José Saramago e o elogio a Jorge Amado
Quem acompanha o blog de José Saramago terá visto que o escritor publicou um texto sobre o amigo e também escritor Jorge Amado. A admiração do português não é de hoje. Saramago sempre se referiu com muita frequência sobre o brasileiro nos primeiros volumes dos seus Cadernos de Lanzarote (Companhia das Letras, 1997). Além disso, quando numa de suas viagens ao Brasil esteve em casa de Jorge Amado. Reproduzimos o texto abaixo, seguido de fotografias desse encontro em nossa terrinha. Podemos ter por esse momento como uma das mais felizes congratulações de literaturas e, claro, de gente lúcida.
Era 1996, quando Saramago visitou o amigo Jorge Amado. Foto: Zélia Gattai / Acervo Zélia Gattai - Fundação Jorge Amado |
Uma certa
inocência
Durante
muitos anos Jorge Amado quis e soube ser a voz, o sentido e a alegria do
Brasil. Poucas vezes um escritor terá conseguido tornar-se, tanto como ele, o
espelho e o retrato de um povo inteiro. Uma parte importante do mundo leitor
estrangeiro começou a conhecer o Brasil quando começou a ler Jorge Amado. E
para muita gente foi uma surpresa descobrir nos livros de Jorge Amado, com a
mais transparente das evidências, a complexa heterogeneidade, não só racial,
mas cultural da sociedade brasileira. A generalizada e estereotipada visão de
que o Brasil seria reduzível à soma mecânica das populações brancas, negras,
mulatas e índias, perspectiva essa que, em todo o caso, já vinha sendo
progressivamente corrigida, ainda de que de maneira desigual, pelas dinâmicas
do desenvolvimento nos múltiplos sectores e actividades sociais do país,
recebeu, com a obra de Jorge Amado, o mais solene e ao mesmo tempo aprazível
desmentido. Não ignorávamos a emigração portuguesa histórica nem, em diferente
escala e em épocas diferentes, a alemã e a italiana, mas foi Jorge Amado quem
veio pôr-nos diante dos olhos o pouco que sabíamos sobre a matéria. O leque
étnico que refrescava a terra brasileira era muito mais rico e diversificado do
que as percepções europeias, sempre contaminadas pelos hábitos selectivos do
colonialismo, pretendiam dar a entender: afinal, havia também que contar com a
multidão de turcos, sírios, libaneses e tutti quanti que, a partir do século
XIX e durante o século XX, praticamente até aos tempos actuais, tinham deixado
os seus países de origem para entregar-se, em corpo e alma, às seduções, mas
também aos perigos, do eldorado brasileiro. E também para que Jorge Amado lhes
abrisse de par em par as portas dos seus livros.
Tomo como exemplo do que venho
dizendo um pequeno e delicioso livro cujo título – A descoberta da América
pelos turcos – é capaz de mobilizar de imediato a atenção do mais apático dos
leitores. Aí se vai contar, em princípio, a história de dois turcos, que não
eram turcos, diz Jorge Amado, mas árabes, Raduan Murad e Jamil Bichara, que
decidiram emigrar para a América à conquista de dinheiro e mulheres. Não tardou
muito, porém, que a história, que parecia prometer unidade, se subdividisse em
outras histórias em que entram dezenas de personagens, homens violentos,
putanheiros e beberrões, mulheres tão sedentas de sexo como de felicidade
doméstica, tudo isto no quadro distrital de Itabuna (Bahia), onde Jorge Amado
(coincidência?) precisamente veio a nascer. Esta picaresca terra brasileira não
é menos violenta que a ibérica. Estamos em terra de jagunços, de roças de cacau
que eram minas de ouro, de brigas resolvidas a golpes de facão, de coronéis que
exercem sem lei um poder que ninguém é capaz de compreender como foi que lhes
chegou, de prostíbulos onde as prostitutas são disputadas como as mais puras
das esposas. Esta gente não pensa mais que em fornicar, acumular dinheiro,
amantes e bebedeiras. São carne para o Juízo Final, para a condenação eterna. E
contudo…E, contudo, ao longo desta história turbulenta e de mau conselho,
respira-se (perante o desconcerto do leitor) uma espécie de inocência, tão
natural como o vento que sopra ou a água que corre, tão espontânea como a erva
que nasceu depois da chuvada. Prodígio da arte de narrar, A descoberta da América
pelos turcos, não obstante a sua brevidade quase esquemática e a sua aparente
singeleza, merece ocupar um lugar ao lado dos grandes murais romanescos, como
Jubiabá, A tenda dos milagres ou Terras do sem fim. Diz-se que pelo dedo
se conhece o gigante. Aí está, pois, o dedo do gigante, o dedo de Jorge Amado.
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