Konstantinos Kaváfis
Para os cabalistas e especuladores da numerologia, há muito o que trazer à luz sobre
datas redondas. Konstantinos Kaváfis
nasceu em 29 de abril de 1863 em Alexandria e morreu setenta anos depois no
mesmo dia e na mesma cidade. Para fechar (ou abrir) o círculo, e prevendo a
origem palíndroma da existência, Kaváfis enquadrou, num gesto de afeição pela forma
perfeita, essa mesma obsessão na escrita.
Celebrado e
lido ao redor do mundo, com extensa admiração por conterrâneos de exercício, o
poeta dedicou-se à escrita de uma obra breve, mas monumental. No Brasil, até a
pouco Kaváfis preserva o mesmo espírito dado pelos poetas de outras partes do
mundo e tem, entre os leitores, galgado espaço entre grupos acadêmicos e
circuitos muito particulares. Eis um dos motivos que faz sua poesia por aqui
peça rara: há pelo menos quatro obras com poemas seus editadas, Poemas de K. Kaváfis, reúne toda a obra do poeta com tradução de Isis Borges da Fonseca (Editora Odysseus), 60 poemas, antologia organizada e traduzida por Trajano Vieira (Ateliê
Editorial), Poemas, antologia preparada
por José Paulo Paes (José Olympio) e agora, em 2012, partes dos exercícios de transcriação
(como o tradutor preferia chamar) de Haroldo de Campos copiadas por Trajano
Vieira (Cosac Naify).
Geralmente considerado
o maior nome da poesia grega moderna, fora do Brasil, ao que parece, pelo
número de traduções e a organização de antologias diversas, a recepção tem galgado
outros territórios menos elitistas, ainda que, é preciso assumir, sua obra
esteja longe de alcançar uma penetração popular – pelo menos fora de seu país
natal. Isso porque é uma poesia que cobra do leitor um profundo conhecimento sobre a literatura
grega clássica, manancial do qual Kaváfis bebeu com muito gosto desde sempre.
E essa
aproximação, lê a crítica, terá sido uma condição motivada por uma preocupação
nascida com o poeta: a de identidade. Como foi dito, ele nasceu em Alexandria,
no Egito, não em terras gregas. O que terá feito um grego foi sua pertença:
Kaváfis é de uma numerosa colônia helênica que se criou nessa cidade mediterrânea
onde nasceu. A condição de estrangeiro na própria terra – realçada desde a
língua, uma vez que conhecia muito pouco o árabe, língua materna de quase toda
população egípcia – tem, então, uma implicação nessa aproximação com o tema
grego desde cedo. Ainda mais quando sabemos que, depois da morte do pai, em
1870, foi em Inglaterra, onde viveu sete anos com o restante da família, onde
forjou as bases de sua educação. Isto é, trata-se de uma formação marcada duplamente
pela condição de estrangeiro.
É na
Inglaterra que, antes de ir aos gregos, aproxima-se de outros clássicos, como a
obra de William Shakespeare e Oscar Wilde – este, talvez mais por uma afinidade
íntima e pessoal. Os primeiros motivos de seus textos iniciais denunciam isso
seja pelo tratamento dos temas seja pelas infiltrações das vivências pessoais
como sobre suas primeiras relações homossexuais tal como se verifica no poema “O
espelho da entrada” ou na revelação do fascínio pelo corpo do homem jovem. Essa
aproximação, apesar de possível, é, entretanto, uma faca de várias lâminas:
uma, porque a relação homoerótica é tratada como consequência inerente à
formação do homem grego – campo de interesse do poeta; outra, porque é da
natureza da poesia (e da linguagem literária) o primado da criação. O próprio
José Paulo Paes prefere uma leitura de, pelo menos, dupla face, visto que o
trabalho linguístico de Kaváfis é de manutenção da discrição sobre o tema.
Alfonso Silván
Rodríguez, tradutor de toda obra poética de Kaváfis para o espanhol, diz que o
poeta superou as modas, inclusive a muito rentável vulgarização de ícone da
literatura gay. Não é que a poesia de Kaváfis mais interessante seja a do tema
histórico, político ou a voz de um observador desencantado de seu tempo; em
todos os temas foi único. Mas “Ele nunca esqueceu a elegância e a dignidade na hora
de evidenciar sua homossexualidade, que podem ser motivações conservadoras, mas
são suas. E desde então nunca apoiou nenhuma causa que pudesse ser utilizada
como recurso de promoção identitária mais ou menos velada em determinados
círculo”.
Ainda que
grande parte da sua obra, apesar das edições, permaneça desconhecida no Brasil, os registros
comportam que Kaváfis só publicou 154 poemas e deixou pouco mais de uma dúzia
de textos incompletos ou somente esboçados. Em vida, não publicou nenhum livro;
preferia ver os poemas circular em folhas soltas, e alguns eram recolhidos e
incorporados em algumas revistas literárias do seu tempo, ou nos dois opúsculos
que organizou, um em 1904 com dezesseis folhas e outro em 1910 com vinte e
quatro folhas. Só dois anos depois de sua morte que foi feita uma recolha dos
poemas e editados em livro.
Para Rodríguez,
dentre os poemas desse breve exercício poético, “Ítaca” é um dos mais
brilhantes: “É muito conhecido e não vou me estender nele, pois seguro de
quantos o conhecem também têm uma percepção clara de sua mensagem. Outras são
as riquezas da aparência. Ítaca é o que é pelo que provoca em nós. A viagem
bonita, o gozo sensível, o conhecimento do concreto em sua multiplicidade de
facetas, de sua essência, exceto o engano. Ao final, o poema, com todo seu
dinamismo interno, se contempla puro como uma escultura clássica grega ao ar
livre, que necessariamente vem do mar”.
“Aqui entra em
divergência Ulisses. É necessário sublinhar que o tema da busca do conhecimento
associado nitidamente ao mito de Ulisses não procede exatamente da tradição puramente
grega do regresso tal como se reflete a partir da Odisseia, mas de Dante, onde Ulisses continua sua viagem pelo
desconhecido, algo estudado por Kaváfis. ‘Ítaca’ oferece uma curiosa solução
otimista, alegre, contrária à variante perigosa do conhecimento na linha do
poeta toscano, que termina sendo essencial neste poema, e muito saudável no
universo kavafiano; um tipo de solução que a lucidez, nele sempre presente,
normalmente não se deixa pagar”.
Segundo Trajano Vieira no prefácio da antologia por ele organizada e traduzida, a poesia de Kaváfis pode ser considerada, num certo sentido, fantasmagórica. "Isso não decorre propriamente da presença de traços deformantes do universo onírico, mas do exotismo de seus personagens. É neles que fixamos inicialmente nossa atenção, na manifestação de seu comportamento incomum, ou para usar um termo recorrente entre os comentadores, no 'refinamento' de suas ações. Há algo de teatral nos poemas do autor alexandrino, ambientados em cenários que evocam o classicismo tardio. São figuras muitas vezes secundárias esquecidas à margem do passado remoto, que retornam da penumbra para reivindicar uma certa posição história. Normalmente elas fracassam em seus projetos e acabam reimergindo no esquecimento. A impossibilidade de afirmação resulta às vezes no tom melancólico, mas sobretudo na constatação irônica do valor irrisório do que se perdeu: um jovem perfumista morto antes de realizar o sonho acalentado, um escultor experiente incapaz de representar um determinado efeito, um rapaz ambicioso e desastrado na efígie da moeda, um efebo astucioso que desdenha a derrota na corrida de carruagens. Mas talvez a imagem do naufrágio não seja a que melhor caracterize a condição dos personagens de Kaváfis. O que os particulariza é a indiferença que esboçam quando não alcançam seus objetivos. O desdém, mesmo diante da morte, é frequentemente associado a um traço de aristocracismo decadente e fascinante".
Para fechar –
ou abrir – o círculo, copiamos abaixo um catálogo com alguns poemas do poeta nas quatro traduções conhecidas no Brasil.
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