Se “A casa” de Vinicius é folclore brasileiro
Por Daniel Gil
A casa
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque na casa
Não tinha
parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito
esmero
Na Rua dos
Bobos
Número Zero.
(MORAES, 1970, p. 74)
O poema “A casa” foi publicado em
1970 no livro A arca de Noé, volume
de poesia escrito para crianças. No mesmo ano, por sugestão do compositor
italiano Sérgio Bardotti, Vinicius de Moraes lançou o LP L’arca, canzoni per bambini. Os poemas do livro, ali, aparecem musicados
e vertidos para a língua italiana, com colaborações de Luis Enríquez Bacalov,
Sergio Bardotti, Sergio Endrigo e Toquinho. A grande demanda pelo álbum na
Itália, onde até então ninguém apostava no êxito comercial de canções para
crianças, devia-se principalmente ao sucesso de “La casa” (Vinicius e
Bardotti), cantada por Sergio Endrigo. Em 1974, no LP Toquinho/ Vinicius &
amigos, a mesma canção aparece pela primeira vez em português, com letra
idêntica ao poema publicado quatro anos antes.
Primeira edição de A arca de Noé |
O álbum A arca de Noé foi lançado no Brasil em 1980, alguns meses após o
poeta vir a falecer. Foi interpretado por diversos artistas, entre eles Chico
Buarque, Elis Regina e MPB-4, e fixou de modo especial algumas canções na
cultura popular brasileira, como “O pato” e, sobretudo, “A casa”.
Damos início a uma investigação da
substância folclórica adquirida pela canção por meio de uma pesquisa de campo.
O objetivo foi evidenciar mais concretamente seu impacto no imaginário
coletivo, bem como o modo com que a coletividade se relaciona com a autoria
daqueles versos. Os formulários de pesquisa foram apresentados em dois fins de
tarde na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, local e horário em que
há uma heterogeneidade inequívoca entre os possíveis voluntários. Foram
considerados somente os formulários preenchidos por aqueles com data de
nascimento igual ou posterior a 1980, porque assim teríamos amostra de uma geração
que não acompanhou a publicação do poema, os lançamentos da canção e seus
mecanismos promocionais. Após a transcrição dos versos de “A casa”, sem o
título e sem o autor, os voluntários foram interpelados a três questões: primeiro
dizer a data de nascimento; depois responder se conheciam os versos do poema a
eles oferecido; e por fim dizer a qual autor atribuiriam o poema – pergunta para
a qual demos as sugestões de Olavo Bilac, Lamartine Babo, Vinicius de Moraes,
Chico Buarque ou Sem autoria, versos do folclore brasileiro.
Os resultados dos cem formulários
preenchidos instigaram sobremaneira o desenvolvimento deste estudo. Não houve
quem ali relatasse desconhecimento – todos os voluntários afirmaram conhecer os
versos d’“A casa”.
Quanto à autoria, quarenta e um
voluntários afirmaram que os versos são “Sem autoria, versos do folclore
brasileiro”; vinte e seis afirmaram que os versos são de Vinicius de Moraes; dezesseis
que os versos são de Chico Buarque; nove que são de Lamartine Babo; e oito que são
de Olavo Bilac.
Não seria forçoso admitir que
esses resultados advenham da incidência reiterada d’“A casa” ao lado de um
conjunto de canções e cantigas populares reconhecidamente folclóricas. É
natural, por exemplo, que se manifestem versos como “Se essa rua fosse minha” e
“O cravo brigou com a rosa” nas mesmas circunstâncias em que se ouve “Era uma
casa/ Muito engraçada”.
Segundo Luís da Câmara Cascudo
(1898-1986), os elementos característicos do folclore são: “a) antiguidade; b)
persistência; c) anonimato; d) oralidade” (Cascudo, 2006, p.22). Ainda que o
poema esteja certamente consolidando essas características, quanto mais quando se
as observe de trás para frente – oralidade plena, anonimato significativo, curiosa
persistência e pouca antiguidade –, o estudioso, de obra vasta e indispensável
sobre a cultura brasileira, oferece um cunho medular ao critério temporal:
“Uma produção, canto, dança,
anedota, conto, que possa ser localizada no tempo, será um documento literário,
um índice de atividade intelectual. Para que seja folclórica é preciso certa
indecisão cronológica, um espaço que dificulte a fixação no tempo. Pode
dizer-se a época, uma época extensa, mas não a restringindo mesmo a indicação
de uma década. Natural é que uma produção que se popularizou seja folclórica
quando se torne anônima, antiga, resistindo ao esquecimento e sempre citada,
num ou noutro meio denunciador da predileção ambiental.” (Cascudo, 2006, p.22-23)
Cascudo reconhece, no entanto,
que um poema, uma canção, uma história simpática ao gosto popular etc. podem
marchar para a despersonalização e se perpetuar no folclore. Cabe ressaltar que
o avanço das tecnologias faz com que o desaparecimento completo dos registros
de autoria e de fixação no tempo seja cada vez mais improvável. Seria então o
fim da história quanto ao surgimento de novas manifestações em muitos segmentos
do folclore?
Acontece que ainda persiste em
algum grau a leitura tradicional da carta do etnólogo inglês William John
Thoms, que propôs a palavra folk lore,
empregada então pela primeira vez em 1848 para designar as “antiguidades
populares” e que, inclusive, teriam de ser salvas por meio de instrumentos de ciência
e de conservação:
“Quem quer que tenha estudado os
usos, costumes, cerimônias, crenças, romances, refrãos, superstições, etc., dos
tempos antigos deve ter chegado a duas conclusões: a primeira, o quanto existe
de curioso e de interessante nesses assuntos, agora inteiramente perdidos; a
segunda, o quanto se poderia ainda salvar, com esforços oportunos”. (Thoms,
1848. In: Vilhena, 1997, p. 307)
No volume Dinâmica do folclore, assinado pelo etnólogo, historiador e
folclorista Edison Carneiro (1912-1972), verificamos que, contra a passividade
da leitura tradicional, tomaram posição, entre outros, Augusto Raúl Cortázar,
Ruth Fulton Benedict e folcloristas soviéticos em geral, como Yuri Sokolov. O
francês Pierre Saintyves chegou mesmo a aproximar-se de uma concepção dinâmica
do folclore, mas que, segundo o autor, não soube tirar de suas observações tudo
o que se poderia. Nessa direção, Carneiro prioriza a importância de se indagar
por que sobrevivem essas formas, em detrimento a aceitá-las simplesmente como resíduos
de uma antiga cultura ou estado moral e intelectual.
Vale assinalar que “A casa” tem
uma origem bem distinta das manifestações folclóricas tradicionais. Este poema
é urbano, burguês, composto em meio à ligeireza de transformações sociais,
culturais e econômicas. Foi publicado em livro. Mais comum é encontrarmos estudos
que tratam do folclore desde o mundo rural ou entre populações indígenas, pois
seu advento como forma estruturada de “ciência” partiu, à época, de um
paradigma evolucionista sobre um conjunto de elementos que estariam resistindo
ao progresso.
Os primeiros levantamentos foram
realizados no século XIX, quando muito insurgiam o prestígio e a influência de
intelectuais como Charles Darwin e Herbert Spencer, bem como do positivismo de
Augusto Comte. Não era distinto conceber, então, que a sociedade evolui de
maneira positiva e inevitável, à semelhança dos seres vivos, e que determinados
traços do cotidiano, mais resistentes a esse processo, interessassem justamente
como possíveis evidências dessa evolução e de seu ritmo desacelerado. O olhar
dos primeiros folcloristas, portanto, possuía um juízo de valor absoluto
atraído pelos costumes dos “atrasados”, do “povo”, sua maneira de ser, de
pensar e de agir. Enquanto o significado de “cultura” apontava para os saberes
das classes mais elevadas, transmitidos principalmente por meio da palavra
escrita, o “folclore” abarcava um conjunto de conhecimentos informais e
manifestações típicos das classes mais baixas, sustentado pela oralidade.
O sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995)
defendeu que a diferença de mentalidade entre indivíduos que pertencem a
classes sociais diferentes é de grau, e não de natureza, como pretenderiam os
primeiros folcloristas; e que o ideal social é criado por toda a sociedade, sob
a forma de valores comuns, e expresso também sob a forma de elementos
folclóricos que abrangem indistintamente todas as classes (Fernandes, 2003, p. 44-51).
Muitas vezes esses elementos folclóricos passam a agir de modo amplo como
veículos de uniformização dos padrões de comportamento, ou mesmo expressando regras
de conduta, contribuindo para tornar possível a vida em sociedade, criar uma
mentalidade característica, tomada como um todo ou pelo menos quanto a seus
valores essenciais, e perpetuar a configuração sociocultural em que esses
valores estão integrados. A respeito dessa ação, presente em todas as camadas
da sociedade, o sociólogo pôde experimentá-la:
“É fácil verificar, como fizemos
numa pesquisa, em São Paulo, que os mesmos elementos folclóricos ocorrem,
indistintamente, em ambos os meios ou classes sociais. Os mesmos provérbios, as
mesmas “superstições” e as mesmas “crendices”, os mesmos contos e as mesmas
lendas etc. são igualmente usados por indivíduos do “povo” ou das classes “altas”
e “cultas”, não havendo aí condições para caracterizar profundamente – e não
por ocorrências específicas e isoladas – uns e outros, relativamente à “literatura
oral”, salvo participação desigual dos elementos, o que não infirma, em
absoluto, a generalidade desses elementos.” (Fernandes, 2003, p. 45)
A teoria da cultura espontânea, formulada
por Rossini Tavares de Lima (1915-1987), segue nesse sentido e é a mais moderna
e esclarecedora delineação da essência folclórica já desenvolvida entre os estudiosos
do país. Rossini foi historiador e uma referência assinalada sobre o folclore
brasileiro, seus conceitos e suas manifestações. É possível deduzir, por meio
da leitura de seu trabalho, por que o poema de Vinicius de Moraes passou a se
resguardar muito justamente entre manifestações de origens distintas e que não
apresentam datas ou autorias marcadas como constam d’“A casa”.
LP Toquinho/ Vinicius & amigos, em que aparece pela primeira vez a gravação de A arca de Noé. |
O folclorista identifica três
tipos de cultura de acordo com as características dos meios pelos quais se
disseminam. Destaca primeiramente o que chama de cultura erudita, e a caracteriza
pelo “ensinamento direto” de instituições intelectuais – universidades,
academias, escolas, igreja, imprensa, cinema etc. A cultura espontânea seria,
por sua vez, aprendida “de maneira informal” durante a convivência entre os
homens, do nascimento à morte, da imitação e da aceitação coletiva espontânea, sobretudo
em condicionamento inconsciente. E a cultura popularesca ou de massas seria
produzida e dirigida por grandes e complexas empresas com fins comerciais –
para o consumo. Cada uma estaria suscetível, em algum grau, às demais, e alguns
elementos poderiam se conformar em um tipo de cultura mesmo quando originários
de outro (Lima, 2003, p.24-30).
Rossini constatou, em quatro
décadas de estudo e trabalho de campo, no domínio do folclore, que o melhor
entendimento do homem da sociedade letrada não se daria com uma análise de sua
cultura erudita ou de sua cultura popularesca ou de massas, mas de outra que
não existe como consequência da intervenção direta das culturas dirigidas:
“É uma cultura informal, que
recebemos, aceitamos e difundimos, dentro de um mecanismo bem diferente do que
ocorre com as culturas dirigidas: erudita, popularesca e de massas. Por isso, a
denominamos “cultura espontânea”; ela é espontânea no seu condicionamento
inconsciente de sermos levados a fazer, no processo de imitação do fazermos
imitando o que os outros fazem e da aceitação coletiva, em que se observa a
liberdade de aceitar e de recusar.” (Lima, 2003, p.25)
Seríamos induzidos, ao reconstituir
a trajetória d’“A casa” sob a luz da teoria do folclorista, a compreendê-la como
um elemento gerado da cultura erudita, dirigido por meio dos livros e herdeiro,
em muitos aspectos, de um cultivo realizado nas instituições formais de
conhecimento. A partir de quando, pouco tempo depois, se refez em música, seus
versos ganharam o aparato de uma cultura popularesca ou de massas, usufruiu de
todo um empreendimento de grande alcance popular, importantes meios de difusão
e distribuição. E, nesse caso, as diferentes formas e veículos se complementavam.
O poema reproduzido em livro e cartilhas escolares ganhava corpo com a grande disseminação
popular de seu aspecto como canção, e o movimento contrário também acontecia.
“A casa” contou, ainda, com alguma natureza ou características difíceis de
definir que provocavam uma inegável aceitação das classes mais variadas da
sociedade, quanto mais por suas manifestações de aparência diversa.
Primeiro LP A arca de Noé |
Conquanto houvesse posteriormente
um arrefecimento da propagação pelos meios dirigidos, “A casa” continuou se
manifestando como cultura brasileira de modo muito semelhante às cantigas
populares, difundida oralmente, sem que fosse importante uma referência autoral
ou temporal. E é isso que tem a diferenciado mesmo das músicas populares que
permanecem ao longo do tempo por meio da indústria fonográfica. Incorporou-se na
composição de Vinicius uma faculdade para a aceitação e desdobramento espontâneos,
de viés folclórico, tornando-a menos dependente de possíveis veículos
comerciais.
Rossini considerou o folclore, no
quadro das ciências humanas, como a mais nova dessas ciências, de relação
estreita com a antropologia cultural, a etnografia e a sociologia. O folclore
teria, então, maiores afinidades com as primeiras duas, embora não se constitua
uma subdivisão de nenhuma dessas. Muitos conceitos, pois, da antropologia
cultural e das teorias de interpretação da cultura estão incluídos na teoria do
folclore, mas, observou Rossini, o folclore “não estuda a cultura, mas uma
cultura, a espontânea, que coexiste com a cultura erudita, popularesca e de
massas” (Lima, 2003, p. 17). Ao formular fundamentos com base nessa
transposição, o folclorista pontua terminologias e sobressalta algumas questões
de bastante interesse:
– não há folclore mais rico ou
mais pobre;
– “autenticidade”, “autêntico”,
“pureza” e “puro” são palavras que não possuem qualquer significação para o
cientista do folclore;
–“origem” também não deve
preocupar o folclorista, porque sua atividade, dentro de uma orientação
científica, jamais deve se caracterizar pela busca de origens deste ou daquele
traço ou complexo cultural espontâneo;
– “tradicionalismo” e
“tradicionalista” definem atitude de quem deseja reviver o passado e, portanto,
nada têm a ver com o folclore, que objetiva estudo e pesquisa de uma
manifestação de cultura;
– a moderna ciência do folclore
não admite como característica do folclore o anônimo, o tradicional e a
transmissão oral: hoje, sabemos, com base em pesquisas e documentação, que
certas manifestações têm autor conhecido, outras são transmitidas pela linguagem
escrita e até impressa, e outras independem da tradição, na característica da
passagem de uma geração para a outra; o que as define é a aceitação coletiva
espontânea. (Lima, 2003, p. 17-23)
Mesmo longe de uma elucidação
definitiva sobre todas as dúvidas acerca do fato folclórico, ainda mais quando
o objeto em questão possui um punhado de características pouco usuais para o
reconhecimento, é certo, no entanto, que não há entre teóricos do folclore uma sentença
comum capaz de inviabilizar um olhar sobre as inclinações que “A casa”, de
Vinicius de Moraes, esteja adquirindo para que se torne um legado relativamente
recente do folclore brasileiro. Os indícios, pelo contrário, parecem
significativos quando colocamos a produção contemporânea sobre o tema ao lado de
tendências que podem ser detectadas, por exemplo, por meio de pesquisas de
campo.
Estamos diante de um poema que é,
simultaneamente, simples porque voltado para crianças, consistente porque conduza
o interlocutor, qual seja, à abstração, em menor ou maior profundidade, sobre o
impossível, o ilógico, o nada, o não-ser. Há os que se simpatizem pelo inusitado-cômico.
Outros – talvez crianças ou não – por uma primeira chamam de filosofia. O
encantamento seria descoberto entre essa simplicidade e essa capacidade de transportar,
embora haja uma força mística que perpassa intraduzível toda literatura “anônima”,
sem que mesmo as técnicas do autor a presumissem. É provável, por isso, que a
autoria deixe-se levar. Mas, como afirmou Câmara Cascudo: “Essa literatura é
poderosa e vasta. Compreende um público como não sonha a vaidade dos nossos
escritores” (Cascudo, 2006, p.26-27). Em meio à disputa de personalidades, estilos,
escolas, bairrismos, revisionismos, tradição e vanguarda, erudição e iconoclastia,
perder o próprio nome para o imaginário coletivo de uma sociedade poderia
certamente ser considerado a mais alta escala de consagração a que um poeta é
capaz de chegar.
Referências
CARNEIRO, Edison. Dinâmica do
folclore. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura
oral no Brasil. 2 ed. São Paulo: Global, 2006.
FERNANDES, Florestan. O folclore
em questão. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LIMA, Rossini Tavares de. A
ciência do folclore. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MORAES, Vinicius de. A arca de
Noé. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970.
VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e
missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte/
Fundação Getúlio Vargas, 1997.
* Daniel Gil é doutorando em Letras
Vernáculas/ Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
onde obteve o título de mestre (2009) na mesma área, com dissertação sobre
Vinicius de Moraes. Integra, frequentemente, pesquisas sobre Vinicius de Moraes para a
Editora Schwarcz Ltda./ Companhia das Letras.
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