O suicídio de Yukio Mishima
Por Xavier Velasco
Violentamente vivo: ainda depois de morto – seu cadáver decapitado e as
câmeras sobre como abutres – assim costumava dizer Yukio Mishima. “A maioria
dos escritores”, confessou a algum editor, “são apenas normais que se comportam
como perturbados, e eu, que me comporto como uma pessoa normal, estou doente da
alma”.
Raras vezes passou dos 49 quilos. Foi, desde pequeno, motivo de chacota
entre os seus: débil, torpe, covarde, pequeno, complexado. E certamente nunca,
nem antes nem depois, ameaçou sequer ser semelhante a uma pessoa normal. Mimado pela
avó possessiva e doente, perseguido mais tarde por um pai decidido em combater
sua devoção crescente pela escrita, o menino Kimitake Hiraoka chegou à
adolescência – para, segundo seus detratores, não sair nunca mais daí – para esconder-se
por trás do pseudônimo que lhe permitiria converter-se, rápido e impressionantemente,
na estrela da literatura: Mishima, Yukio.
Se Hitler foi o primeiro rock
star da história, Mishima é o genuíno superstar
do romance. Por mais que Jean Genet não acabe de ganhar novos devotos e apareça sobre outras novidades e mais registros judiciais, ninguém antes de Mishima foi
tão longe no empenho de fundir vida e obra, corpo e alma, ficção e terrorismo, ações
e palavras, inclusive áudio e vídeo, num só projeto. Talvez outros tenham
gastado fortunas em efeitos especiais, mas para ele só bastou ver-se como um
consequente até o último extremo.
“Para que eu possa levantar meu rosto ao sol é necessário que seja
devastado o mundo inteiro”, diz para si mesmo o jovem tartamudo Mizoguchi, nem
bem depois de ter sido ridicularizado por Uiko, a menina rica, bonita e arrogante
de O pavilhão de ouro. Por isso não lhe
basta desejar-lhe ardorosamente a morte, e logo afirmar com toda certeza: é
preciso acabar com toda beleza deste mundo. Até a última parte, até o supremo
incêndio, até o fim de tudo e do nada, até que cada um dos que um dia zombaram caia
preso de algum trágico assombro.
Um mórbido erotismo, dizem, não sem fascinação, alguns de seus críticos
quando falam de um estilo suave e inquietante, onde mais que escrever ficção,
realiza “uma vivissecção” de sua persona, entregue a uma luxuriosa mística
pelas palavras e entusiasmado por certa fome de ação. Já aos 20 anos escreve a
Yasunari Kawabata, desde então até sempre seu sensei: “E não chegará o momento em que me verá metido na dolorosa decisão
de realizar, fora da literatura, minha visão fatalista da literatura?” Talvez o
mais assombroso de Yukio Mishima não é tanto o fato de traçar uma rígida linha
a seguir, mas que, ao menos na aparência, não desista um segundo de obedecê-la
nem se afaste um milímetro do caminho traçado.
A Mishima lhe envergonha escrever, por mais que faça isso
compulsivamente. Preferiria, com todos os pudores de kamikaze, passar sem
papéis à ação. Daí que, não se propõe “marcar a literatura com o selo cadente
do espírito de seu tempo”, se condói por ter que se limitar “a cantar com a
calma impávida de um idiota os instantes absurdos e vertiginosos que compõem as
páginas de nosso tempo”. Mas tem um projeto: se antes todos acreditaram que era
fraco, chegaria o dia de provar sua inusitada força. Nas basta ter tudo na
vida; há também que destruí-la. Ir mais longe que qualquer outro e só depois
disso olhar de frente o sol.
Para a opinião pública do século XX, a história de Mishima se resume na
quarta-feira 25 de novembro de 1970: data do haraquiri mais famoso do século
passado (assim dizia Mishima: haraquiri –
literalmente, corte do ventre –, por mais que outros prefiram o termo esquisito
que define o ritual inteiro, inclusive a decapitação: seppuku). Hoke, quando a palavra Kamikaze pode paralisar um
aeroporto, uma cidade ou um país, as obsessões mais obscuras de Mishima ganham de
imediato vida, corpo e vigência. Muitos anos antes de fotografar-se parodiando
a imagem de São Sebastião de Guido Reni, com flechas e tudo, o adolescente
Mishima havia tido seu primeiro orgasmo frente ao quadro: torcido de lascívia,
sedento de suicídio.
“Nunca tanto como hoje se censurou a literatura por estar ‘sem ilusões’,
e nunca o perigo de ilusionar-se com esta ‘falta de ilusão’ foi tão grande”,
escreve a Kawabata, e anos mais tarde diz: “Não desejo ler esta literatura de burguês
civilizado”. É compreensível, pois, que alguém vestido de gentleman acuse: “Numa época em que os casos de neurose aumentam de
maneira espetacular, me parece que a energia dos loucos ultrapassa de longe a
da gente de letras. O romance (quero dizer, o romance moderno) chegou, sequer
alguma vez, a produzir simultaneamente esse duplo efeito?”
Duplo efeito: na manhã antes de sua imolação, o romancista deixa sobre
sua mesa de trabalho as últimas páginas de A
queda do anjo, a quarta parte da tetralogia “O mar da fertilidade”. Duplo
efeito: a tarde da véspera, o dramaturgo
finda os detalhes, e é assim que se para em frente a uma farmácia com seus
quatro seguidores – o alto comando da Sociedade do Escudo, um grupo de impetuosos,
uniformizados e militarizados ao qual não seria de todo incoerente chamar
Juventude Mishimianas – e pede que lhe tragam um pacote de algodão; não sem
algum obscuro sentido de humor, esclarece sua séria utilidade: um tampão no
reto evitará que o corte no ventre se torne uma desonrosa defecação. Duplo efeito: a ação é literatura e
vice-versa. Daí que noutra carta confesse: “Sou, por natureza, incapaz de ficar
num só lugar, o que me expõe a críticas cada mais vez maiores”.
Veemente, cáustico, arrogante, malcriado, egoísta, narcísico,
autoritário, Mishima contradiz sua condição esquálida obtendo altos graus em
artes marciais e pousando para revistas de fisicultura, mas, nem mesmo sua
fama de ator e extravagante o livrará da vergonha onipresente. Em agosto de
1969 escreve: “Há quatro anos que apesar das provocações me dedico a preparar,
lenta mas firmemente, a chegada do ano de 1970. [...] É a primeira vez em minha
vida que invisto tantos esforços físicos e mentais, e tanto dinheiro, num movimento
concreto”. É, certamente, um plano irreal, mas Mishima se mostra implacável como
skinhead à base de anfetamina; “Nada
desprezo tanto no mundo como as caras gordas dos realistas com óculos”.
Tenno heika banzai – “longa
vida ao imperador” – gritariam em uníssono os quatro membros da Sociedade do Escudo passado o meio-dia daquele
25 de novembro, logo que seu chefe, com 45 anos e mais de uma centena de texto
publicados, rendeu o comandante do quartel general das Forças de Autodefesa
japonesas; fez um longo discurso político aos pouco mais de 800 soldados
presentes, em que persuadia a restituição do imperador ao poder. Depois, vem a
história tantas vezes contada: Mishima faz os dois cortes no seu ventre,
Masaketsu Morita, seu amante, tenente e quem seria o executor final do ritual,
falha na decapitação, Furu-Koga, um dos três membros obrigados pelo chefe a
sobreviver, com toda destreza decapita os dois, os discípulos aproveitam para
chorar antes que os soldados os vejam e apanhem as cabeças deitadas simetricamente
sobre o tapete.
Isolado por seus fantasmas menos redutíveis, Mishima escreve meses
próximo sua imolação: “Cada gota de tempo que se escorre me parece tão preciosa
como um trago de bom vinho e já perdi quase todo interesse pela dimensão espacial
das coisas. Este verão irei de novo a Shimoda com toda minha família. Espero que
seja um belo verão”.
Não são as palavras de homem violentamente vivo, mas as de um cadáver em
urgente formação: protagonista de um romance que cruza já a linha do desenlace.
Com tão escassas folhas brancas pela frente, o suicida serial apela ao seu
fazer de romancista para explodir a conclusão triunfante: “Agora que estabeleci
meu plano, creio que vou começar a escrever esse final”.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma versão livre para "El suicida serial", de Xavier Velasco, El País.
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