338).
Bernardo
Soares rejeita a experiência da vida real porque (cito novamente o trecho 138)
«nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste
em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto.
Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que
o procuremos e o saibamos procurar». Esta insistência na busca interior como
único meio de conhecimento – «em nós está tudo» – sugere a anamnese platónica,
pela qual toda a aprendizagem é uma reaprendizagem daquilo que já conhecíamos
numa existência anterior. Não penso que Pessoa-Soares tivesse exactamente esse
conceito em mente, mas um platonismo soft
parece subjazer à noção – fortemente presente no Livro – de que todo o mundo é aparência e símbolos. António Mora, a
este propósito, rejeitou a Teoria das Ideias (ou Formas) de Platão por este ter
cometido o erro de ligar atributos da realidade à consciência (da qual são
extraídas as tais Ideias) e também rejeitou, pela mesma razão, a já referida
doutrina de Condillac de que nunca saímos de nós próprios e das nossas
sensações.5 Digo «a este propósito», porque as objecções levantadas
pelo heterónimo-filósofo confirmam que as ideias-mestras – ou premissas – do Livro do Desassossego têm validade num
contexto específico, que envolve o protagonista e a experiência em que ele
participou, não podendo ser entendidas, sem mais, como ideias subscritas por
Fernando Pessoa.
O
romance-roupeiro
Voltando à
premissa de que o mundo perceptível consiste em símbolos ou aparências, é
por outras palavras que o protagonista costuma referi-la. Fala de trajes, de
vestidos, de vestes, de roupa. No contexto da obra global de Pessoa, o Livro do Desassossego contém uma
inusitada concentração de referências – literais e metafóricas – à
indumentária. Pesquisando apenas as ocorrências do vocábulo traje, ou trajo, nas primeiras cinquenta páginas da edição publicada pela
Assírio & Alvim, obtêm-se os seguintes resultados: o protagonista alude às
suas circunstâncias de vida como sendo o seu «trajo da Rua dos Douradores» (trecho 7); a consciência de que as
pessoas vulgares são os seus semelhantes veste-lhe «o traje de forçado» (trecho 36); um cadáver dá-lhe «a impressão de um
trajo que se deixou» (trecho 40); a
amargura da sua vida despe-lhe «o traje
de alegria natural» (trecho 41); e as suas leituras constituem «um trajo» que mal vê, mas que lhe pode
pesar (trecho 55). As mesmas cinquenta páginas contêm outras tantas referências
à palavra vestir e seus derivados. Num dos trechos mais extraordinários do Livro (298), Bernardo Soares, ao reparar
no vestido verde-claro de uma rapariga no eléctrico, decompõe-no nos seus
vários elementos e tipos de costura. Passa, em seguida, a visualizar a fábrica
onde o vestido foi produzido, todos os gerentes e operários da fábrica – nas
suas vidas públicas e também privadas – e todo o sistema social e económico por
detrás disso, até que finalmente sai do eléctrico, exausto e sonâmbulo,
declarando: «Vivi a vida inteira». Não é de admirar que Soares, autor de uma
autobiografia sem factos mas com fatos, trabalhe na contabilidade de um armazém
de fazendas.
O lugar
privilegiado do vestuário no discurso e no próprio quotidiano de Soares deve-se
à influência de Sartor Resartus [O
Alfaiate Recosturado], um precursor do Livro
do Desassossego enquanto «romance», rótulo sem dúvida discutível para
qualquer dos dois livros. Publicado em 1833-34, a estranhíssima obra de Thomas
Carlyle teve, entre os seus precursores, outro romance pouco ortodoxo dentro do
género: The Life and Opinions of Tristram
Shandy, Gentleman (publicado
entre 1759-1767), de Laurence Sterne.6 Um apontamento de Pessoa
revela que o romance de Sterne fazia parte da sua biblioteca por volta de 19087
, mas foi Sartor Resartus, adquirido em Durban e actualmente à guarda da Casa
Fernando Pessoa, que o marcou profundamente. Numa carta dirigida ao
heterónimo-psiquiatra Faustino Antunes, em Julho de 1907, Ernest A. Belcher –
professor de inglês na Durban High School – recordou que Pessoa era um grande
admirador de Carlyle e que tinha sido difícil «refrear a sua tendência para
imitar muito de perto o estilo» do escritor escocês [I had some difficulty in
checking a disposition on his part to imitate very closely Carlyle’s style].8
Foi logo
após receber essa carta que Pessoa, nada preocupado com a sua alegada tendência
de imitar Carlyle, releu Sartor Resartus,
sublinhando muitas passagens e fazendo numerosos comentários nas margens.9
Segundo um apontamento patente num caderno usado por Pessoa nesse mesmo ano,
1907, ele próprio pensou escrever «a kind of Sartor Resartus» [uma espécie de Sartor Resartus].10 O Livro do Desassossego, que contém duas
referências à obra, é estruturalmente diversíssimo, mas espiritualmente próximo
devido à herança ou coincidência de alguns temas e também à prosa inventiva que
os exprime. Ambas as obras avançam sem avançar, atabalhoadamente e sem medo do
caos.
Subtitulado The Life and Opinions of Herr Teufelsdröckh,
o romance de Carlyle consiste numa longa recensão do livro Clothes, their Origin and Influence [O Vestuário, sua Origem e
Influência], escrito pelo professor Diogenes Teufelsdröckh [Fezes-do Diabo
Nascido-de-Deus]. Na primeira secção, o recenseador cita, interpreta e critica
a chamada «Philosophy of Clothes» desenvolvida pelo autor alemão. (Carlyle,
diga-se de passagem, era um grande erudito da língua e literatura alemãs, tendo
traduzido Goethe e escrito uma biografia de Schiller.) Das passagens citadas da
dita Filosofia da Roupa, supostamente traduzidas do alemão, Pessoa sublinhou,
no seu exemplar do livro, frases como «all objects are as windows» [todos os
objectos são como janelas], «All visible things are Emblems» [Todas as coisas
visíveis são Emblemas], ou «Whatever sensibly exists, whatsoever represents
Spirit to Spirit, is properly a Clothing, a suit of Raiment, put on for a season,
and to be laid off» [Tudo que sensivelmente existe, tudo que representa
Espírito para o Espírito, é propriamente uma Roupa, um Traje, vestido durante
uma estação, para ser despido mais tarde].11
Herr
Teufelsdröckh considera que a linguagem também é roupa por ser essencialmente
figurativa, feita de metáforas, mesmo que o estilo de um dado autor seja
enxuto, seco. Quanto ao seu próprio estilo, o filósofo reconhece que é
exuberante e «not without an apoplectic tendency» [não isento de uma tendência
apopléctica].12 Foi a energia linguística e ideativa, notória em Sartor Resartus, que tanto atraiu Pessoa
para Carlyle, cuja prosa saltitante, pouco linear, ambicionava tocar em
verdades não racionalmente perceptíveis.13 Pessoa era menos
«apopléctico» na sua escrita (a «apoplexia» de Campos era mais temperamental do
que propriamente linguística), mas fazia amplo uso de neologismos e
neossintaxe, nomeadamente no Livro do
Desassossego, e compartilhava com Carlyle a noção de que a forma como se
exprime já é, em si, uma verdade. Para ambos a linguagem era uma roupagem, sim,
mas uma roupagem como que sagrada. O protagonista do Livro do Desassossego, condenado por Pessoa a ser
espectador-escritor de si próprio, quase não tem mais nada a não ser a
linguagem. Será a sua consciência desta irrevogável condição – «Sou, em grande
parte, a mesma prosa que escrevo» (trecho 193) – que o faz atribuir especial
importância ao «manto régio» da ortografia etimológica (trecho 259).
O romance
decadentista
A entrega de
Soares às sensações, aos sonhos e à linguagem que os descreve não é um
comportamento que Pessoa lhe impõe arbitrariamente ou por razões meramente
pessoais, para investigar as suas próprias propensões e manias
idiossincráticas. Prende-se, segundo a lógica narrativa do Livro, com a inutilidade de agir numa sociedade doente e sem cura à
vista. O protagonista comporta-se como um decadente – dedicado a um «decorativismo
interior» feito das suas sensações, que «são a única realidade que lhe resta»
(trecho «O Sensacionista») – por ser o produto de uma conjuntura decadente. A
sua pretensa autobiografia, embora prescinda de factos concretos, está ancorada
num tempo real, marcado pelo desmoronamento dos sistemas políticos e sociais
tradicionais e pela perda da fé no Deus cristão.
Há três
trechos escritos na década de 1910 (175, 306 e «O Sensacionista») em que o
protagonista nos lembra a sua pertença a uma geração em que as velhas crenças
morreram, pelo que ele e os seus pares ficaram «cada um entregue a si próprio,
na desolação de se sentir viver» (trecho 306). Num quarto trecho, escrito bem
mais tarde, mas destinado a abrir o Livro
do Desassossego (trecho 1, datado de 29/3/1930 e rotulado de «trecho
inicial»), Bernardo Soares apresenta-se como tendo nascido «em um tempo em que
a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus». Identifica-se com a
corrente designada por Decadência pelo facto de ter perdido totalmente a inconsciência
e, com ela, a capacidade de viver espontaneamente. Resta-lhe, assim, «a
renúncia por modo e a contemplação por destino».
A renúncia e
a contemplação resumem bem a maneira de ser passiva de Jean des Esseintes,
herói de À rebours [Às Avessas], um
livro iniciático para os adeptos do movimento decadentista. Embora não haja
provas concludentes de que Pessoa o tenha lido, refere Huysmans e o seu célebre
romance em dois apontamentos redigidos por volta de 1907.14 Em todo
o caso, encontramos curiosos pontos de contacto entre os protagonistas do Livro do Desassossego e de À rebours
– pontos de divergência mais do que de concordância, apesar de uma atitude de
base parecida. O herói burguês inventado por Pessoa cultivava uma aristocracia
interior, enquanto Jean des Esseintes provinha de uma família de sangue azul,
abastada e socialmente conceituada.
Retirando-se
da sociedade para o seu mundo privado em que se propõe «substituer le rêve de
la réalité à la réalité même» [substituir a realidade em si pelo sonho da
realidade]15, o aristocrata francês passa boa parte do tempo
mergulhado em leituras que excitam a sua imaginação. De tão entusiasmado que
fica com a leitura de Charles Dickens, toma a decisão de fazer uma viagem a
Londres. Ainda em Paris, à espera do comboio, ocorre-lhe almoçar num
restaurante inglês onde observa, deliciado, os seus convivas britânicos, que
lhe lembram certas personagens dos romances de Dickens. Cancela então a viagem,
convencido de que já não fazia sentido ir a Londres quando podia viajar
«magnifiquement sur une chaise» [magnificamente sentado numa cadeira].16
Cena do Filme do Desassossego |
Bernardo
Soares, um contemplativo mais radical, nunca chegou ao ponto de planear uma
viagem. E apesar de ser dotado de uma grande cultura livresca, quase deixou de
ler, contrariamente ao protagonista de Huysmans. Jean des Esseintes lê e
comenta não apenas os seus contemporâneos (entre os quais Verlaine, Mallarmé e
Villiers de l’IsleAdam), mas também muita literatura antiga, incluindo
escritores da Igreja. Queixa-se, porém, do «style épiscopal, si banalement
manié par les prélats» [estilo episcopal, tão banalmente exercitado pelos
prelados], preferindo por isso os autores católicos leigos.17 O
protagonista do Livro do Desassossego,
como se quisesse distanciar-se do outro (caso o conhecesse), ostenta a sua
preferência por «livros banais» e pelo «estilo afectado, claustral, fruste, do
Padre Figueiredo», autor de uma Retórica,
com a qual, garante: «Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim» (trecho
417).
Mas o que é
esse «mim» a que o suposto autobiógrafo se abandona? E quando diz, noutro
trecho (443), «Não escrevo em português. Escrevo eu mesmo» (trecho 443), quem é
esse «eu»? No trecho que começa «Suponho que seja o que chamam um decadente»
(387), Soares explica a sua escrita como uma tentativa de figurar «em uma
matemática expressiva as sensações decorativas» da sua «alma substituída». Não
se trata de um decorativismo decorrente de uma atitude esteticizante, pois
todas as sensações são decorações da alma, porque tudo é decoração, roupa,
símbolo. Quanto à dita «matemática expressiva», está longe de ser cartesiana.
«Em certa altura da cogitação escrita», esclarece Soares na mesma passagem, «já
não sei onde tenho o centro da atenção – se nas sensações dispersas que procuro
descrever, como a tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que, querendo
descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras
coisas». O protagonista fica imerso num turbilhão «de ideias, de imagens, de
palavras – tudo lúcido e difuso –» e perde-se fatal e gloriosamente, «como um
náufrago afogando-se à vista de ilhas maravilhosas», representadas no «mapa
absurdo de sinais mágicos» que é a própria escrita de Soares.
O
romance-naufrágio
O Livro do Desassossego, enquanto romance,
é um naufrágio. O seu protagonista bóia, perdidamente, num sargaço de sensações
e palavras que não formam uma trama nem o levam a lado nenhum que se perceba.
Ficou provado que a autossuficiência não é viável. «Tanta inconsequência em
querer bastar-me!» desabafa Bernardo Soares (trecho 79), «[t]anta consciência
sarcástica das sensações supostas!» Ninguém aguenta viver exclusivamente da
imaginação literária, interiorizando tudo e dependendo do mundo exterior apenas
como alimento do sonho e da literatura. Surge, desde logo, um impedimento de
ordem prática: por mais que se esforce por evitá-la, haverá sempre um mínimo de
interacção com o exterior. E assim, como lamenta o próprio sujeito da dolorosa
experiência: «conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento,
consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem
como catástrofes» (trecho 462). Confessa ainda que, por tanto ter analisado a
sua vontade de viver, acabou por matá-la.
Essa
experiência, claro está, foi uma batota, uma mera encenação. O romancista sabia
desde o início que o seu herói era um anti-herói, predestinado à derrota. O
trecho que acabo de citar foi redigido muito cedo, e numa carta enviada para
João de Lebre e Lima em 3 de Maio de 1914, Pessoa escreveu, a propósito de «Na
Floresta do Alheamento», publicado em Agosto do ano anterior: «O que é em
aparência um mero sonho, ou entressonho, narrado, é – sente-se logo que se lê,
e deve, se realizei bem, sentir-se através de toda a leitura – uma confissão
sonhada da inutilidade e dolorosa fúria estéril de sonhar». Um dos primeiros
trechos escritos para o Livro do
Desassossego intitula-se «Glorificação das Estéreis». Todo o Livro, de acordo com a carta enviada a
João de Lebre e Lima, talvez pudesse ostentar o subtítulo de «Glorificação dos
Estéreis», em alusão àqueles que sonham sem fim e sem utilidade aparente.
Espero ter demonstrado que Fernando Pessoa não era um desses sonhadores
estéreis, mas apenas o seu teórico e admirador ambivalente.
Nos anos
seguintes, Pessoa produziria numerosos trechos sobre a «Maneira de Bem Sonhar»,
com ou sem este título, e a forma narrativa dominante do Livro continuaria a ser o relato confessional, feito na primeira
pessoa. O alheamento, é certo, tomaria outros rumos, tornando-se o discurso de
um protagonista inserido, pelo menos superficialmente, no mundo comercial e
quotidiano de Lisboa. Porém, haveria sempre, mesmo na última fase redaccional,
exemplos da sua vida interior convertida em paisagem simbolista, da qual «Na
Floresta do Alheamento» é o protótipo máximo, e as passagens diarísticas
assinadas por Guedes ou por Soares também são paisagens, quadros de literatura.
As verdadeiras linhas mestras do Livro do
Desassossego saltam à vista em qualquer fase da escrita. Relembro que a
história do ajudante de guarda-livros, embora surja já na primeira fase,
constitui um não-enredo, demasiado ténue para provar o carácter romanesco do Livro; denota, no entanto, a vontade que
Pessoa tinha de fazer um romance, ou coisa parecida.
O tipo de
livro que ambicionava produzir sofreu constantes desvios e interferências. Por
exemplo, há um trecho (106) em que Bernardo Soares cita um verso – «Quero-te só
para sonho» – que diz ser de um velho poema seu. O poema, na verdade, foi
assinado por Pessoa e publicado por este na Athena.
No Livro do Desassossego, tal como no
resto da sua obra, Fernando Pessoa era promíscuo e incontinente, ultrapassando
as fronteiras mal definidas (e mal defendidas) entre ele, os diversos
colaboradores fictícios e os respectivos projectos literários. Mas mesmo que
tivesse ficado fiel aos seus propósitos, o Livro
seria sempre um romance gorado, pois um protagonista que não age contraria os
princípios que definem o género. Diz Bernardo Soares: «Sou uma figura de
romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos
de quem me não soube completar». Talvez seja mais correcto classificar o Livro assim, como um «romance por
escrever». Curiosamente, o trecho que acabo de citar (262) termina com a
seguinte frase, desgarrada e sem nexo com os parágrafos anteriores: «Minha mãe
morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer…». É como se Pessoa se
recordasse repentinamente, decerto com um misto de ironia e tédio, que
precisava de injetar mais substância biográfica no seu protagonista sonhado e
sonhador.
Thomas
Carlyle também não tinha paciência para desenhar um retrato minucioso do seu
protagonista, Herr Teufelsdröckh. Melhor dizendo, não acreditava que um retrato
clássico pudesse transmitir a alma de uma pessoa, ou personagem. Por isso
subverteu o jogo. O narrador de Sartor
Resartus, às voltas com a sua recensão de Clothes, their Origin and Influence, escreve para a Alemanha a
pedir informações sobre o autor do livro, na esperança de que esses dados
biográficos pudessem esclarecer alguns aspectos da Filosofia da Roupa. Recebe,
pelo correio, seis sacos de papel cheios de fragmentos autobiográficos,
redigidos pela mão do próprio filósofo. Cada saco é misteriosamente rotulado
com um signo zodiacal. Dessa mixórdia de papéis, o narrador tece uma vida
parcelar e extrai algumas opiniões subscritas por Herr Teufelsdröckh. Tudo isso
– os muitos fragmentos soltos, a astrologia, a autobiografia confiada a outra
pessoa que a divulga – lembra-nos o universo escrito de Fernando Pessoa. E Herr
Teufelsdröckh é também um semi-heterónimo, um Carlyle mutilado, como se
depreende da descrição de Entepfuhl, a aldeia fictícia onde nasceu e que se
assemelha, em vários pormenores, a Ecclefechan, a aldeia nativa do seu criador.
Quanto à
figura do sartor, ou alfaiate, é um
Criador e mesmo uma Divindade, segundo nos revela o penúltimo capítulo do
romance de Carlyle, e os Poetas são «Metaphorical Tailors» [Alfaiates
Metafóricos]. Estas pistas levam-nos a concluir que o título do livro é
autorreferencial. O sartor resartus é
o próprio escritor recosturado, reescrito: Mr. Carlyle reconfigurado em Herr
Teufelsdröckh, ou Fernando Pessoa em Bernardo Soares. De mais a mais, o título
sugere que mesmo Deus – o sartor-mor,
criador do mundo visível – acaba por ser revisto, re-vestido. Carlyle cedo
perdeu a fé no Deus do calvinismo escocês, mas nutria e propalava uma fé
ardente no acto de ter fé, uma atitude que Herr Teufelsdröckh, antecipando
Nietzsche, designa por The Everlasting
Yea [O Sim Eterno]. O conceito de Deus carlyleano assemelha-se, de facto, à
indefinida definição da divindade que encontramos no Livro do Desassossego
(trecho 473): «É qualquer ente, existente e impossível, que rege tudo; cuja
pessoa, se a tem, ninguém pode definir; cujos fins, se deles usa, ninguém pode
compreender. Chamando-lhe Deus dizemos tudo, porque, não tendo a palavra Deus
sentido algum preciso, assim o afirmamos sem dizer nada.»
Dizer «sim»
é um acto verbal e a religiosidade, em Sartor
Resartus, é de certo modo um fenómeno linguístico. É-o ainda mais
patentemente no Livro do Desassossego.
«Os Deuses são uma função do estilo» (trecho 87), diz o protagonista, que, não
conseguindo ter uma fé sólida, também não abandonou Deus tão «amplamente» como
outras pessoas da sua geração (trecho 1). Ao longo do Livro, alude constantemente a Deus ou aos deuses e não só: aplica a
terminologia religiosa à sua viagem de alma e mente, vendo-se como um monge –
que não reza, mas se dedica ferozmente à contemplação imaginativa e à escrita
(no trecho 4, por exemplo). A tentativa de viver de forma autossuficiente,
apenas dos seus sonhos e das suas sensações transformadas em literatura, não
teve um resultado feliz, mas a sua extrema e deliberada solidão tem, afinal,
outro objectivo, de índole espiritual, ou linguístico-espiritual.
O auge de
uma vida sonhadora – convertida não num romance, mas em inúmeros romances – é
descrito no trecho intitulado «Maneira de Bem Sonhar nos Metafísicos». Aí o
protagonista, depois de anunciar que se substituiu pelos seus sonhos, vai
traçando o caminho conducente a um nirvana onde o escritor consegue escrever de
mil maneiras diversas, mediante interpostos autores, criados pela imaginação.
Conclui o trecho dizendo: «Este é o único ascetismo possível. Não há nele fé,
nem um Deus. Deus sou eu.» Um eremita no deserto isola-se do mundo para
comunicar com Deus. Bernardo Soares no seu quarto da Rua dos Douradores,
Vicente Guedes na Rua dos Retroseiros, ou o narrador do alheamento na sua
alcova, opta pela mesma via ascética, solitária, para se tornar Deus.
Alquimista que trabalha com sensações, visões e palavras, o protagonista tem os
seus momentos de êxtase – o sonho bem sonhado, a página bem escrita –, mas é um
deus eternamente frustrado. A sua imperfeição manifesta-se no próprio trecho em
que declara ser um deus, pois «Maneira de Bem Sonhar nos Metafísicos» é um
texto lacunar, inacabado, mal articulado. E mesmo que o não fosse...
«Não há obra
de artista que não pudesse ter sido mais perfeita», reconhece o protagonista
num trecho sobre o seu desesperado esforço para criar e se exprimir.18
O Livro do Desassossego é um
romance-drama sobre um escritor que anseia ardentemente por uma perfeição que
sabe ser impossível. Escrever, afinal de contas (ou afinal de tantas dúvidas),
é um acto de fé não se sabe bem em quê, uma variante do Sim Eterno de Carlyle.
Ou então este Livro (seguindo a
sugestão do trecho 152) é um romance sobre um simples drogado, que escreve por
vício. De uma maneira ou outra, o protagonista é um falhado e o romance um
fracasso – possivelmente o maior fracasso literário do século XX.
* Este texto é resultado de uma comunicação para III Congresso Internacional Fernando Pessoa realizado entre os dias 28 e 30 de novembro de 2013 em Lisboa.
Notas:
1
A referida passagem, texto AP2 na edição Assírio & Alvim/Companhia das
Letras, foi escrita no mesmo suporte e com a mesma caneta que uma lista de
iniciativas destinadas a promover a poesia de Alberto Caeiro e que incluem o
«Artigo sobre A. Caeiro, n’A Águia».
Dado Pessoa ter cortado relações com a revista portuense em Novembro de 1914, a
lista será ainda desse ano ou, quando muito, de 1915, caso o autor tenha
contemplado uma reaproximação aos directores do periódico.
2 Pessoa,
Livro do Desassossego, 11.ª ed.,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2013 [São Paulo: Companhia das Letras, 2012],
trecho 138. Esta será a edição de referência no presente ensaio.
3
Publicado em Fernando Pessoa’s Modernity
without Frontiers: Influences, Dialogues and Responses, ed. Mariana Gray de
Castro, Woodbridge, Suffolk: Tamesis, 2013, p.193-200
4
A afinidade do Livro do Desassossego
com O Marinheiro, no que diz respeito
à ausência de acção, foi notada em dois estudos recentes: Michaël Stoker, Challenging Modernism: Fernando Pessoa and
the Book of Disquiet, tese de doutoramento defendida na Universidade de
Utrecht, 2013, e Thomas Cousineau, An
Unwritten Novel: Fernando Pessoa’s The Book of Disquiet, Champaign,
Illinois: Dalkey Archive Press, 2013. O livro de Cousineau, com uma abordagem
diferente daquela adoptada no presente ensaio, também trata o Livro como uma
espécie de romance.
5
Pessoa, O Regresso dos Deuses e outros
escritos de António Mora, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio
& Alvim, 2013, pp. 243-44.
6 As
outras fontes mais inspiradoras do livro de Carlyle eram The Tale of a Tub, de Jonathan Swift, e várias obras de Goethe,
sendo bem conhecida a admiração de Pessoa por ambos os autores.
7 Uma
lista de quinze livros, elaborada por essa altura e encimada pela indicação
«Take:» [Levar], inclui «Laurence Sterne’s works», juntamente com obras de
Laing, Darwin, Emerson, Tennyson, Lewes e outros autores (BN E3/93A-67). Quase
todas as obras, excepto as de Sterne (que Pessoa terá vendido ou dado a
alguém), figuram na sua biblioteca pessoal à guarda da Casa Fernando Pessoa.
8 Ver
carta de Belcher em Pessoa, Escritos
Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, Lisboa: Assírio &
Alvim, 2003, p. 390-93.
9
Numa lista de tarefas datável de Setembro de 1907 (E3/133F-53v), lê-se: «Finish
reading first part “Sartor”» [Acabar de ler a primeira parte de «Sartor»]. A
julgar pela caligrafia, as notas marginais inscritas no livro serão quase todas
de 1907, parecendo provável que Pessoa, em Durban, tenha lido principalmente a
outra obra de Carlyle incluída no mesmo volume: Heroes; Past and Present. Foi em Durban, no entanto, que escreveu a
seguinte observação, posteriormente riscada: «“Sartor Resartus” is useful in
giving to us an analysis of genius, a sort of soul-autobiography. Psychologists
should take notice of it.» [«Sartor Resartus» é útil na medida em que nos
oferece uma análise do génio, uma espécie de autobiografia da alma. Os
psicólogos deveriam prestar-lhe atenção.
10
E3/144T-52.
11
Cito o Book I, capítulo XI. Estas três noções carlyleanas ressurgem no Livro do Desassossego. No trecho 70,
Soares, imaginando a vida de um transeunte na Rua Nova do Almada, escreve:
«Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos».
No trecho «Peristilo», o narrador anseia: «O teu sorriso vago e indo-se seja
para mim símbolo – emblema visível do soluço calado do inúmero mundo ao saber-se
erro e imperfeição». Já citei o trecho 40, a propósito de um cadáver que se
afigura «um trajo que se deixou».
12
Ibidem.
13
No artigo «Macaulay», publicado na Durban High School Magazine, em 1904, Pessoa
exprimiu o seu entusiasmo pela prosa de Carlyle num parágrafo que começa: «We
feel an immense commotion in reading him, in his electrical attraction for us»
[Sentimos uma imensa comoção ao lê-lo, devido à atração electrizante que exerce
sobre nós]. Num de vários apontamentos inéditos sobre Carlyle, Pessoa comentou
que o «frantic style» [estilo frenético] da sua escrita, caracterizado por uma
«frequent extravagance of diction» [extravagância frequente da dicção], era o
único estilo em que o escocês podia exprimir as suas ideias (E3/279 D2 -46v.).
Noutro apontamento, observou que Carlyle trouxe, para a literatura, «the sense
of mystery girding around all human action» [o sentimento de mistério que
envolve toda a acção humana] (E3/133F-65v.).
14
E3/48B-113 e 79-45a.
15
Joris-Karl Huysmans, À rebours, Paris: Gallimard, 2001, p. 103.
16
Ibidem, p. 247.
17
Ibidem, p. 261.
18
Trata-se do trecho 328, que parece corresponder à «Litania de Desesperança»,
referida numa lista de trechos para o Livro.
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