Carlos Heitor Cony, fragmentos biobibliográficos


Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos meus dias.

Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.
(O suor e a lágrima)



Carlos Heitor Cony.

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro, em 1926; cursou filosofia no Seminário São José. Logo no início de sua carreira literária ganhou por duas vezes consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 com o romance A verdade de cada dia e em 1958 com Tijolo de segurança). E, depois, desses dois livros, escreveria um título por ano até 1960, quando veio a Ditadura Militar; só voltaria aos romances em 1995.

Mas, além de escrever romances, o escritor, iniciou-se no processo de escrita pública quando foi trabalhar na imprensa carioca desde 1952, inicialmente no Jornal do Brasil, mais tarde no Correio da Manhã, jornal no qual foi redator, cronista, editorialista e editor. Neste último jornal publicou a crônica "Da salvação da Pátria", que é um dos primeiros registros da crônica contra o regime militar.

Aliás, Cony foi um dos artistas mais combatentes nos chamados anos de chumbo. No período em que se manteve afastado do romance, dedicou-se mais à crônica: escrevia um texto por dia. E o tema era sempre o horror do regime; por vezes, o cronista aumentou o tom e descompunha os militares de toda sorte de enfrentamentos inimagináveis para o tempo dos porões: chama Castelo Branco de rã, Costa e Silva de analfabeto. E não passou impune. Não estava em combate nas ruas, mas o combate pela palavra lhe valeu seis entradas para prisão. Mas, à frente do Correio, Cony foi o protagonista de um caso raro na imprensa nacional: o único jornal que, de fato esteve contrário ao regime. Os demais sempre apoiaram disfarçadamente ou descaradamente como o caso de O Globo, que fez fortuna com o poder dos militares.

Muito distanciado dos grupos políticos, o escritor está mais para o rol dos anarquistas. Reconhece alguns feitos, mesmo dos militares, mas não aposta que o Brasil estivesse numa condição melhor ou pior depois do Golpe de 1964. Contra todas as formas de organização, Cony teve sempre uma alfinetada pronta: por exemplo, quando depois de entrar para a Academia Brasileira de Letras em 2000, chamou a instituição de "jardim de infância às avessas".

Depois de várias prisões e de um período no exterior, o escritor deixou o jornal e entrou para o grupo Manchete, no qual lançou a revista Ele e Ela e dirigiu as revistas como Desfile e Fatos&Fotos. Como diretor da teledramaturgia da Rede Manchete, apresentou os projetos e as sinopses das novelas A Marquesa dos Santos, Dona Beija e Kananga do Japão.

Antes dos dois romances premiados com Prêmio Manuel Antônio de Almeida, Carlos Heitor Cony escreveu O ventre, título que marca, de fato, sua estréia como romancista. Mas, a obra não veio ser publicada de imediato; participou de um concurso oficial e, segundo a comissão julgadora composta, entre outros, por Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, tratava-se de um livro "extraordinário", mas que não poderia ser premiado por ser forte demais para os padrões da época. O título só viria a lume no início da década de 1960 pela Civilização Brasileira e de fato tornou-se um livro surpreendente e fundamental da literatura brasileira do século XX.

Narrado em primeira pessoa - marca que o autor repetiria mais tarde, em outros romances, o livro conta a história de José Severo, um jovem que não consegue se encaixar no meio em que nasceu e cresceu. Despreza o pai e é desprezado por ele, sente-se ofuscado pelo irmão mais novo e rejeitado pela amiga de infância por quem se apaixonou e quem continuará amando até o fim. Após a morte da mãe, descobre que é filho bastardo e se afasta de todos, levando uma vida solitária na qual a amargura impede o desespero.

Influenciado pelo existencialismo francês, O ventre também revela o estilo machadiano de Cony, escritor de sua predileção junto com Manuel Antônio de Almeida, de quem tem por convicção ser Memórias de um sargento de milícias, um dos mais importantes livros da literatura brasileira; mas no prefácio à oitava edição do romance, o autor explicita sua proximidade com o universo de Machado de Assis "atribuindo ao mestre a herança de certo sentimento amargo e áspero", como lembra Raquel Illescas Bueno, professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Paraná e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, que analisa em sua tese de doutorado as coincidências que aproximam os romances O ventre e Dom Casmurro. Para ela, Cony e Machado dividem uma mesma visão de mundo cética, relativista, a partir da qual traçam a história dos "subúrbios que todo homem carrega dentro de si".

Além desta obra significativa, Cony escreveu, além dos títulos citados, outros catorze romances, dos quais, o próprio elege Pilatos, como sendo a sua melhor obra. A obra publicada em 1973 é para o escritor o momento em que deveria ter parado por ali sua escrita. Mas, modéstia de escritor à parte, é válido visitar A casa do poeta trágico, A morte e a vida, A tarde da sua ausência, A verdade de cada dia, Balé branco, Informação ao crucificado, Matéria de Memória, O adiantado da hora, O indigitado, O piano e a orquestra, Pessach: a travessia, Quase memória, Romance sem palavras - este seu último título, embora trabalhe desde os anos 1950 na escrita de um livro ainda não concluído e que já sofreu várias mudanças de título até agora. O romance inconcluso foi anunciado como Messa para o Papa Marcelo e foi anunciado como Paixão segundo Mateus. O projeto ficou pelo caminho enquanto apareceram os livros agora citados.

 além dos romances, há as crônicas (O ato e o fato, Eu aos pedaços), contos (Babilônia, Sobre todas as coisas), os livros infanto-juvenis (A gorda e a volta por cima, Quinze anos, Vera Verão), os ensaios biográficos (Chaplin e outros ensaios, JK e a ditadura), claro, entre outros títulos. 


*Texto e informações do site oficial do escritor; para acessá-lo, clica aqui.

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