Clarice Lispector: entrevistas ― Erico Verissimo

Todos conhecem, mesmo de que ouvir falar, a saga O tempo e o vento. Na mesma proporção, obras como A hora da estrela e A paixão segundo G.H. Mas, saberia o leitor que os dois autores dessas obras foram amigos de longa data e intimidade? Pois foram. A amizade entre Erico Verissimo e Clarice Lispector ― e por extensão, o convívio das duas famílias ― foi profusa. Tanto que ela chegou a convidar Erico e sua esposa, Mafalda, para serem padrinhos de seus filhos Pedro e Paulo Valente. Os registros dessa convivência estão nas fotografias, como as registradas na estadia em Washington e nas quais vemos em cores os fotografados, e nas muitas cartas trocadas.
 
Para agora, copiamos uma entrevista da própria Clarice. Está reunida num livro bastante singular, Clarice Lispector: entrevistas, publicado no ano passado pela Editora Rocco. Aqui, conversam sobre a recepção da obra de Erico Verissimo pela crítica especializada, a carreira e os desafios do ofício de escrever, sobre a fama, as alegrias, gostos e desgostos e recordam esse período nos Estados Unidos acima referido.

Erico Verissimo, anos 1950. Arquivo: A semana


 
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Erico é escritor que não preciso apresentar ao público: trata-se, com Jorge Amado, do único escritor no Brasil que pode viver da vendagem de seus livros. Vendem como pão quente. Recebido de braços abertos pelos leitores, no entanto a crítica muitas vezes o condena.

Clarice Lispector: Erico, por que você acha que não agrada aos críticos e aos intelectuais?

Erico Verissimo: Para começo de conversa, devo confessar que não me considero um escritor importante. Não sou um inovador. Nem mesmo um homem inteligente. Acho que tenho alguns talentos que uso bem... mas que acontece serem os talentos menos apreciados pela chamada “crítica séria”, como, por exemplo, o de contador de histórias. Os livros que me deram popularidade, como Olhai os lírios do campo, são romances medíocres. Nessa altura me pespegaram no lombo literário vários rótulos: escritor para mocinhas, superficial etc... O que vem depois dessa primeira fase é bastante melhor mas, que diabo! pouca gente (refiro-me aos críticos apressados) se dá ao trabalho de revisar opiniões antigas e alheias. Por outro lado, existem os “grupos”. Os esquerdistas sempre me acharam “acomodado”. Os direitistas me consideram comunista. Os moralistas e reacionários me acusam de imoral e subversivo. Havia ainda essa história cretina de “norte contra sul”. E ainda essa natural má vontade que cerca todo o escritor que vende livro, a ideia de que best-seller tem de ser necessariamente um livro inferior. Some tudo isto, Clarice, e você não terá ainda uma resposta satisfatória à sua pergunta. Mas devo acrescentar que há no Brasil vários críticos que agora me levam a sério, principalmente depois que publiquei O tempo e o vento. (Bons sujeitos!)

Clarice Lispector: Você se sente realizado como escritor, Erico? Eu, por exemplo, ainda não me sinto, e tenho a impressão de que será assim até eu morrer.

Erico Verissimo: Realizado, não. Mas confesso que não me sinto frustrado. Agora, acho que você tem todo o direito de considerar-se realizada. (É pena que isso não seja, no escritor, uma questão de direito.) Você, na minha opinião, trouxe algo de novo e importante para a nossa literatura.

Clarice Lispector: E como homem, você se sente realizado? Você, Erico, é uma das pessoas mais gostáveis que conheci. Você é uma pessoa humana de uma largueza extraordinária. Que é que você me diz disso?

Erico Verissimo: A resposta é quase idêntica à pergunta anterior. Reduzi ao mínimo as minhas frustrações. Sempre fui um sujeito tímido e moderado, até no sonho, nos projetos. Tenho tudo ou quase tudo quanto desejei, e muito mais do que ousei esperar. A ideia de ser querido, digamos a palavra exata – amado, me agrada, me alegra mais do que a ideia de ser admirado. Se você me perguntasse se sou um homem natural, para ser bem sincero, eu lhe confessaria que de certo modo moldei a minha própria imagem, a face do homem que eu desejo que os outros vejam.

Clarice Lispector: Você trocaria seu público, que adora você, por uma crítica que lhe fosse mais favorável?

Erico Verissimo: Não.

Clarice Lispector: Erico, sem interromper o assunto, estou me lembrando com saudade de Washington, eu como mulher de diplomata, e você trabalhando na OEA. Você se lembra de como eu fazia ninho na vida e na casa de vocês? Que é que você estava escrevendo naquela ocasião? Eu, por exemplo, estava escrevendo A maçã no escuro. Foi um período muito produtivo, no sentido de trabalho e no sentido de uma amizade que se formou para sempre entre você, Mafalda e eu.1 

Erico Verissimo: Quero que você saiba (e aqui falo também em nome de minha mulher) que as melhores recordações que guardo de nossa estada em Washington D.C. são as das horas que passamos em sua casa, com você e sua gente. Detestava o meu posto da União Pan-Americana. Não consegui escrever uma linha durante esses três anos burocráticos. O que sobrou de melhor desse tempo foi a nossa amizade. Você saiu daquela chatice federal com um romance denso de substância humana e poética.
 
Clarice Lispector: Qual é o seu personagem mais importante? O meu é sempre do livro que eu esteja escrevendo no momento.

Erico Verissimo: O primeiro vulto que me vem à mente é o do Capitão Rodrigo. Depois penso em Floriano, meu sósia espiritual. Mas não me decido a escolher. Prefiro dizer que os meus personagens mais importantes são as mulheres de O tempo e o vento, como Bibiana e Maria Valéria.

Clarice Lispector: Os críticos, ao que ouvi dizer, acham você pouco profundo. Que me diz disso?

Erico Verissimo: Lembro-me de um escritor francês que costumava dizer que un pot de chambre est aussi profond. Mas, falando sério, concordo com os críticos: não sou profundo. Espero que me desculpem.

Clarice Lispector: Quando foi, Erico, que você começou a escrever? E motivado pelo quê?

Erico Verissimo: Em menino, na escola, eu fazia “primorosas” redações. Grau dez. Foi ainda em Cruz Alta, atrás dum balcão de farmácia, que escrevi o primeiro conto. Por quê? Não sei. Aí me lembro que naquele tempo eu ainda pensava que podia ser pintor (acabo de comprar uma caixa de tintas. Pintores do Brasil, alerta!). Meu primeiro livro de histórias – Fantoches – ainda leva a marca de minhas leituras da época: Oscar Wilde, Bernard Shaw e o infalível Anatole France.

Clarice Lispector: Surpreendo-me de nenhum cineasta ter feito um filme baseado em algum de seus livros. Você gostaria de se ver no cinema?

Erico Verissimo: Uma companhia argentina filmou Olhai os lírios do campo em 1946. O retrato foi também transformado num filme, com gente de São Paulo. Nos Estados Unidos, Noite foi “deformado” num teleplay, com Jason Robbards, Franchot Tone e E. G. Marshall. Medonho! Todos os anos recebo propostas de cineastas que querem filmar O Continente. Fica tudo em vagas conversas. Sou péssimo homem de negócios. Detesto discutir contratos e quando discuto saio perdendo.

Clarice Lispector: Sua fama é enorme, Erico. Se eu fosse famosa assim, teria minha vida particular invadida, e não poderia mais escrever. Como é que você se dá com a fama? Eu soube que o ônibus de turistas em Porto Alegre tem como parte do programa mostrar sua casa.

Erico Verissimo: É claro que a “fama” tem um lado positivo – a sensação de que a gente se comunica com os outros passa a existir para milhares de leitores. Não só como autor, através dos personagens, como também como uma espécie de figura mitológica. É engraçado. Essa história do ônibus me encabula muito. Mas eu cultivo a virtude da paciência. E detesto decepcionar os que me procuram, os que me querem conhecer em carne e osso. Minha casa vive de portas abertas. Há noites em que temos de dez a vinte visitantes inesperados. Todas as semanas recebo dezenas de estudantes que querem entrevistar-me, e a gama vai do curso primário ao universitário. Pessoas com casos sentimentais me procuram para desabafar. Empresto-lhes o ouvido, o olho, e não raro uma afetuosa atenção. Frequentemente consigo ajudar realmente um ou outro “paciente”. E isso me alegra. Mas pelo amor de Deus, Clarice, não pense nem deixe que seus leitores imaginem que eu me levo a sério.

Clarice Lispector: Erico, qual foi a sua maior alegria como escritor?

Erico Verissimo: O primeiro livro publicado? O primeiro traduzido? Não sei. Tive e continuo tendo muitas alegrias. Como escritor.

Clarice Lispector: E como homem, qual foi a sua maior alegria?

Erico Verissimo: Os filhos. Os netos.

Clarice Lispector: De onde lhe vem a inspiração para o seu trabalho?

Erico Verissimo: Tenho pensado muito nisso. Não sei de onde vem isso a que chamamos inspiração por falta de melhor palavra.

Clarice Lispector: Você entraria na Academia Brasileira de Letras? Muita gente boa termina lá.

Erico Verissimo: Não. Respeito a Academia, onde vejo muito boa gente. Mas não tenho, nunca tive, a menor vontade de fazer parte da ilustre companhia. Questão de temperamento.
 
Clarice Lispector: Você planeja de início a história ou ela vai se fazendo aos poucos? Eu, por exemplo, acho que tenho um vago plano inconsciente que vai desabrochando à medida que trabalho.

Erico Verissimo: Planejo, mas nunca obedeço rigorosamente ao plano traçado. Os romances (você sabe disso melhor que eu) são artes do inconsciente. Por outro lado, estou quase a dizer que me considero mais um artesão do que um artista. E com isto você compreenderá melhor por que a crítica não me considera profundo.

Clarice Lispector: Você agora percorreu meio mundo com Mafalda. O que foi que mais impressionou você?

Erico Verissimo: A Mafalda. A capacidade que ela tem de me compreender, ajudar, acompanhar e – de vez em quando – dirigir, sem que este teimoso gaúcho serrano dê pela coisa... Herdei de meu avô tropeiro o gosto pelas andanças.

Quero sempre ver o que está pela frente. Mafalda tem alma calma no melhor sentido da palavra. Quer logo estabelecer-se, radicar-se. Mas eu a arrasto para dentro de trens, ônibus e aviões, e lá nos vamos. Gosto principalmente dos países latinos da Europa: França, Itália, Espanha, Portugal... Tenho uma fascinação enorme pela área mediterrânea. A Grécia e Israel me encantaram. Vi recentemente a Tchecoslováquia num dos momentos mais belos de sua história. No momento estou preparando um livro de viagens – pessoas e lugares que encontrei, certos momentos inesquecíveis que vivi – pretexto para falar de pintura, música, paisagens, literatura, problemas humanos, política etc.

Clarice Lispector: Agora que publiquei um livro de história para crianças e outro meu vai sair por esses dias, interesso-me em saber o que você pensa da literatura infantil no nosso país.

Erico Verissimo: Devo dizer que só a semana passada é que li a história do seu coelhinho2. Acho que você usou a linguagem adequada. Foi mesmo uma história contada ao Paulinho (que hoje deve ser um Paulão). Eu gostaria de voltar a escrever para crianças. As nossas crianças precisam livrar-se do Superman, do Batman. Mas... que histórias poderíamos contar-lhes nesta hora desvairada? Isto é um assunto para discutir. Nossa literatura infantil ainda é muito pobre.
 
Clarice Lispector: Que é que você mais quer no mundo, Erico?

Erico Verissimo: Primeiro, gente. A minha gente. A minha tribo. Os amigos. E depois vêm – música, livros, quadros, viagens... Não negarei que gosto também de mim mesmo, embora não me admire.
 
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1 Erico Verissimo substituiu Alceu Amoroso Lima na direção do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan Americana, em Washington nos anos 1953 a 1956. Na ocasião, Clarice Lispector encontrava-se casada com Maury Gurgel Valente, diplomata.
 
2 Trata-se de O mistério do coelho pensante. Foi o primeiro livro que Clarice Lispector escreveu para crianças. Data dos anos 1950 e foi escrito para circular no âmbito da intimidade familiar. Em 1967, o conto acabou publicado pela José Álvaro com desenhos de Euridyce.


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